“A montagem do morro foi mais tranquila. Arariba tinha deixado à disposição uma série de materiais, já com as instruções do lugar de tudo. Não era preciso. Com a experiência, os moradores sabiam perfeitamente erguer os barracos, lembravam-se dos lugares onde deveriam ficar a vendinha, a boca de fumo, a igreja evangélica e a biblioteca comunitária. De qualquer forma, não é preciso deixar tudo igual. A arte contemporânea tomou para si, com grande criatividade, o aspecto efêmero das coisas humanas. Haverá alguma pulsão de morte na obra de Zé Arariba?, um crítico se pergunta em um longo artigo de jornal. Esse, por razões que não vêm ao caso, nosso artista leu e ficou abalado. Afinal de contas, estou sempre despedaçando alguma coisa. Às vezes fico pensando se vale mesmo a pena”.
O romance A vista particular, de Ricardo Lísias, mostra a espetacularização da miséria e a estetização da violência de maneira ácida e satírica. O protagonista, José de Arariboia, é um artista bem-sucedido, conhecido por uma série de quadros que pintou sobre o Rio de Janeiro, está prestes a montar sua primeira exposição individual. Ele é, porém, flagrado subindo a favela do Pavão-Pavãozinho. Ninguém sabe o que acontece por lá. E na volta, uma inesperada “performance” leva as pessoas ao delírio: Arariboia desce da Rua Sá Ferreira até a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, completamente nu e ainda com um passo de gingado especial, digno de ser desfilado em um sambódromo. Curiosos filmam a “performance” e os vídeos tornam-se sucessos no YouTube. O que poderia ter sido uma catástrofe e a ruína de sua reputação, transforma-se, assim, em sensação. Arariboia torna-se uma estrela na internet, conhece o chefe do tráfico no morro Pavão-Pavãozinho e, com ele, inicia uma parceria e um trabalho que, crê, é sua obra-prima: uma intervenção na comunidade, a princípio uma espécie de metonímia, que acaba tomando a dimensão de uma sátira feroz de crítica social aos silenciados absurdos cotidianos. Segundo Schneider Carpeggiani, em resenha publicada pelo Suplemento Pernambuco, “o romance dilata o vaivém ‘voyeurístico’ entre favela e classe média, entre o que entendemos por centro/por margem e como esse movimento pode ser kamikaze para ambas (e objetificadas) partes”.
De acordo com Guilherme Sobota, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo: “No meio desse aparente surrealismo, o autor aborda de perto vários temas do Brasil contemporâneo, como a Olimpíada, a violência policial, a espetacularização de tudo via redes sociais e uma permanente injustiça social. Entre as obras que o personagem monta na sua instalação, estão, por exemplo, ‘Família com um filho no tráfico e outro na escola’ e ‘Local em que a polícia pega a parte dela’. Tudo isso com uma estrutura narrativa particular e irônica”. Ainda no mesmo artigo, entrevistado, Ricardo Lísias disse: “Eu não acho esse livro engraçado, de gargalhar. Um leitor carioca disse que morreu de rir. Mas não acho engraçado. Não queria que o narrador fosse levado a sério, porque não acho que as coisas podem ser levadas a sério”. Para o autor, o “livro vai se desconstruindo. Não levo mais a sério a literatura, pelo menos o gênero romance, o gênero ficção. As coisas são muito difíceis de alcançar. Não é cabotinismo, mas acho muito difícil a linguagem. Por outro lado, não poderia levar a sério nem a mim mesmo nem ao livro, se não é ridículo. Aí botei outro narrador. As pessoas levam a arte a sério demais. Não dá para levar. Artistas contemporâneos já perceberam isso. É muito falha a literatura. Diante da precariedade da situação toda, eu queria mostrar a minha própria precariedade, e a do projeto. Aí tem um pouco de ironia, sim”.
Em outra entrevista, concedida ao jornal gaúcho Zero Hora, Lísias contou sobre o que lhe inspirou a obra: “A ideia para esse livro nasceu quando eu estava hospedado em um hotel e vi um ônibus sair para levar turistas para uma favela. Há também passeios assim na fronteira entre México e Estados Unidos, local onde muitas pessoas morrem tentando atravessá-la. Esse tipo de turismo bizarro foi se naturalizando com o tempo. Hoje, as coisas mais absurdas são tomadas como naturais. Isso também gera uma crise de representação. Parece que as artes visuais e a literatura se esgotaram diante desse contexto […] Quis fazer uma narrativa que fosse se dissolvendo ao longo do livro, para demonstrar que a literatura não está melhor do que as artes visuais. E que também não estou certo das possibilidades da narrativa literária em um momento como este”.
