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Branco vivo

25 agosto, 2017 | Por Isabela Gaglianone

“Nunca fui Miguilim. Embora pertença (orgulhosamente) a duas linhagens de capiaus e caipiras, que migraram da roça e vieram se entrelaçar (pelo encontro entre minha mãe e meu pai) na cidade grande, destoando dos meus antepassados, nasci, cresci e sigo forjando minha visão de mundo a partir de São Paulo. Além do mais, entre outros privilégios, disponho dos meus próprios óculos. O que resolve o problema do astigmatismo (um grau em cada olho), mas não serve para o principal: alargar meu ponto de vista urbanoide, letrado, calçado. Nesse caso, é preciso sair do lugar cativo. É preciso buscar a paisagem alheia. É preciso ir até o Mutúm — viajar, afinal, é ver com a pele”.

Araquém Alcântara ["Mais médicos"]

Araquém Alcântara [“Mais médicos”]

Branco vivo é um ponto de vista inusitado e instigante sobre o Brasil. Uma confluência fecunda entre os trabalhos do fotógrafo Araquém Alcântara e do escritor Antonio Lino sobre o Programa Mais Médicos, que, juntos, compõem um livro forte e sensível.

O ensaio fotográfico e o texto foram feitos separadamente e em momentos diversos. Araquém percorreu trinta e oito cidades em vinte estados brasileiros, investigando em suas fotos a dimensão humana do programa de saúde pública, lançado pelo governo federal em 2013, para além da realidade fria dos números e das questões políticas. O ensaio foi publicado em 2016 pela editora Terra Brasilis, sob o título Mais médicos; nas palavras do fotógrafo: “Esse é meu manifesto humanista”. Parte dessas fotografias foram cedidas por Araquém para a publicação conjunta com o texto de Lino, criando a possibilidade de um diálogo reverberante. Tadeu Breda, editor da Elefante, responsável pela publicação do volume, conta, na nota introdutória, que, “sem prévio conhecimento um do outro, fotógrafo e escritor confabularam projetos semelhantes, e, cada um a seu tempo, tomaram a estrada. Coincidiram em três cidades, mas jamais se cruzaram. De volta a São Paulo, acabaram se conhecendo. E, depois de uma longa conversa, puderam juntar os trabalhos na presente edição: uma tentativa de dois cantadores do Brasil em mostrar o que esse país esconde — ou revela”.

Suas fotografias nos tornam palpáveis as paisagens que o texto descreve, as condições de vida nas habitações e nas comunidades e, com elas, as sensações, olfatos, audições, que compõem a realidade complexa das imagens. Meu trabalho é a crônica da beleza e do extermínio. Retratos de uma país que breve não veremos mais. Coleciono rostos, paisagens, movimentos, brilhos com a esperança de que não estarão condenados a viver apenas na memória e no papel. Cada imagem que capturo conduz à fé de que a natureza e o homem humilde do sertão e das matas resistirão, apesar de tanta invasão, inconsciência, devastação e morte. O genocídio dos povos primitivos, a miséria, a violentação impune dos ecossistemas – de um lado, de outro a fertilização imensa deste país amazônico, verdadeira sinfonia de belezas. Meu canto é cumplicidade e reverência. Minha fotografia é oxigênio”.

Antonio Lino escreveu o livro ao longo de uma série de viagens, feitas durante um ano, acompanhando o trabalho de doze médicos que participavam do Programa Mais Médicos, em aldeias indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos rurais e periferias urbanas. Com eles, Lino passou pelos “mutúns da vida real”, os quais, diz: “tive a oportunidade de conhecer de perto, ainda que com outra nitidez, diferente do Miguilim: em vez dos óculos, para escrever este livro, o que eu tomei emprestado foi algo do olhar de médicos embrenhados pelos cafundós do Brasil”. O autor conta que predominavam os estrangeiros, nos dois primeiros anos do programa, 73% dos profissionais vinham de fora, sobretudo de Cuba. “Que brasis estes médicos estão descobrindo?”, foi a pergunta que fez a si mesmo. “De saída, tomei a diversidade como norte”.

