Segundo Macedonio Fernández, não há dúvidas de que as coisas não começam. Ao menos, não começam quando são inventadas: o mundo foi inventado antigo. O fabuloso Museu do Romance da Eterna parte desta ideia como premissa.
No Brasil, o livro foi lançado em 2011. Fora publicado na Argentina em 1967, apenas após quinze anos da morte do autor. Desprestígio literário de compreensão inconcebível: Borges o chamava “meu mestre” e a prosa argentina do século XX, como um todo, teve na originalidade de Macedonio Fernández, sua maior referência.
O romance começou a ser escrito em 1904 – Macedonio tinha então trinta anos de idade – e continuou até o final da vida do autor, em 1952. A narrativa desenrola-se a partir de uma série de prólogos, precedentes a uma história que parece nunca chegar: trata-se da história de um homem que, ao ficar viúvo, decide deixar a cidade e refugiar-se no campo, em uma estância de nome “O Romance”.
O inacabado, nesta obra inclassificável, é a chave que abre a literatura à modernidade.
Segundo Flávio Ilha, em resenha publicada no Jornal Rascunho, “o paradoxo é seu combustível. A começar pelo próprio romance em questão, que é postergado até o limite da razão com prólogos e prólogos (são 59 até o início “oficial” da trama, mais dois epílogos e um prólogo final) que versam sobre o autor, sobre os críticos, sobre os leitores, sobre a própria literatura, sobre vida e sobre morte. Depois, a ironia — ou antes, talvez, o próprio deboche — com os objetos que deveriam fazer parte do santuário literário: a narrativa, a concepção dos personagens, a publicação, o mercado, a crítica. Em suma, a própria existência cotidiana, a ponto de Macedonio investir no Não-Existente-Cavaleiro — “o único não existente personagem, que funciona por contraste como vitalizador dos demais”. Museu do Romance da Eterna é, assim, “um lar” para a não existência. Por isso a maior aspiração de Macedonio era tornar-se inédito”. Para Ilha, os jogos de palavras e de situações paradoxais no romance “conduzem o leitor a um esforço intelectual que é o verdadeiro prêmio para quem se deixa levar pela proposta de Macedonio: “Desconcertante, ocorreu ao salteado com um livro tão cheio de valas que não houve alternativa senão lê-lo seguido para manter a leitura desunida…” É contra a ordem cartesiana do sistema literário, que inclui leitura, escritura e autoria, que se insurge Macedonio”.
O escritor Joca Reiners Terron, em artigo publicado na Folha de São Paulo por ocasião do lançamento da edição brasileira do romance, zombeteiro, define: “Macedonio Fernández era um enrolão, o procrastinador-mor. Desse talento para a postergação, criou uma arte ou, talvez, uma estética muito particular da arte. Enrolando, postergando, chegou à posteridade. Atrasado, mas chegou, é o que importa”. De acordo com Terron, uma obra literária “consciente de seu artifício, “Museu” funda a modernidade como espaço geográfico da literatura argentina. Nele, tudo é imperfeição, da sintaxe labiríntica de voltagem semelhante às ideias até o incompleto, fragmentário e insatisfatório que reside no irresoluto”. Ainda no mesmo artigo, sobre a importância do romance para a literatura argentina, ele analisa: “Ao criticar o romance em sua forma variada de tratado etnográfico ou sociológico, o “Museu” também critica a realidade. Desse modo, ao duvidar das especificidades próprias do ser argentino ou latino-americano, paradoxalmente funda a literatura argentina”.
