fotografia

Texturas, figuras, horizontes fluviais

26 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

fotografia de Marcel Gautherot

Lançado paralelamente à exposição Marcel Gautherot – Norte, que foi realizada nos centros culturais do Instituto Moreira Sales em 2009 e 2010, o livro homônimo apresenta 72 fotografias de Gautherot, com textos de apresentação de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., que foram curadores da mostra.

As fotografias foram feitas na Amazônia brasileira entre os anos 1940 e 1970. Em 1939, ao chegar ao Brasil pela primeira vez, o francês Marcel Gautherot (1910-1996) decidiu fotografar todo o curso do rio Amazonas. Sua viagem foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial, a mesma guerra que, um ano depois, obrigaria o jovem fotógrafo a radicar- se no Brasil, país que adotou até o fim da vida. Durante as três décadas seguintes, Gautherot voltou repetidamente à Amazônia, fascinado pela paisagem vasta, instável e anfíbia, que despertou fortemente sua sensibilidade.

O resultado foi uma numerosa produção de imagens, que transparecem o rico encontro da nova paisagem brasileira com a própria memória pictórica do fotógrafo. Suas fotografias criam uma nova síntese de retrato e paisagem, documento e abstração, forma e caos. São retratados pescadores, boiadeiros e a selva amazônica.

Lygia Segala, no artigo “A coleção fotográfica de Marcel Gautherot”, examina: “Experimentos fotográficos e ciências sociais surgem enquanto técnica e campo disciplinar aproximadamente em uma mesma época e comprometem-se desde então […] com a ‘exploração da sociedade’. Nos debates contemporâneos da antropologia, a fotografia aparece como uma categoria particular de imagem ou como objeto visual com valor de uso ou de troca em diferentes grupos sociais. Define-se mais largamente no trabalho de campo como modelo de observação, registro descritivo ou de autentificação, instrumento para coleta de dados. Desdobra-se, nas sínteses de gabinete, como ilustração etnográfica contraponto do argumento textual ou do exercício interpretativo preocupado com a ‘focalização do detalhe particular’. Insere-se também, em outras análises, contemplando várias ordens argumentativas e processos particulares de circulação e apropriação, como objeto retórico, peça votiva ou identitária, lembrança relicário, obra de arte, item de coleção. Nessas notas, considerando essa dupla dimensão da expressão fotográfica, e interessante compreender a constituição de uma das mais importantes coleções fotográficas do Brasil do século XX, aberta à consulta pública, a do francês Marcel Gautherot”.

Segundo Segala, as séries sobre folclore tem uma importância particular na produção fotográfica de Gautherot, que de acordo com sua análise, “trabalha na fronteira entre a resposta estética que absolutiza a cena e as especificidades dos lugares, das expressões e das interações sociais temporalizadas. […] Na sua perspectiva, a ideia de autenticidade, como singularidade e permanência, liga-se à crença na nitidez documentária, na fidelidade da observação e da fixação do acontecimento, evitando-se nele intervir por recursos da técnica fotográfica, recriando o sentido dos fatos. Nessa distância calculada, fugindo das poses armadas pelos participantes, diz Gautherot querer perseguir o registro objetivo que emociona.

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Trecho (divulgado pelo jornal O Globo):

Muito da vibração e do interesse da fotografia amazônica de Gautherot vem da força com que sentiu todos esses problemas e da originalidade das soluções compositivas com que se saiu. Não resta dúvida de que tinha consciência das dificuldades, como o prova uma tirada de sua autoria, recolhida pelo amigo Jacques Prévert nas primeiras páginas do livro Spectacle, de 1951: “No Brasil, tive vontade de derrubar uma floresta inteira para tirar o retrato de uma certa árvore de que gostei”. Boutade à parte, o fato é que, de sua formação em arquitetura na França, Gautherot derivara um sentido refinado da composição, do equilíbrio de linhas e volumes, num espaço pictorial ele mesmo rigorosamente tabulado. Não por acaso, tinha preferência por negativos quadrados, de 6 x 6 cm, e repetidamente recorreu a elementos retos, verticais ou horizontais (especialmente a linha do horizonte), para dividir e subdividir a imagem em partes simétricas. Esse pendor é particularmente notável quando o objeto fotografado é ele mesmo uma obra arquitetônica, e basta percorrer o vasto material em torno à construção de Brasília para que se note o encontro feliz, quase puramente gráfico, entre o olhar de Gautherot e as linhas de seu amigo Oscar Niemeyer. O mesmo viés não deixa de estar presente nas fotos da Amazônia e responde, entre muitos exemplos, pelo interesse voltado para a arquitetura vernácula das palafitas. Mas o fato decisivo é que, não tendo ele derrubado “uma floresta inteira”, o gosto de Gautherot pela composição clássica não só se viu obrigado a negociar, como, mais que isso, foi se deixando contaminar pela indistinção e pela instabilidade tropical, que se insinua por todo lado. Em vez de tomar ou simular distância, Gautherot foi no sentido contrário e flertou, à sua maneira discreta, com o caos.

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MARCEL GAUTHEROT – NORTE

Autor: Marcel Gautherot, textos de Samuel Titan Jr. e Miltom Hatoum
Editora: Instituto Moreira Salles
Preço: R$ 56,00 (144 págs.)

 

 

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