O autor escolheu nove destinos, traçando um itinerário pelas cinco regiões do país, em busca de histórias dos “brasis profundos”. Interessava-lhe, como escritor, principalmente a leitura que um médico pode fazer de seus pacientes: “muitos médicos conseguem enxergar não apenas um corpo, mas o corpo de uma pessoa feita de histórias. O clínico, então, transita entre gêneros narrativos: do bioquímico (repleto de batalhas épicas entre soldados brancos e invasores patogênicos) ao biográfico”. Pois, ao seguir as pistas diagnósticas, os médicos são levados, invariavelmente, para fora do consultório: “a quem queira enxergar o mundo, a saúde pública é um baita mirante”.

A prosa de Lino é envolvente. Os detalhes da paisagem e as pessoas interpenetram-se mutuamente, iluminando rastros profundos da história do Brasil.  A viagem inicia-se por Rondônia, percorrendo o mesmo caminho que, outrora mata, aberta à facão por Rondon para a implementação do telégrafo, tornou-se rodovia:

“Nas últimas décadas, a pecuária e a agroindústria também percorreram a rota do Rondon. Como se sabe, porém, ao contrário do marechal indigenista, os militares que lideraram a marcha para o oeste dessa vez calibraram melhor a pontaria contra os nativos (a Comissão Nacional da Verdade fala em, por baixo, oito mil trezentos e cinquenta índios mortos). Ao alardear o ‘vazio demográfico’ da região, a partir dos anos 1970, a ditadura cravou tachinhas coloridas no mapa da Amazônia, prometendo ali ‘terras sem homens para homens sem terra’. Com o incentivo federal, um tropel de gente e gado chegou pisoteando a floresta e levantando fumaça. Uma fumaça que, até hoje, ainda não terminou de baixar. É o que constato: sobretudo agora, na seca do inverno, incêndios e queimadas sufocam Rondônia com uma densa camada de fuligem. Estacionada sobre o estado, a névoa cinza avermelha os olhos. Desde Porto Velho, são mais de seiscentos quilômetros rodados, sete horas de estrada, e nada de azul: só este céu sujo de chão queimado”.

Rumo ao interior do estado, a paisagem modifica-se. Acompanhando dr. Raul, cubano, o texto nos leva à comunidade quilombola de Pedras Negras, acessível apenas pelo ar, de teco-teco, ou pela água, por uma viagem de quatro horas através de lanchas (alcunhadas “ambulanchas”) que sobem o Rio Guaporé. As ruínas históricas fazem as vezes da contextualização e, passando por um antigo forte português, o autor, pensando nos escravos que ergueram a construção, conjectura sobre o sentido do monumento: “sinto que, com o passar dos anos, a carga da história se inverteu: impregnadas por seu antigo fardo, hoje, diante de mim, são as pedras que carregam o peso dos escravos”.

As pequenas crônicas, conforme sucedem-se, delineiam uma rota em que natureza e cultura relacionam-se de maneira constantemente mutante. Ao narrar a visita ao sertão do Sergipe, zona rural a quarenta e cinco quilômetros de Poço Redondo, nos arredores de Serra da Guia, Lino nos apresenta Dona Zefa, que “tinha dez anos quando começou a vestir os mortos. […] Depois de lavar o corpo desalmado, e cobri-lo com o traje derradeiro, Zefa ainda abençoava o defunto, oferecendo-lhe palavras úteis à travessia. À parte um ou outro exemplo dos pais, ambos benzedores de ramo, quase todo serviço lhe ocorreu por natureza, sem lição de ninguém: — Foi uma luz que eu recebi”. Pouco mais tarde, a menina benzedeira descobriu-se também parteira talentosa: “hoje, aos 71 anos, Dona Zefa da Guia contabiliza mais de cinco mil partos assistidos. E segue ativa, no pleno vigor da saúde, fiel à missão que os céus lhe confiaram: pegar menino, velar os mortos e rezar no povo”. A matriarca, em meio à tradicional novena do Padre Cícero, por ela religiosamente promovida todos os anos no último sábado de novembro, conta trechos de sua interessante história. “Vamo entrá, meu irmão. Que o sol enjoa”. Aos onze anos, teve seu casamento marcado. “Eu era muito espevitada. Muito dançarina. Chamava mesmo a atenção. Rapaz chegasse eu já perguntava quem era. O povo chamava de doida. Era estrela mesmo que me iluminava”, Dona Zefa conta. Um pouco contrariada com o casamento, no entanto só teve a certeza de que não o queria aos pés do altar, abandonando noivo e padre, atônitos. “Na hora eu não quis. Vim m’embora. Foi lindo”. Casou-se novamente, pouco mais de um ano depois. Com filhos pequenos, faltava alimento à jovem família. Sofreu sete anos de fome – “da vista azular”, diz – até seu marido começar a “trabalhar alugado”, como conta Lino: “No domingo, ele saía a pé. Cumpria a lida. E só voltava no sábado, trazendo o dinheiro com que a família comeria durante a semana seguinte, na sua ausência”. Quando chegava em casa, o marido eventualmente encontrava mais uma boca para alimentar, pois, além dos próprios filhos, Zefa não resistia ao desamparo alheio e muitas vezes trazia consigo uma criança mais pobre que as suas.

