(Editora Perspectiva, 1977, tradução de Aurora Bernardini)
Eu tinha Ka; nos dias da Branca China, Eva, descendo da neve do balão de André, ou vindo a voz “vai!”, deixados nas neves esquimós os rastros dos pés nus, – esperança – estranharia, ao ouvir essa palavra.
Em Ka, o sábio do ano 2222 põe o magro crânio reluzente sobre o dedo ensombreado. A movimentação da cena estática é estonteante. O texto é um acontecimento literário e filosófico profundo. E, “naquela época”, em que se passa a narrativa, pretérito imperfeito amalgamado ao futuro do presente – concretizado pela enigmática inscrição numa pedra, “se a morte tivesse os teus cachos e os teus olhos, eu quisera morrer” –, os homens “ainda acreditavam no espaço e pouco pensavam no tempo”: a criação de cenas intelectuais e fantásticas – ideias personificadas ou coisificadas – na prosa de Khlébnikov sobrepõe-se de maneira vertiginosa. Ka parece querer ser encenado como um filme surrealista – um filme-teatro, que não se decidisse enquanto palco ou coxias, cenário absoluto de si mesmo.
O seu primeiro parágrafo é uma apresentação magnífica, da poesia de sua prosa, da personagem título e da questão, central no conto, do tempo – “Ka vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos)”. Há, ali, tanto o tempo como os tempos. E a localização temporal do narrador, conquanto “tinha Ka”, é: “nos dias da Branca China”, expressão que refere-se, como esclarece a nota da tradutora, à Europa, ao entrar na época da aeronáutica; seu tempo é um espaço, marcado pelo tempo (época) de domínio do espaço aéreo. Tautologia onírica, que resume a ambigüidade de Ka, companheiro da morte – vida na morte –, é fusão do tempo e do espaço.
Uma novela rapsódica, um poema épico em prosa, conto-canto ou viagem transespacial e transtemporal. Khlébnikov criou, através da prosa deste seu Ka, uma charada – fenomenológica e poética, histórica e linguística.
As eruditas notas da estudiosa Aurora Bernardini, responsável pela excelente tradução, nesta edição oferecem contextualizações valiosas. Em uma das primeiras notas, ela nos indica o significado de “Ka”, sombra da alma:
“A consoante K, de acordo com Khlébnikov (Cf. “Zanguési”) significa a ausência de movimento, o repouso de uma rede de n pontos, a conservação, por parte destes últimos, de sua posição recíproca – o fim do movimento.
A consoante K rege o resto da palavra, constituída de uma única outra letra, a vogal a, começo do alfabeto, e começo, talvez, em geral. K é o ponto básico que rege a rede dos pontos móveis do conto. Historicamente, trata-se de uma das noções espirituais dos egípcios, de mais difícil compreensão. De fato, de acordo com os primeiros egiptólogos, o Ka expressa “o ser, a pessoa, a individualidade”.
Outros estudiosos designam-no como sendo “uma projeção viva e colorida da figura humana, um duplo que reproduzia em seus mínimos detalhes a imagem inteira do objeto ou do indivíduo ao qual ele pertencia”.
É esta, sem dúvida, a concepção que mais se aproxima do Ka de Khlébnikov” (pp 39, 40).
O próprio título é um dos marcos significativos ao longo dos quais a narrativa se desenrola e, nas palavras de Bernardini, “cujos campos de força se entrecruzam no conto inteiro”. Em Ka, as primeiras palavras do narrador são: “Eu tinha Ka”; logo em seguida, explica:
“[…] Ka é a sombra da alma, seu sósia, enviado para junto daquelas pessoas, com que sonha o senhor roncador. Para ele não há barreiras no tempo; Ka vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos).
Aconchega-se comodamente nos séculos, como numa cadeira de balanço. Não é acaso verdade que também a consciência reúne os tempos juntos, como a poltrona e as cadeiras na sala de visitas?” (p. 13).
Uma função – “a sombra da alma” –, mas também singular e subjetivo – “[…] eu o amei por seu gênio de pássaro, despreocupação, espírito” –, Ka é uma complexa metáfora que abarca opostos, une a morte e a vida, o espaço e o tempo. Resguarda a verdade da linguagem como tenebroso labirinto. A ambivalência de Ka amalgama em si toda a potencialidade da consciência que sai de si e vai ao mundo, retorna a si e traduz-se em eu. Hylé – matéria sensível e subjetiva da consciência – concretizada.
O narrador em primeira pessoa tem seu Ka, no qual seu próprio ‘eu’ reflete-se; encontra-se, graças a seu Ka, com o faraó Amenófis IV – personagem que é tônica temática do conto e que conduz a temporalidade histórica da narrativa, cuja história, porém, aparece sob acontecimentos protagonizados por Ka – que, por sua vez, tem seu próprio Ka. Trata-se da consciência poética refletida em seu próprio reflexo. Como analisou Lidia Neghme Echeverría, o livro, assim,
“articula uma ‘viagem imaginária’ do ‘eu’ e do Ka. Esse motivo é recorrente, especialmente, na poesia épica. […] Mas ao morrer, Amenófis IV pede ao seu Ka que lhe transmita o espírito ao mais digno dos homens. Este destino será assumido pelo ‘eu’.
O autor engasta sua ideologia nas reflexões do “eu”. Cria um efeito de espelho: o ‘eu’ apresenta-se, no início, como um escritor da ‘humanicultura’ (p. 13). […] O Ka perfaz a essência/aparência do homem no mundo. Perderemos a identidade assumindo a máscara dum outro ser? No capítulo III, apresenta-se a ironia do ‘eu’: joga com a vontade do mundo” (p. 81).
