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Autorretrato num espelho convexo

5 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

John Ashbery

John Ashbery é conhecido por uma poética do estranhamento, que explora o lirismo das incoerências e descontinuidades do fluxo da vida. A professora Viviana Bosi, no belo estudo John Ashbery – Um módulo para o vento, analisa essa poesia, que movimentando-se entre o padronizado e a impermanente, capta a experiência em sua velocidade e inapreensibilidade. A reflexão de Viviana fundamenta-se sobretudo na sua tradução para o português do longo poema “Autorretrato num Espelho Convexo”, escrito em 1975 e considerado texto emblemático da pós-modernidade.

O estudo, que foi originalmente uma tese defendida na USP, contextualiza a produção do poeta em relação aos movimentos literários do século XX. A localização estético-histórica apoia a interpretação dos mais de quinhentos versos do poema traduzido, pois mostra o diálogo que Ashbery trava com o maneirismo, principalmente com o quadro de Parmigiano que lhe dá nome e inspiração para as questões reflexivas do espelho e do autorretrato.

No livro, Viviana Bosi cita a definição do próprio poeta sobre sua poesia: “[…] nunca pretendi que minha poesia fosse alguma espécie de demolição da poesia. Eu considero a poesia muito importante e se você a destruir, precisará inventar outra coisa que possa tomar o seu lugar para todos nós, e esta coisa provavelmente vai ser poesia. O que eu quero fazer, realmente, é estender a poesia mais do que derrubá-la, torná-la mais inclusa e diversa. Penso que a poesia deve ser uma nova experiência”. A crítica, analisa: “Se Ashbery não acredita mais no projeto radical das vanguardas, ao mesmo tempo sente dificuldade em criar “produtos” sólidos como as mercadorias. O poema continua sendo expressão do novo, momento lírico fugaz. A arte tem o seu lugar indispensável e nada pode substituí-la. Os procedimentos formais antes considerados chocantes são para Ashbery, parte de uma tradição poética que ele pode explorar. […] Questionando o status da arte, reflete sobre a ambigüidade da obra, que é expressão criativa mas também objeto de culto institucional”.

Viviana cita também um depoimento dado em entrevista pelo poeta, em que ele fala: “A maioria das coisas inconseqüentes são belas de alguma forma e a inconsequência é o que faz a arte experimental ser bela, assim como as religiões são belas, por causa da forte possibilidade de que sejam fundadas no nada… Eu também sinto isso mesmo em relação à obra de grandes pintores modernos, como Jackson Pollock ou Mark Rothko. Agora, todo mundo os aceita como artistas importantes, e no entanto, será que seu trabalho tem alguma valor? Há uma possibilidade de que não, embora eu acredite que sim e deseje que ele seja real. Mas, penso que parte da força de sua arte está, na verdade, nesta dúvida – se há realmente arte ali”. A isso, ela comenta sobre a dúvida acerca do limite entre a lucidez da escolha construtiva: “Tal questão aponta para uma reelaboração das vanguardas, que permitiram essa ampliação de território na esfera da criação”.

John Ashbery, nascido em 1927, é talvez o poeta americano mais relevante da atualidade. Publicou até hoje mais de vinte livros de poesia, é vencedor de inúmeros prêmios literários, como o Pulitzer, muito admirado pela crítica literária – teve sua produção poética elogiada por autores com nomes de peso como Harold Bloom. Alinha-se sua poesia a uma tradição anti-simbolista, pelo viés surrealista. Ashbery é tido como o maior representante da chamada “Escola de Nova Iorque”, escola estética que desenvolveu-se nos anos 1950 e 1960, buscando o que Ezra Pound definira como logopeia, poesia que, mais que tudo, brinca com ideias.

Em seus poemas, é muito presente a memória tátil, notadamente através da referência constante a pequenos objetos, que caibam nas mãos, e que servem-lhe como bases reflexivas.

Em português[i], além do estudo de Viviana Bosi, há publicado apenas, pela editora portuguesa Relógio D’água, uma breve antologia, intitulada Auto-retrato num Espelho Convexo e Outros Poemas.

A Edusp disponibiliza trecho para visualização.

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“[…] aquele que amplia o ‘espaço dos sonhos’ em que vivemos, capaz de recuperar a dimensão livre da percepção infantil, que vê com o mesmo encanto uma bolinha de gude rolando ou a passagem de um cometa. Sem o constrangimento da perspectiva analítica, recuperam o sem-fundo do supra-real.” – Viviana Bosi.

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viviana bosi

 

JOHN ASHBERY – UM MÓDULO PARA O VENTO

Autor: Viviana Bosi Concagh
Editora: Edusp
Preço mínimo: R$ 20,0 (344 págs.)

[disponível apenas em sebos]

 

[i] O poeta Antonio Cicero, com Waly Salomão, traduziu um dos poemas de John Ashbery, conforme divulgado em seu blog.

 

John Ashbery: “What is poetry” / “Que é a poesia”: tradução de Antonio Cicero e Waly Salomão

 

Que é a poesia

 

A cidade medieval, com frisa

De escoteiros de Nagoya? A neve

 

Que veio quando queríamos que nevasse?

Belas imagens? Tentar evitar

 

Ideias, feito neste poema? Mas

Voltamos a elas como a uma esposa, largando

 

A amante que desejamos? Agora

Terão que acreditar

 

Como acreditamos. Na escola

O pente fino tirou todo pensamento:

 

O que sobrou era feito uma planície.

Feche os olhos, para senti-la por milhas em torno.

 

Abra-os agora num caminho estreito e vertical.

Ela talvez nos dê – o que? – algumas flores em breve?

 

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