“– O mundo é medíocre – Jed terminou por dizer. – E quem cometeu esse assassinato aumentou a mediocridade do mundo”.
M. Houellebecq, O mapa e o território.
A revista satírica Charlie Hebdo, cujas ilustrações caricatas e charges críticas provocaram a ira fanática supostamente vingativa de um grupo islâmico radical na semana passada, trazia na capa de sua última edição o polêmico escritor francês Michel Houellebecq, desenhado como espécie de mago, a dizer uma frase que resume com ironia o cenário de seu último livro, Soumission, lançado agora na França: “Em 2015, eu perco meus dentes. Em 2022, eu cumpro o Radamã”. A narrativa supõe um mundo tiranizado por um governo islâmico radical. O autor, conhecido por suas posições polêmicas, muitas vezes mal-educadas, já havia sido processado por afirmações na mídia francesa como “o islamismo é a religião mais estúpida” e, prudente, interrompeu por ora o lançamento do livro. No Brasil, a editora Alfaguara declarou a intenção de sua publicação neste primeiro semestre.
Houellebecq em 2010 venceu o importante Prêmio Goncourt de melhor romance do ano, com O mapa e o território, também polêmico, porém em outro assunto: a arte contemporânea e a questão da representação, sob o viés da apropriação de informações e da cópia. No romance, o autor tece observações mordazes, contemporâneas, concernentes aos valores que regem a produção artística, a crítica e o mercado de arte. O protagonista, deste romance que é considerado de um “realismo depressivo” conforme aponta em artigo Alexandre Pilati, professor de literatura brasileira na UNB, desenvolve a teoria da existência de uma super-consciência do mundo, que renegaria ilusões, apesar de fabricá-las, construindo, com ironia e desesperança, um mundo de relações de espetáculo.
O romance perpassa a vida do artista plástico Jed Martin, como uma perturbadora fábula sobre arte, dinheiro, valores. O autor, para descrever produtos, lugares e personalidades, lançou mão da reprodução literal de notas publicadas originalmente em sites como Wikipédia, bem como em panfletos e reportagens, fato que colocou o livro como alvo e propulsão de uma intensa discussão sobre os limites entre citação e plágio.
Michel Laub, em resenha publicada no jornal Folha de São Paulo, entende que os livros de Michel Houellebecq, no geral, possuem alma: “Por ‘alma’ entende-se uma abordagem que não adere à linguagem, às ideias e ao gosto dominantes em sua época. Houellebecq sempre conseguiu isso de forma paradoxal, com toques de ênfase, sarcasmo e agudez ensaística em meio à mão pesada dos enredos e a uma prosa entre o mecânico e o “informativo”, ambas características dos best-sellers. Exemplos desse tom não faltam em O mapa e o território. […] À medida que a trama se desenvolve, porém, o que de início soa como pastiche de ficção barata, catálogo de galeria ou verbete da Wikipedia – origem das acusações de plágio que o romance sofreu – ganha um caráter mais ambicioso. O tema é a obsolescência do indivíduo num mundo pós-industrial, saturado de tecnologia e vazio. E que uniformiza o trabalho, o consumo, as relações amorosas, a arte. Houellebecq não vê o fenômeno sob ótica nostálgica nem apocalíptica. A abordagem é híbrida, ao mesmo tempo melancólica e satírica, contundente sem ser moralista”.
O livro, apesar da premiação, recebeu críticas negativas no Brasil. Segundo o crítico literário e tradutor Rafael Dyxklay, em resenha publicada no jornal Rascunho, “seu estilo busca a radicalidade da arte contemporânea. A apropriação de aspectos do best-seller, o trabalho com clichês, a estética do kitsch, observações sensacionalistas e a tentativa de um estilo “branco” ou de uma ausência de estilo — em analogia a artistas como Koons, que nem mesmo tocam em seus trabalhos — são os motivos do repúdio e da devoção em torno de sua obra”. Para Dyxklay, se o funcionamento da obra equivalesse à sua ambição “teríamos uma obra tão brilhante quanto foi considerada, e seu autor mereceria o rótulo — dado invariavelmente por estrangeiros — de melhor autor da França atual. No entanto, embora muito acima de seus companheiros de alta vendagem, Houellebecq nivela por baixo os grandes mestres da contemporaneidade, quando a eles comparado. Duas perguntas surgem, afinal: de que maneira o romance falha e por que o autor é supervalorizado?”. O romance, segundo sua análise, é predominantemente auto-explicativo, possui uma “retórica insuficientemente madura para concatenar tantos âmbitos do conhecimento humano sem cair na generalização ingênua e pouco convincente” e, ao falar da arte contemporânea, atua de maneira análoga ao filtro do sucesso comercial, que “funciona para a crítica estrangeira exatamente como para a decisão do autor francês de escrever um romance sobre arte contemporânea citando apenas os dois artistas que dominam — e não “dividem” — o mercado”. Comparando o sucesso de Houellebecq ao de Paulo Coelho, argumento decisivo, o crítico conclui: “Precisamente como todo o resto dos artistas plásticos de hoje, seu conterrâneo mais jovem Mathias Énard, autor de um romance de quinhentas páginas e uma única frase de título La zone, considerado por alguns franceses como “o romance da década, senão do século”, é excluído automaticamente da disputa pelo trivial rótulo de maior autor francês por três motivos simples: sua vendagem é muito mais baixa, sua dificuldade de leitura bem maior e, em países como o Brasil, sua obra, vários anos após seu lançamento, ainda não foi traduzida”.
Para o crítico Kelvin Falcão Klein, conforme resenha publicada no jornal O Globo, em seus livros “Houellebecq faz uma espécie de arqueologia do tempo presente, ao mesmo tempo em que considera esse tempo já terminado, extinto”. Para Klein, em O mapa e o território, a prosa de Houellebecq “inaugura um estranhamento diante daquilo que temos de mais corriqueiro nas sociedades, criando algo como uma etnografia pós-histórica: olhando o humano como estranho, atípico e ultrapassado, uma sorte de relíquia, de curiosidade extravagante”. Segundo sua interpretação, os protagonistas do autor francês “são observadores da contemporaneidade — seus narradores, no entanto, vivem em um tempo póstumo, um tempo posterior. O filtro da ficção de Houellebecq está em escolher aquilo que se deve separar e resgatar da humanidade depois de seu fim. Sua literatura não está “diante do abismo”, preocupada com a iminência do fim. Trata-se, por outro lado, de uma literatura que já vive no interior desse fim, póstuma já em seu nascimento, suspensa no tempo do futuro”.
Autor: Michel Houellebecq
Editora: Record
Preço: R$ 41,30 (400 págs.)