Dona Zefa é quem hospeda dr. Sael Castello Caballero e sua equipe, que vêm prestar atendimento na Serra da Guia. Dr. Caballero, também cubano, trabalha em colaboração com Dona Zefa e diz: “A gente tem sorte de ter Dona Zefa. Ela orienta, comunica, ensina, procura os pacientes. A gente escuta, respeita esse jeito de trabalhar dela. Algumas coisas são antigas, é verdade, já não se usam mais. Mas eu vim para trabalhar em parceria com essa cultura. Tenho que escutar essa gente. Nesse intervalo, nessa conversa, entra uma pactuação pra cuidar das coisas daqui e também pra manter as coisas que são científicas. A nossa parte é interagir. Porque, afinal, eles querem, e nós queremos, uma melhor qualidade de vida para a população”. Nesta parceria entre a fé e a ciência, existe uma fronteira, ainda que com contorno impreciso; Dona Zefa conta: “Quando é coisa de médico já mando embora. Não quero que pessoa nenhuma sofra enganada porque eu enganei. Outras vez, já vem do médico pra mim. É controlado”. Nesta visita à comunidade, o médico deparava-se com um surto de dengue e chikungunya; na Serra da Guia, como em tantos lugares acometidos por severa estiagem, as duas doenças proliferam-se ainda com mais força, pois, “por conta da seca, o povo estoca o de-beber em vasilhas, potes e cisternas, criando assim o ninho perfeito (água parada, morna e limpa) para as larvas do Aedes aegypti”. O autor pontua a advertência séria às autoridades responsáveis: “Tabelado e paliativo, o remédio para a falta de chuvas custa trezentos reais. Trata-se de um caminhão-pipa, particular, que traz até a Serra da Guia, por encomenda, um pedaço do Velho Chico — rio ancião, cansado. E cada vez mais magro”. Políticas históricas vividas.

 

Araquém Alcântara ["Mais médicos"]

Araquém Alcântara [“Mais médicos”]

A narrativa de um Brasil diverso constrói-se por entre estas personagens, as peculiaridades das falas regionais nos contextualizam, formando pequenos fragmentos de retratos das particularidades de diferentes lugares brasileiros, bem como de sua riqueza intrínseca, necessária. É bonito como a transição das paisagens acompanha a transição na descrição de hábitos cotidianos e no uso das falas, que quase ilustram a prosa de Antonio Lino.

Os espaços tornam-se vozes também, compostos de paisagem e pessoas, que se aprofundam umas nas outras. Como diz o grande geógrafo Milton Santos, em Metamorfoses do Espaço Habitado, “o espaço é igual à paisagem mais a vida nela existente; é a sociedade encaixada na paisagem, a vida que palpita conjuntamente com a materialidade”. A paisagem é história, passado e processo, é tudo o que percebemos, “tudo que nós vemos, o que nossa visão alcança”. Através das paisagens pelas quais perpassam os médicos em Branco vivo, por entre contextos diferentes de natureza, vislumbramos narrativas subjetivas e sociais, que, para além da questão da saúde, delineiam questões culturais, ambientais, políticas.