O eu, reflexo da consciência, resguarda o espelhamento com o mundo como outro, alheio. Khlébnikov, matemático e físico, com seu característico pontilhismo poético articula o problema, de maneira cênica e lúdica. A questão do espelhamento do eu desenvolve-se da ambivalência mútua do tempo e do espaço no conto, no duplo que forma-se entre o onírico e a vigília, a vida e a morte, a essência e a aparência.
Os tempos se misturam, eventos ecoam numa dialética contínua, desafiando o efêmero. Conforme conclui Todorov,
“o importante não é, entretanto, o tempo ou o espaço, mas, como escreve Khlébnikov, ‘a medida, a ordem e a harmonia’. Sua finalidade primeira é denunciar o assim chamado acaso, mostrar que não há nada de fortuito, que o arbitrário nada mais é que uma relação ainda ignorada. A harmonia universal reina; o homem deve honrá-la com um cálculo generalizado que revelará suas regras. ‘As leis do mundo coincidem com as leis do cálculo’”.
A própria língua revela-se uma espécie de álgebra. E o problema deste conto em forma de charada, matemático e musical, novamente reflete-se na vida dupla que as próprias palavras tem, para Khlébnikov, enquanto expressão máxima de som e de sentido. Reflete-se também nas palavras como signos – amalgamados –, naquilo que embasam uma lógica de relações de analogia ou contiguidade aplicadas como relações mágicas – assim como o próprio Ka, réplica da alma, “força vital misteriosa” que, na alma, segundo explica nota da tradutora,
“continua a viver como um reflexo mágico da vida terrestre, no túmulo do falecido, ou mesmo nas reproduções desses túmulos. […] Operações mágicas lhes conferem eficácia e todas essas réplicas em miniatura tem a capacidade de atrair Ka, pois ele é incapaz de perceber a diferença entre estas e a realidade”.
A própria língua, como forma de pensamento, é o tema central do conto. Metaforizada, aparece mesmo na figura do selvagem, que aparece no conto de maneira explícita e também sugestionada, como a sociedade de macacos na qual Ka cai – cenário enigmático para a morte do faraó Amenófis IV –, e que, enquanto figura metonímica da linguagem pejorativa estereotipada, resguarda em si a imagem do outro por excelência; outrossim, enquanto pensamento, caracteriza-se pela doação de extrema significância aos signos e a tudo a se referem pelas leis de similitude. Assim como Ka. Conforme analisa A. M. Ripelino: “Como nas crenças dos primitivos, no espaço verbal de Khlébnikov, a árvore é um ser humano e ao mesmo tempo um deus panteísta”. Diz o narrador do conto:
“Eu moro na cidade, onde escrevem “banhos gratuitos”, onde os selvagens espertos olham com olhos cautelosos. Onde sobem pelas árvores graças à criação de coelhos. […] nas ruas pastam velofinos rebanhos de pessoas. Eu possuo meu próprio rebanho de pessoas, e em nenhum lugar sonha-se tanto com a coudelaria de Khrenov da estirpe humana como aqui. […] E eu escrevi um livro sobre a humanicultura, mas em volta vagueavam velofinos rebanhos de pessoas. Eu possuo meu próprio pequeno zoológico de amigos, que me são caros pela alta linhagem” (pp. 13, 14).
Velofinos rebanhos de pessoas. A poética de Khlébnikov resguarda a exata hibridez das imagens e das palavras justapostas – velocinos e finos coexistem indubitavelmente –, método conhecido como “verbocriação”. Remete a um só tempo a um animal e a um humano: ironia cáustica. Desdobramento poético da noção de duplicidade harmônica que atravessa Ka de maneira icônica. Na imagem do pensamento em estado selvagem, mágico, no movimento reflexivo da consciência da qual decorre um eu que sai de si ao mundo para voltar a si e formar-se, nas palavras justapostas que resguardam o outro amalgamado em si. Na viagem transtemporal que cala os tempos em um só uníssono, alhures. Khlébnikov cria uma epopéia universal.
As palavras, para ele, vivem uma vida dupla, divididas entre a primazia do som ou da razão. Há palavras-sons, que ultrapassam a razão e atingem a alma. E Ka ensinava que há palavras, com as quais é possível ver, palavras-olhos e palavras-mãos, com as quais é possível fazer. Segundo Boris Schnaiderman, Khlébnikov “deslocou em poesia a ênfase, do som (como faziam os simbolistas) para o sentido. Toda a sua obra é carregada de sentido. Os sons, mesmo quando não pertencem a palavras existentes, estão completamente semantizados”; a contribuição do poeta russo na prosa foi justamente conseguir unir a ela suas preocupações poéticas. Nas palavras de Schnaiderman:
“É uma prosa diferente da usual, a prosa de um grande poeta, que tem plena consciência do valor dos elementos sonoros. Isto não significa sempre apagar a fronteira entre o mundo da prosa e o mundo da poesia, porém muitas vezes, pelo contrário, trabalhar no limiar, na crista, utilizando os recursos de uma e de outra e tornando este limiar mais aparente”.
O entroncamento da poesia e da prosa espelha-se na relação do tempo com os tempos, que revela um tempo pessoal de Khlébnikov. Um tempo de ressonância de si mesmo, figura mitopoético que embala um mundo “onomatomorfo”. Mundo em que as palavras carregam verdades ocultas.
Ka talvez seja a própria expressão da literatura como outro da teoria.
Autor: Velimir Khlébnikov
Editora: Perspectiva
Preço: R$ 20,30 (94 págs.)