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Conversações com Goethe

19 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

– Só nos causa espanto – replicou Goethe – porque nosso ponto de vista é demasiado estreito para nos permitir compreendê-lo. Se ele nos fosse ampliado, talvez constatássemos que também esse aparente desvio provavelmente se encontra no âmbito da lei. Mas continue, conte-me mais. Sabe-se, por acaso, quantos ovos o cuco pode pôr?

Leonardo da Vinci, Estudo preliminar para a pintura “Battaglia di Anghiari” (1503-1504)

Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida – 1823-1832, de Johann Peter Eckermann (1792-1835), acaba de ganhar uma edição primorosa no Brasil pela Editora Unesp, com tradução de Mario Luiz Frungillo, professor de Teoria Literária na Unicamp. Trata-se, como disse Otto Maria Carpeaux, de um testemunho da universalidade de interesses, da lucidez de julgamento e da sabedoria octagenária do grande poeta. Para Benjamin, as Conversações tornaram-se “um dos melhores livros em prosa do século XIX”.

Os temas das conversas são os mais diversos: sobretudo literatura, mas também pintura e artes em geral, ciências, filosofia, história, política, religião, além de questões práticas. Justamente por isso, poucos livros foram tão decisivos no estabelecimento da imagem que a história cristalizou de Goethe quanto esta reunião de conversas que manteve com o Eckermann, também poeta e seu colaborador e confidente durante os últimos anos de sua velhice. Por elas, é possível acompanhá-lo em plena atividade, enquanto finalizava algumas de suas obras mais influentes, como a Teoria das cores, a segunda parte do Fausto e a conclusão do romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, e, ao longo dessas páginas, conviver com a multiplicidade de objetos de reflexão e estudo do poeta e com sua personalidade em vida familiar e em sociedade. Como pontua o tradutor e organizador da edição brasileira no texto de apresentação, “a feição de diário escolhida por Eckermann contribuiu muito para dar vivacidade ao relato, e a fidelidade do retrato foi reconhecida por pessoas da intimidade de Goethe”.

À época de sua publicação, o livro chegou a ser considerado obra do próprio Goethe e, Eckermann, mero meio usado para que o grande poeta pudesse expressar-se – o brasileiro Mario Quintana chegou a dizer de Eckermann: “Não apenas um ouvinte nato, mas também um hábil perguntador, ele se tornou um colaborador passivo das conversações”. Eckermann, no entanto, esperava, com a publicação do livro, firmar-se como grande escritor e, ainda que tenha se baseado em seus diários para a composição da obra, em carta, afirmou que o livro não era resultado apenas de uma boa memória: “[…] de minha parte, nada foi inventado, tudo é absolutamente verdadeiro, é também selecionado. Por esse motivo, procurei evitar escrever de imediato as impressões que recebia, antes esperava dias e semanas para que o que fosse insignificante se perdesse e restasse apenas o que era relevante. Sim, o melhor de tudo só foi escrito depois de passado mais de um ano, algumas coisas até bem mais tarde”. Dotado de extraordinária memória, pôde reconstituir fielmente as longas exposições goethianas mesmo muito tempo depois de tê-las ouvido, concluindo o projeto de fixar por escrito as palavras pronunciadas em seus encontros regulares.

Quando se deu o encontro entre ambos, Goethe havia, pouco antes, lido um estudo de Eckermann – “Contribuições para a poesia, com referência especial a Goethe” – e elogiado a fluência e clareza do estilo. Simpatizou-se imediatamente com o jovem de origem humilde e, entusiasmado com sua pluralidade de interesses, convenceu-o a estabelecer-se em Weimar, intermediando-lhe moradia e aulas particulares de língua, que se tornam a base de seu sustento material. De acordo com Walter Benjamin: “O que cativava o poeta em Eckermann talvez tenha sido, antes de mais nada, sua tendência incondicional para tudo aquilo que era positivo, de uma maneira como nunca se verifica em espíritos elevados, mas também só raramente nos espíritos mais limitados”.

De acordo com Frungillo, na supracitada apresentação, a “devoção de Eckermann por seu objeto, devoção que o impede de ser infiel a Goethe, tem sua origem não apenas na admiração incondicional por seu ídolo, mas também na gratidão que demonstra por ele. De fato, seu encontro com Goethe e o acolhimento que recebeu por parte dele abriram-lhe portas que de outra maneira lhe teriam ficado sempre fechadas”.

