Literatura

Entro em cena em meu olhar

4 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

Janelas se iluminam. Dou um passo na sacada…

Entro em cena em meu olhar.

Minha presença se percebe como o igual e o oposto de todo este mundo luminoso que quer convencê-la de que ele a rodeia. Eis aqui todo o choque entre a terra e o céu. O instante quer me prender e o lugar acredita me cercar…

Mas o lugar com seu instante não é, para o espírito, senão um incidente – um acontecimento – um demônio como um outro… Todo esse dia, um demônio de minha noite pessoal. […] – Paul Valéry.

Esboço, Edgar Degas

Esboço, Edgar Degas

Diz o próprio Paul Valéry, sobre seu Alfabeto:

Foi-me pedido, há alguns anos, que escrevesse vinte e quatro fragmentos de prosa (ou de versos variados) cuja primeira palavra deveria, em cada um, começar por uma das letras do alfabeto. Alfabeto incompleto? Sim. É que se tratava de utilizar vinte e quatro letras ordenadas, em xilogravura, que se pretendia publicar com o auxílio de alguma literatura – pretexto e causa aparente do álbum pensado. Essas condições não me intimidam. O gravador havia omitido duas letras, as mais incômodas, aliás, as mais raras em francês: o K e o W. Restam XXIV caracteres. Veio-me a ideia de ajustar essas XXIV peças a serem escritas às XXIV horas do dia; a cada uma das quais se pode bastante facilmente fazer corresponder um estado e uma ocupação ou uma disposição da alma diferente; decisão bastante simples.

Em 2009, uma cuidadosa edição bilíngue desta reunião de poemas em prosa foi publicada no Brasil pela editora Autêntica, não por acaso em sua coleção “Mimo”. A edição seguiu a organização proposta por Michel Jarrety, professor de Literatura Francesa da Université Paris IV-Sorbonne, e foi traduzida para o português por Tomaz Tadeu. O volume conta com posfácio e notas produzidas por Michel Jarrety.

A obra foi escrita para satisfazer uma encomenda do livreiro e editor René Hilsum, em 1924, para que Paul Valéry escrevesse 24 poemas em prosa cuja inicial fosse cada uma das letras do alfabeto. A empreitada foi concluída em 1938 e somente publicada pela primeira vez em 1976. Segundo Jarrety, o conjunto dos poemas tornou-se objeto de revisões sucessivas, como provam suas inúmeras cópias datilografadas por Valéry, sobre as quais, o professor conta: “À máquina ou à mão, ele esboça rapidamente várias letras e logo – é, para ele, uma maneira de colocar em ação  a coletânea – inaugura um caderno rosa no qual desenha em preto o título ABC, seguido das suas iniciais: P.V. para a quase totalidade das letras, a página da direita registra um determinado estado dos poemas e, a página da esquerda, algumas notas esparsas e aquarelas”.

É interessante a arqueologia do texto que faz Jarrety, para quem “o caderno ABC marca muito vagamente o ciclo regular das horas inicialmente previsto, limitando-se ao simples esboço de alguns momentos importantes: a divisão do ser que percebe a si mesmo adormecendo, o despertar longamente modulado, a espera da Ideia que logo surgirá e, mais adiante, a refeição do meio-dia; mas não passam, até aí, de poemas desconectados de qualquer consecução rigorosa, enquanto, ao contrário, o período após o meio-dia, a partir da entrada em cena de uma figura feminina, compõem-se de uma sequência de momentos afetivos, e tensionados em direção à união amorosa, consumada no letra V, antes que a coletânea se encerre com a interrogação diante da noite profunda. Essas primeiras referências não desaparecerão mais, mas uma outra estrutura logo se lhes junta, uma vez que ao ciclo das horas superpõe-se discretamente o das estações: após o poema que evocam simbolicamente o calor do verão (o mar pressentido, a claridade da luz meridiana na letra J), Valéry claramente associa à letra R o outono cuja ‘alta tristeza’ liga-se à ‘ternura pelo terror amedrontador’, antes que a observação dos astros, na letra X, evoque possivelmente o inverno, a julgar pela fronte apoiada na ‘vidraça gelada’. O que assim se esboça é uma sucessão de sequências que acolhem, num espaço em que espontaneamente ressurge o Mediterrâneo dos anos de juventude, a luz e o mar, a transparência do ar e a terra ardente, a profundidade noturna e a claridade perturbadora das estrelas. Tudo isso está sintetizado numa nota do dossiê: trata-se de uma cosmocronia”. A correspondência entre as horas e as letras é preocupação recorrente na obra de Valéry; aqui, mais do que horas do dia, as letras expressam disposições do sujeito, fases ou estados de existência que compõem sua coletânea de tempo próprio.

