Adeus e boa noite a todos, repeti. Encostei a cabeça para trás e pus- me a olhar para a lua.
Requiem – Uma alucinação, escrito em 1991, é uma homenagem do italiano Antonio Tabucchi à cidade de Lisboa e à língua portuguesa. O romance é o único que Tabucchi escreveu em português. Nele, seu protagonista, num estado entre a realidade e o sonho, perambula pela cidade que o autor escolheu para viver e morrer: em seu caminho errático, entre lucidez e torpor, encontra-se com vivos e com mortos e segue em direção ao encontro que tem marcado, ao meio-dia, com Fernando Pessoa. Revivendo partes de seu passado, entre encontros inusitados, ele passa por vielas do inconsciente, criando um requiem pessoal de música orgânica que abarca toda a ambiguidade humana. Requiem, explica Tabucchi na nota introdutória, executado “numa gaita de beiços, que se pode levar no bolso, ou num realejo, que se pode levar pelas ruas”.
Um belo romance, de um sonho acordado em que Tabucchi é personagem de si mesmo. Sua narrativa percorre seu caminho em alucinação, numa atmosfera onírica, porém calcada em concretudes de esquinas, ruas, comidas portuguesas, de modo que a protagonização é partilhada pelo narrador e pela própria cidade.
Segundo o escritor português Pedro Belo Clara, em artigo escrito ao blog Letras in.verso e re.verso, o “eu” da narrativa, “além da peregrinação deambulatória que empreende, realiza, em pano de fundo, uma certa expiação: o murmúrio da derradeira oração e das derradeiras palavras que aos seus mortos, por tão distintas razões, ficaram por dizer. Assim se compreende a escolha do título que encabeça a obra: “réquiem”, isto é, um elogio fúnebre que procura efectivar a despedida final, o saldar do que pendente permaneceu junto dos idos relacionamentos. É, por isso, natural o enfoque realizado na relação do “eu” com as diferentes personagens, ora vivas ora mortas, que no caminho se lhe cruzam”.
No posfácio, escrito pelo próprio Tabucchi, o autor fala da dificuldade de escrever em uma língua que não a sua natal e conta de um sonho que tivera com seu pai, no qual este falava-lhe em português.
No Brasil, a Cosac Naify desde 2010 tem publicado traduções de alguns dos livros de Tabucchi, entre eles Afirma Pereira [2013] e Noturno indiano [2012].
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Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois pensei: não posso chamar-lhe ‘gajo’, é um grande poeta, talvez o maior poeta do século XX, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho. Mas entretanto começava a aborrecer-me, o sol dardejava, o sol do fim de julho, e pensei ainda: estou de férias, estava tão bem lá em Azeitão, na quinta dos meus amigos, por que é que aceitei este encontro aqui no cais?, tudo isto é absurdo. E olhei aos meus pés a silhueta da minha sombra, e também me pareceu absurda, incongruente, não tinha sentido, era uma silhueta curta, esmagada pelo sol do meio-dia, e foi então que me lembrei: ele tinha marcado às doze, mas talvez quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite. Levantei-me e percorri o cais. Na avenida, o trânsito tinha parado, passavam poucos carros, alguns com chapéus de sol no porta-bagagem, era tudo gente que ia para as praias da Caparica, estava um dia quentíssimo, pensei: o que faço eu aqui no último domingo de julho?, e acelerei o passo para ver se chegava o mais rapidamente possível a Santos, talvez no jardim estivesse um pouco mais fresco.
O jardim estava deserto, estava só o homem dos jornais em frente da sua banca. Aproximei-me e o homem sorriu. O Benfica ganhou, disse radiante, já viu as notícias? Fiz sinal que não, que ainda não tinha visto e o homem disse: foi um jogo noturno em Espanha, um jogo de beneficência. Comprei A Bola e escolhi um banco para me sentar. Estava a ler como se tinha passado o lance do jogo que tinha levado o Benfica a marcar o golo da vitória contra o Real Madrid, quando ouvi dizer: bom dia, e levantei a cabeça. Bom dia, repetiu o jovem de barbas que estava na minha frente, precisava da sua ajuda. Ajuda para quê?, perguntei eu. Ajuda para comer, disse o rapaz, há dois dias que estou sem comer. Era um rapaz dos seus vinte anos, de blue jeans e camisa, que me estendia timidamente a mão como se me pedisse esmola. Era loiro e tinha duas grandes olheiras. Dois dias sem tomar droga, disse eu instintivamente, e o jovem replicou: é a mesma coisa, também é comida, pelo menos para mim. Em princípio sou a favor de todas as drogas, disse eu, leves e pesadas, mas só em princípio, na prática sou contra, desculpe, sou um intelectual burguês cheio de preconceitos não posso aceitar que você faça uso de drogas neste jardim público oferecendo uma imagem desoladora do seu corpo, desculpe mas é contra os meus princípios, talvez eu pudesse admitir que você se drogasse na sua casa como se fazia antigamente, na companhia de amigos inteligentes e cultos ouvindo Mozart ou Erik Satie. A propósito, acrescentei, gosta do Erik Satie? O Rapaz Drogado olhou para mim com ar espantado. É um amigo seu?, perguntou.
[trecho divulgado no blog da Cosac Naify]
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Autor: Antonio Tabucchi
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 23,03 (128 págs.)