Para o professor Marcus Vinícius Mazzari, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, no artigo “Dez obras para conhecer Goethe”, graças às Conversações muitas manifestações de Goethe, que são hoje célebres, teriam-se perdido. No terreno literário, diz Mazzari, devemos a Eckermann “as famosas explanações de Goethe sobre o conceito de ‘literatura mundial’ (Weltliteratur) datadas de 31 de janeiro e 15 de julho de 1827. Romances chineses, canções populares sérvias, os Nibelungos, tragédias de Sófocles, autos de Calderón de la Barca, mas também Shakespeare, Schiller, Pierre de Béranger, Alessandro Manzoni e Thomas Carlyle: sobre esses e outros nomes e assuntos espraiam-se os comentários do poeta para fundamentar sua ideia de literatura mundial. “‘Vejo cada vez mais’, prosseguiu Goethe, ‘que a poesia é um bem comum da humanidade e que ela se manifesta por toda parte e em todos os tempos, em centenas e centenas de seres humanos’. […] ‘Mas a verdade é que se nós, alemães, não olharmos para além do estreito círculo de nossas relações, cairemos facilmente em pedante presunção. Por isso gosto de ver o que se passa nas nações estrangeiras e aconselho a cada um a fazer o mesmo. Literatura nacional não quer dizer muita coisa nos dias de hoje; chegou a época da literatura mundial e cada um deve atuar agora no sentido de acelerar essa época’”. Mazzari aponta outro complexo temático profundamente interessante, que “diz respeito ao Fausto II, cuja retomada e conclusão se devem de maneira decisiva ao estímulo e à insistência de Eckermann. É com ele que também se iniciam certas tendências exegéticas na filologia fáustica, por exemplo, a concepção da figura do baccalaureus, na cena ‘Quarto gótico’ da Segunda Parte, como paródia a sistemas filosóficos do idealismo alemão, em especial à filosofia hegeliana e à doutrina de Fichte sobre o ‘Eu absoluto’. No registro de seis de dezembro de 1829 lemos as seguintes palavras: “‘Conversamos sobre a personagem do baccalaureus. Não significa ele, disse eu, uma certa classe de filósofos idealistas? ‘Não’, disse Goethe, ‘está personificada nele a prepotência que é própria sobretudo da juventude, da qual tivemos demonstrações tão ostensivas nos primeiros anos depois da nossa guerra de libertação. E também cada um acredita em sua juventude que no fundo o mundo começou com a própria existência, que no fundo tudo existe apenas em função de si mesmo’”.

Essa grandiosa reprodução de suas conversas com Eckermann nos dá dimensão maior da amplitude do gênio de Goethe, cuja fama não se deve apenas à grandiosidade de sua obra literária, mas também às suas reflexões sobre a literatura e as artes, aos seus estudos e pesquisas no campo das ciências da natureza. Nas palavras de Frungillo: “Com todas as suas peculiaridades, este livro fornece um retrato dos mais ricos, vivos e matizados, embora subjetivos, de Goethe”.

 

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Trecho

 

Quinta-feira, 12 de maio de 1825

 

Goethe falou com o maior entusiasmo sobre Menandro

– Depois de Sófocles – disse ele -, não sei de outro de quem gostasse tanto. Ele é completamente puro, nobre, grande e alegre, sua graça é inatingível. É de se lamentar que tenhamos tão poucas obras suas, mas esse pouco já é inestimável e uma pessoa de talento tem muito o que aprender com ele.

– Tudo sempre depende – continuou Goethe – de que aquele com quem desejamos aprender seja afim à nossa natureza. Assim é que Calderón, por exemplo, por maior que seja e por mais que eu o admire, não teve nenhuma influência sobre mim, nem para o bem nem para o mal. Para Schiller, porém, ele seria um perigo, tê-lo-ia feito trilhar descaminhos e, portanto, foi uma sorte que só depois de sua morte Calderón tenha tido uma aceitação geral na Alemanha. Calderón é infinitamente grande na técnica e na teatralidade; Schiller, por sua vez, muito mais capaz, sério e profundo em suas intenções, e assim, seria uma pena se ele tivesse perdido algo dessas virtudes se, no entanto, alcançar a grandeza de Calderón em outros aspectos.

Falamos de Molière.

– Molière – disse Goethe – é tão grande que sempre nos espantamos a cada vez que o relemos. É um homem sem igual, sua peças raiam o trágico, são arrebatadoras e ninguém tem a coragemd e imitá-lo. Seu Avarento, no qual o vício anula todo o amor filial, é sobretudo grande e trágico no mais alto sentido. Mas quando, em uma adaptação alemã, se transforma o filho em um parente qualquer, torna-se uma peça fraca e não significa mais coisa alguma. As pessoas temem ver o vício se mostrar em sua verdadeira natureza, mas o que seria o trágico, então, e o que produziria um efeito universalmente trágico senão aquilo que não podemos suportar?

– Todo ano leio algumas peças de Molière, assim como também de tempos em tempos estudo as gravuras feitas a partir das obras dos grandes mestres italianos. Pois nós, homens pequenos, não somos capazes de guardar em nós a grandeza dessas coisas, e por isso precisamos de tempos em tempos retornar a elas a fim de renovar a impressão que nos causam.

– Sempre se fala em originalidade, mas o que significa isso? Logo que nascemos o mundo já começa a exercer influência sobre nós, e assim continua até o fim! Que podemos chamar de nossa além da energia, da força, da vontade? Se eu pudesse dizer tudo o que devo aos meus grandes predecessores e contemporâneos, de meu não restaria muita coisa.

– Em todo caso, não é de modo algum indiferente a época de nossa vida em que sofremos influência de uma personalidade notável alheia ao nosso meio.

– Para mim, foi da maior importância o fato de Lessing, Winckelmann e Kant serem mais velhos que eu, e de terem os dois primeiro influenciado minha juventude, enquanto o último influenciou minha velhice.

– E também: que Schiller fosse bem mais jovem e cheio de um ímpeto juvenil quando eu já começava a me cansar do mundo; do mesmo modo: que os irmãos Von Humboldt e os irmãos Schlegel começassem suas carreiras diante de minhas vistas, foi da maior importância. Daí me vieram vantagens indizíveis.

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CONVERSAÇÕES COM GOETHE NOS ÚLTIMOS ANOS DE SUA VIDA – 1823-1832

Autor: Johann Peter Eckermann
Editora: Unesp
Preço: R$ 96,60 (718 págs.)

 

 

 

 

 

 

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