Para o crítico Alfredo Monte, em resenha publicada originalmente no jornal A Tribuna, de Santos: “Lísias nunca foi tão conciso e eloquente. Até a interferência do narrador no relato mostra, no final das contas, que tudo é uma representação multiplicada ao infinito da suposta realidade, tudo é simulacro, e às vezes oportunistas”.
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.trecho.
CAPÍTULO 1
Em que conhecemos o artista plástico José de Arariboia e sua obra. Aparecem duas personagens coadjuvantes: a marchand Donatella e o traficante Biribó. Ficamos sabendo que Arariboia está mais distraído que o normal. Um incidente é anunciado, mas ocorrerá apenas no segundo capítulo, o que demonstra a ansiedade do narrador. Cai o dia na Cidade Maravilhosa.
I
José de Arariboia caminha devagar e, olhando para os dois lados antes de atravessar a rua, resolve esperar na esquina. Duas ou três vezes o sinal alterna entre o vermelho e o verde. Ele prefere observar os letreiros do comércio e continua parado. Há muitos anos José de Arariboia anda pelo bairro. Ele sempre viveu no Rio de Janeiro, em Copacabana, mas todo dia encontra um detalhe novo na arquitetura da região, um traço ingênuo em uma propaganda, alguma coisa que revela uma possibilidade nunca realizada. Talvez seja essa a principal característica da Cidade Maravilhosa: uma beleza incompleta. Uma cor que a gente nunca notou.
Se for para definir José de Arariboia, ele é esse sujeito atento aos detalhes, calmo e preso à vida urbana. Um artista essencialmente ligado à questão das cidades grandes, escreveu um crítico em certa ocasião. Ele não ficou esfuziante com a resenha. A empolgação além da conta, daquelas que dá para perceber a satisfação do cara, não é uma reação típica dele. Sem insinuar aqui nenhum interesse além da boa educação, José de Arariboia agradeceu em um rápido e-mail, dizendo que concordava com as palavras que tinha acabado de ler. Vamos tentar tomar um café um dia desses.
II
Com 35 anos completados há um mês, José de Arariboia já desenvolveu uma obra singular, com marcas próprias e consciente de suas intenções e limites. Outro crítico afirmou que ele é um artista de traços suaves, linhas calmas e cores delicadas, ainda que dispostas com muita personalidade no suporte, o que causa um choque com a temática recorrente, a cidade grande. Em outro e-mail rápido e educado, Arariboia agradeceu a generosidade da leitura. Obrigado.
Para a idade ele já reuniu uma boa quantidade de avaliações e juízos críticos, embora ainda não tenha merecido nenhum estudo mais longo. Sua galerista, na reunião que tinham feito nessa mesma tarde, explicou que lhe falta um catálogo individual. A partir dele (e sobretudo da introdução que está para ser encomendada), sua obra vai alcançar um novo patamar. As notícias não param por aí, Donatella continuou, oferecendo-lhe outra xícara de chá. O Santander já confirmou o patrocínio do catálogo, em troca de apenas dois quadros. Sempre contido, Arariboia agradeceu, confirmou que organizaria os detalhes nos próximos dias e recusou mais chá. Está anoitecendo e ele pretende voltar caminhando. É bom para espairecer, Donatella concordou, levando-o à porta.
III
Quem vê aquele homem andando não desconfia que ele acabou de ouvir tanta notícia boa. Não dá para perceber pela expressão fechada do rosto ou pelos passos distraídos que praticamente todos os sonhos de José de Arariboia estão para se realizar. Sua primeira exposição individual vai ser montada no Museu de Arte do Rio, o MAR, estrategicamente no mesmo período em que Georges Didi-Huberman deve dar uma série de conferências no auditório do prédio. A ideia é conseguir uma introdução do próprio Didi-Huberman para o catálogo. Donatella não vê motivos para o célebre intelectual francês recusar. Dali para o Centro Pompidou não faltará muito.
Na esquina da Sá Ferreira com a Nossa Senhora de Copacabana, região da cidade que emociona José de Arariboia a ponto de aparecer em muitas de suas telas, o artista não chama a atenção de ninguém. Só o corretor, na frente de uma imobiliária, o nota parado no farol sem atravessar a rua. O verde e o vermelho já se alternaram três ou quatro vezes. Cinco, no momento em que um porteiro decide perguntar se está tudo bem. Arariboia responde com um aceno tímido (ele nunca sorri por causa das manchas pretas nos dentes da frente), dá meia-volta e resolve entrar pela Sá Ferreira.
[…]
[trecho divulgado pela revista piauí]
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Autor: Ricardo Lísias
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 24,43 (128 págs.)