Altamira, no Pará, que assume o protagonismo em companhia dos índios Xikrin do Bacajá, etnia que é o último bastião isolado da etnia Xikrin e que quase foi extinta por um contágio coletivo de gripe, em que o autor chega, “ironicamente, durante um apagão elétrico”, para testemunhar as escatológicas consequências sociais e ambientais da hidrelétrica: “O noticiário me prevenira quanto à violência urbana, o esgoto correndo a céu aberto pelas ruas esburacadas, as remoções compulsórias e as casas populares recém-construídas já rachando nos reassentamentos da periferia, o descalabro no sistema de saúde, os preços altos de tudo […]. O projeto é antigo: nos anos 1970, a ditadura planejava coar o Rio Xingu com seis hidrelétricas. […] Trinta anos depois, Kararaô ressurgiu como Belo Monte”; passando pelo esquálido Rio Araçuaí, em Minas Gerais, em cujo entorno a indústria de celulose vem chupando os lençóis freáticos por toda a região, com o cultivo maciço de eucaliptos, criando uma paisagem que contém córregos de areia, completamente secos; até o “fim do mundo”, no Rio Grande do Sul: região habitada por trabalhadores que, sem-terras e alvos de violentas ações de reintegração de posse, conseguiram, após uma série de marchas e contramarchas, dividir entre si parte dos latifúndios improdutivos, criando o Assentamento Madre Terra – segundo Lino, “levou bem mais que duas horas de estrada de chão: demorou sete anos para que a dra. Alianne Olivera enfim chegasse ao Assentamento Madre Terra”. Por entre as ancoragens dessa viagem, a história do Brasil se mostra, marcada na paisagem.

Algumas crônicas são comoventes. No Amazonas, na Colônia Antonio Aleixo, distante trinta e cinco quilômetros do centro de Manaus, antigo leprosário e, atualmente, um bairro afastado, por entre as “ruínas da floresta atropelada”, Antonio Lino conhece casos de lepra e do forte preconceito, resquício da concepção medieval da lepra como punição divina, sofridos pelos doentes que foram isolados compulsoriamente. Dentre eles, Seu Aníbal, que vive em um flutuante de madeira, no Lago do Aleixo. A médica e a enfermeira que trabalham na região, para chegarem à casa de Seu Aníbal, porém, tomam um caminho que não lhes molha os pés, descendo “um barranco minado de sacos de lixo” e caminham até o flutuante, “afundado no chão vazio”. Como conta Lino, “a ilha de água secou sob os pés de Seu Aníbal. Nos últimos anos, o Lago do Aleixo vem acumulando montes de areia e cimento que a chuva traz de inúmeras ocupações imobiliárias, em geral clandestinas. Agravado pela porquice de certas indústrias instaladas no bairro, o assoreamento tem alargado o ralo das águas. As estiagens sazonais estão mais severas”. Seu Aníbal, bem adaptado às sequelas nas mãos e nos pés e já há muitos anos curado da hanseníase, precisa livrar-se, agora, da depressão. “Mas só a cheia do lago restituirá realmente seu humor costumeiro, junto com a renda perdida pela debandada das canoas”, que alugavam cabos náuticos para atracarem suas embarcações ao flutuante, gozando ainda da vigia do morador. “Balsas, barcos e outros flutuantes compartilham o quintal de Seu Aníbal, naufragados no seco”.

Passando pelo cerrado brasileiro, pelo interior de Goiás, a última parada do livro é São Paulo. Nesta viagem por entre pontos de vista que se encontram, se amalgamam e se tornam longínquos, neste caleidoscópio de micro-histórias do Brasil, é de uma sutileza comovente o desfecho com o diálogo com um catador de lixo. Neste bioma específico da megalópole, eis um olhar muito peculiar sobre as cidades: pessoas que, como Marquinhos, olham para detalhes abandonados no lixo ou no chão, que, ao senso comum, são meros dejetos. Moradores de rua trabalhadores, coletores profissionais, intelectualmente curiosos; inversões do senso comum. Ao perguntar-se sobre que brasis aqueles médicos iam encontrar, Antonio Lino também assume um ponto de vista muito peculiar para observar o Brasil, o do brasileiro que acompanha estrangeiros que cuidam dos brasileiros dos lugares mais remotos. Brasileiros de quem os brasileiros não se dispõem muito nem a se lembrar que existem.

“Assim falou; e sorriu, com seus dentes esparsos, Atena, a deusa de olhos esverdeados, revelando ao viajado Ulisses a verdadeira identidade de sua ilha original, e o fim de sua odisseia. Atena transformada em Marquinhos — agora te mostrarei esta terra, Ítaca, para que acredites”.