Idelber Avelar, em artigo publicado em seu blog “O biscoito fino e a massa”, também por ocasião do lançamento da edição brasileira de Museu do Romance da Eterna, conta e analisa: “Macedonio se mudava de pensão a pensão com seu violãozinho e uma mala de anotações, às vezes largando para trás montanhas de papéis em que escrevia, sem se preocupar em publicar, o romance no qual purgava o luto pela morte da mulher Elena. Macedonio leva ao limite o gesto da vanguarda, fazendo da espera pelo romance que nunca se publicará a história mesma que se narra”. Segundo Avelar, “Macedonio era, acima de tudo, um inimigo da verossimilhança, do realismo, da ilusão de realidade na arte. Ao invés de buscar o real na ficção, procurava na realidade o seu grão de ficcionalidade constitutiva: eu quero que o leitor saiba que está lendo um romance e não vendo um viver, não presenciando ‘vida’. No momento em que o leitor caia na Alucinação, ignomínia da arte, eu perdi, não ganhei, leitor. O que quero é mui outra coisa, é ganhá-lo, a ele, de personagem, ou seja, que por um momento ele mesmo acredite não viver”.
Sobre a influência de Macedonio Fernández sobre Jorge Luis Borges, cito trecho do artigo do escritor argentino Luis Othoniel, publicado no Jornal Rascunho, no qual ele resgata “duas citações que se espelham”: “A primeira é da autobiografia humorística de Macedonio Fernández (1874-1952), em Papeles de recienvenido (Papéis de recém-chegado); a segunda pertence ao texto que Jorge Luis Borges (1898-1986) leu no enterro de Macedonio. Uma citação enuncia-se como gênese de um escritor, a outra é uma elegia por sua morte. O que as une é o roubo e a usura, a recordação “daqueles” anos, o sucesso avassalador de um discípulo, a conveniente camuflagem de um mestre.
“Nasci portenho e em um ano muito 1874. Não então imediatamente, mas logo depois, já comecei a ser citado por Jorge Luis Borges, com tão pouca timidez de encômios que pelo terrível risco a que se expôs com essa veemência, comecei a ser eu o autor do melhor que ele havia produzido. Fui um talento de fato, por avassalamento, por usurpação da obra dele. Que injustiça, querido Jorge Luis. (Macedonio, Papeles de Recienvenido).
“Eu naqueles anos o imitei, até a transcrição, até o apaixonado e devoto plágio. (Borges, “Macedonio”)”. Segundo Othoniel, no “famosíssimo ensaio Kafka e seus precursores, Borges afirma que todo escritor cria seus precursores. Em muitos aspectos, Borges cria Macedonio, não só porque Macedonio é um personagem freqüente na obra de Borges, mas também porque o leitor contemporâneo só lê Macedonio depois de ler Borges. Assim, aspectos fundamentais da obra de Borges aparecem na de Macedonio como se fossem a influência do discípulo sobre o mestre”. Sobre o espelhamento das obras de Fernández e Borges, que todavia resguardam diferenças estruturais enquanto linguagem e realização literária, Othoniel toma como exemplo o Museu do Romance da Eterna, cuja premissa narrativa, “muito borgeana”, aparece no conto O aleph, “em que o narrador se depara com um objeto fantástico com o qual pode reencontrar-se com Beatriz, sua amada morta, mas que também abrange o universo completo, embora esteja contido no porão de uma casa na rua Garay em Buenos Aires”. Por que, então, a despeito dos espelhamentos e influências literárias recíprocas, a obra de Macedonio Fernández não alcançou o sucesso da obra de Borges, pergunta-se Othoniel: “Enquanto, por um lado, a obra de Borges se referia a uma literatura conceitual e vanguardista, por outro, mantinha uma linguagem clássica, limpa e sofisticadamente adjetivada. Ao contrário, a linguagem de Macedonio é seu maior laboratório de experimentação vanguardista. Sua linguagem é de sintaxe caótica, de difícil compreensão e se inclina para a criação de neologismos tolos e desnecessários. […] sua linguagem é antiestética. Ou seja, a linguagem de Macedonio é o produto de dois incômodos, primeiro com a filosofia e depois com a literatura: a linguagem do incômodo que causa ao leitor um caótico mal-estar na leitura e que o obriga a participar da construção da obra”.
A edição brasileira, publicada pela Cosac Naify, foi traduzida por Gênese Andrade e conta com apresentação de Damián Tabarovsky.
Autor: Macedonio Fernández
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 34,93 (266 págs.)