matraca

Do assassinato de Leon Trotski

3 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Ótimo lançamento da editora Boitempo, a premiada obra O homem que amava os cachorros, escrita pelo cubano Leonardo Padura é e não é uma ficção. A história retoma os últimos anos da vida de Leon Trotski, seu assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, o homem que empunhou a picareta – um personagem sem voz na história mas que recebeu, como militante comunista, esta única tarefa: eliminar Trotski, o teórico russo e comandante do Exército Vermelho durante a Revolução de Outubro, que fora exilado por Joseph Stalin. São descritas a adesão de Mercader ao Partido Comunista espanhol, o treinamento em Moscou, a mudança de identidade e os artifícios para ser aceito na intimidade do líder soviético, numa série de revelações que preenchem uma história dissimulada e mistificada.

A narrativa, que se passa em 2004, retoma a história a partir do encontro do narrador, Iván – espécie de alter-ego de Padura –, com um homem que passeava com seus cães, a quem ele passa a chamar “o homem que amava os cachorros” e que confia a ele histórias sobre Mercader, de quem fora um amigo bastante próximo, e, portanto, de quem conhecia alguns detalhes íntimos.

Ao narrar um dos crimes mais reveladores do século, Leonardo Padura realiza uma fascinante investigação sobre as contradições das utopias libertárias que moveram o século XX e oferece um panorama radical a respeito do stalinismo e seus crimes. Não se trata apenas da morte de uma pessoa por um meio covarde escolhido por um infiltrado que soube manipular e trair a confiança de amigos e o amor de uma mulher: o principal relato é o da perversão da maior utopia da história ou, nas palavras do narrador, como “um filho da puta ajudou Stalin a dar cabo de 20 milhões de pessoas em nome do comunismo”.

 

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– Sim, diga-lhe que sim. Ramón Mercader recordaria pelo resto de seus dias ter descoberto a densidade doentia que acompanha o silêncio no meio da guerra segundos antes de pronunciar as palavras destinadas a mudar sua existência. O estrépito das bombas, dos tiros e dos motores, as ordens gritadas e os uivos de dor entre os quais tinha vivido durante semanas tinham se acumulado em sua consciência como os sons da vida, e a súbita queda daquele mutismo espesso, capaz de provocar um desamparo muito parecido com o medo, transformou-se numa presença inquietante quando compreendeu que, atrás daquele silêncio precário, podia esconder-se a explosão da morte. Nos anos de prisão, dúvidas e marginalização a que o conduziram aquelas cinco palavras, Ramón se dedicaria muitas vezes ao desafio de imaginar o que teria acontecido com sua vida se tivesse dito que não. Insistia em recriar uma existência paralela, um trajeto essencialmente romanesco no qual nunca deixara de se chamar Ramón, de ser Ramón, de agir como Ramón, talvez longe de sua terra e suas lembranças, como tantos homens de sua geração, mas sendo sempre Ramón Mercader del Río, de corpo e, sobretudo, alma.

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O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS

Autor: Leonardo Padura
Editora: Boitempo Editorial
Preço: R$ 48,30 (600 págs.)

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