 

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Antonio Lino concedeu uma entrevista a’O Benedito:

 

O Benedito: A narrativa sobre o quase extermínio dos índios Xikrin por contágio de gripe nos dá uma ideia das catastróficas decorrências sociais e humanas. Gostaria que você falasse mais sobre a experiência em Altamira, um ponto nevrálgico no Brasil – comentado por autores críticos como genocídio, travestido de política econômica e social, sob o manto do mito do progresso.

 

Antonio Lino: Belo Monte era uma tragédia anunciada. Ver a tragédia consumada é duro, muito duro. A caminho das aldeias xikrin, passei em frente às turbinas de uma das casas de força, aquele paredão de cimento desfigurando a Volta Grande. É impressionante, desconcerta, incomoda. Porque aquela paisagem, esdrúxula e magnífica ao mesmo tempo, comprova o tamanho do nosso engenho (somos capazes de produzir energia elétrica coando um rio!) e também da nossa estupidez. Converso com os índios, vejo o rio seco, sem peixe, tudo o que os burocratas garantiram que não ia acontecer está acontecendo. A experiência é nauseante.

 

O Benedito: Gostaria também que você pudesse falar mais sobre a situação dos quilombos e quilombolas que visitou. É muito bonita a reflexão que você faz ao passar pelo forte português no rio Guaporé. A relação com o monumento construído e o monumento cultural, imaterial, por você sugerida, nos leva a indagar as existências restritas ao isolamento: de que modo isso representa um “dos brasis”?

 

Antonio Lino: Da (pouca) experiência nas comunidades quilombolas (visitei apenas duas), acabei pensando nessas marcas de açoite da nossa história, em dinâmicas da escravidão como a fuga e a resistência, e não só entre os negros, se considerarmos o tempo das correrias entre os índios. Essa violência esgarça identidades. As matriarcas quilombolas que eu conheci, por exemplo, já não lembram mais os causos dos antigos, a memória vai perdendo os vínculos com o tempo do cativeiro, até porque o isolamento era um escudo não só contra os capitães do mato, mas contra os estigmas que perseguiam os negros. Em muitos casos, mais que preservar, é preciso reconstruir esses monumentos imateriais. O reconhecimento e a demarcação das terras quilombolas é um tijolo disso.

 

O Benedito: O Programa Mais Médicos foi alvo de muitas polêmicas políticas. Agora, que completa quatro de existência, qual seu alcance em termos de expectativas futuras, pelo que você apurou através das conversas com os médicos participantes?

 

Antonio Lino: Os médicos cubanos que acompanhei para escrever o livro já encerraram o contrato com o programa, a maioria já deixou o Brasil. Os brasileiros têm ocupado as novas vagas. Mas enquanto durar o governo Temer, a expectativa é de desmonte. É não é só do Mais Médicos: é desmonte do SUS. Quem puder pagar que contrate seu plano de saúde… o Ministro tem sido bastante explícito quanto aos interesses que representa.

 

O Benedito: Você diz no início do livro que escolheu com cuidado os lugares visitados e a reunião de suas narrativas, enquanto representantes da diversidade desses lugares e de seus habitantes, compõe um quadro complexo do Brasil. Após sua viagem, há algo que tenha lhe parecido como passível de uma identidade do brasileiro?

 

Antonio Lino: Não me arrisco nessa seara. É coisa pra gente grande, questão pros nossos intérpretes (se é que nos restou algum depois do Antonio Cândido). Eu sou só um cronistinha. No limite da prepotência, posso no máximo defender a atualidade do Mário de Andrade, não no sentido alegórico que acabou se difundindo, como se o Macunaíma simbolizasse uma identidade brasileira, mas, pelo contrário: tomando o herói sem nenhum caráter justamente como a impossibilidade dessa síntese.

 

Araquém Alcântara ["Mais médicos"]

Araquém Alcântara [“Mais médicos”]

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trecho:

 

“ […] Seu Raimundo, o dono da rede que acaba de ser puxada, nunca se arriscou tão longe:

— Acho melhor aqui, com os pés no chão.

E aponta para atrás do horizonte, onde os barcos estacionam (sic) e os pescadores mais corajosos pernoitam:

— Lá, só vê água e universo”.

 

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BRANCO VIVO

Autor: Antonio Lino, Araquém Alcântara
Editora: Elefante
Preço: R$ 31,50 (252 págs.)

 

 

 

 

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