Para Jarrety, a diferença principal entre os poemas em verso e em prosa, na obra de Valéry, consiste no acolhimento, da prosa, daquilo que “o afeta no mais profundo de seu ser, que é o que a poesia em verso jamais revela, escondendo-o, muito pelo contrário, por detrás da ofuscante proteção da forma. Os poemas em prosa dos Cadernos, com os quais os do Alfabeto, frequentemente, entram em estreita ressonância, nos fornecem, aqui e ali, a prova disso, quando alguns acontecimentos importantes são ali registrados: não os que compassam a existência, mas, muito pelo contrário, os que a transtornam. Compreende-se mais facilmente, então, que, se Valéry entende fazer do poema em verso uma realidade segunda, inteiramente autônoma e separada, que intimida o mundo, por um momento, a deixar-se substituir por um outro universo, o poema em prosa, ao contrário, obstina-se em fornecer, do real percebido, uma espécie de equivalente, como se ele devesse escrever o sensível no mais próximo possível daquilo que ele é”.

Na letra C de seu Alfabeto, Valéry pergunta: “Dividido, como orar? Como orar quando um outro si mesmo escutaria a oração?” Dúvida pragmática, que verte do real seu transtorno: “É por isso que não se deve orar senão com palavras desconhecidas”. A questão da identidade sugere alguma equivalência entre o sujeito e o mundo, “a voz de um fala no outro”.

De acordo com o poeta e crítico Leonardo Fróes, em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo em março de 2010, o livro “celebra o mais comum dos mistérios: a vivência do corpo na passagem de um dia. Da letra A, em que sai do sono, à letra V, hora da noite em que sucumbe a um encontro carnal, ‘pelo contato do único com o único, na partilha e na troca, na busca do íntimo no íntimo’, o corpo é fotografado com espanto nas suas operações de rotina: pôr-se de pé, comer, banhar-se, auscultar o silêncio ou ter ideias. Na diluição do mistério que assim será obtida, o corpo acaba por tornar-se ‘um sonho agradável que o pensamento sonha vagamente’. É bela aqui, como ao longo do livro, a tradução de Tomaz Tadeu”.

 

A editora Autêntica disponibiliza um trecho para visualização.

 

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.Trechos.

 

Ao princípio, será o Sono. animal profundamente adormecido; tépida e tranquila massa misteriosamente isolada; arca fechada de vida que transportas rumo ao dia minha história e meu destino, tu me ignoras, tu me conservas, tu és minha permanência inexprimível; teu tesouro é meu segredo. Silêncio, meu silêncio! Ausência, minha ausência, ó minha forma fechada, deixo todo pensamento para te contemplar com todo o meu coração. Fizeste para ti uma ilha de tempo, tu és um tempo que se desprendeu do Tempo enorme no qual tua duração infinita subsiste e se eterniza como um anel de fumo. […]

 

Braços e pernas encolhidos, distendidos, remexendo as sombras e o leito; repartindo, afastando as ondas da mortalha vaga, o ser enfim se desfaz da sua confortável desordem. A virtude de ser Si percorre-o. Ser Si arrebata-o como uma surpresa; e às vezes uma feliz surpresa, às vezes uma infelicidade imensa. Quantos despertares não desejariam ser apenas sonhos!… Mas na hora a unidade toma conta dos membros, e da nuca aos pés um acontecimento faz-se homem. De pé! Clama todo o meu corpo, é preciso romper com o impossível!… De pé! O milagre de ficar de pé se realiza. O quê de mais simples, o quê de mais inexplicável que esse prodígio, Equilíbrio? […]

 

Como está calmo o tempo, e delicadamente colorido o jovem fim da noite! As folhas da janela empurradas à direita e á esquerda por um gesto vivo de nadador, penetro no êxtase do espaço. O tempo que faz é puro, é virgem, é delicioso e divino. Eu vos saúdo, grandeza ofertada a todos os atos de um olhar, começo da perfeita transparência! Que acontecimento para o espírito uma tal vastidão! Eu gostaria de vos abençoar, ó todas as coisas, se eu soubesse!… na sacada que se propõe por sobre as folhas, no umbral da primeira hora e de tudo o que é possível, durmo e velo, sou dia e noite, ofereço por muito tempo um amor infinito, um receio sem medida. […]

 

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ALFABETO

Autor: Paul Valéry
Editora: Autêntica
Preço: R$ 39,00 (160 págs.)

 

 

 

 

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