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Etnografia da música

12 maio, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Rondó Suyá, fotografia de Anthony Seeger, 1982

Interessante lançamento no Brasil, o livro Por que cantam os Kisêdjê, do antropólogo Anthony Seeger, apresenta um profundo estudo da música e de seu papel enquanto elemento relevante ao processo social da comunidade Kisêdjê. O estudo é resultado de mais de quinze anos de pesquisa de Seeger, que, nascido no seio de uma família de músicos respeitados, sempre interessou-se por música e performances rituais, e chegou ao Brasil, especificamente à comunidade dos Kisêdjê, como um dos pesquisadores do Harvard Central Brazil Project, coordenado por Maybury-Lewis. Seeger conviveu com os Kisêdjê por extensos períodos, ao longo dos quais pode produzir descrições etnográficas detalhadas e originais sobre eles. Os apontamentos de Seeger inovaram o estudo da música e do ritual nas sociedades ameríndias.

Seu pensamento e pesquisa são profundamente influenciados e inspirados pelas análises desenvolvidas por Lévi-Strauss nas Mitológicas. Seu estudo é um dos primeiros a dedicarem-se à centralidade das concepções e práticas relacionadas ao corpo – como a ornamentação e a alimentação – na constituição de grupos e pessoas nas sociedades ameríndias.

Uma de suas célebres colocações diz respeito ao lugar dos chamados “grupos corporais”, em cuja configuração as substâncias, os líquidos, os fluidos e a comida exercem papel fundamental. Para Seeger, a base desta etnografia musical é o espaço que se compreende entre tradição e transformações culturais.

Em entrevista publicada na revista Mana, Seeger comenta: “Eu acho que a antropologia e a etnomusicologia têm errado em identificar grupos como separados, individuais ou autóctones, porque, de fato, quase todos os grupos estão em uma rede de relações com outros grupos – ou de casamento ou de troca, de guerra, de aprendizagem – que é de longa duração. Então, eu também errei ao dizer que os Kisêdjê estão separados dos outros. Eles criaram trocas e são diferentes – eles se acham diferentes dos outros. Por outro lado, há muitos aspectos quanto ao que eles fazem, ao que eles plantam, como eles vivem, que vêm originariamente de outros grupos. A culturação é uma coisa que acontece com os Jê. Em geral, há uma visão da história segundo a qual eles começam com poucas coisas e vão conseguindo outras; o que é hoje valorizado veio de outros grupos, de outros seres… podem ser até mesmo espíritos. A vida e a história para eles são aproveitamentos de oportunidades, geralmente praticados por um grupo de homens que sai da aldeia e traz para lá fogo, milho, cativos que ensinam novos rituais e, mais recentemente, geradores, parabólicas, gravadores e tudo o que obtêm para o bem do grupo. Há uma longa história dessa dinâmica; eu os ouvia falar que pegavam um tipo de mandioca de outro grupo e, quando viajavam, levavam consigo mudas”.

Na mesma entrevista, sobre o aprendizado das músicas entre os Kisêdjê (Suyá), Seeger conta: “Ninguém compõe. Eles dizem que toda música vem de espíritos, de animais. Algumas pessoas têm a capacidade de ouvir e entender o canto de certas espécies da natureza. Vão andando pelo mato, ouvem canções; depois voltam e ensinam. Mas para cantar, sim, as crianças são ensinadas, começando muito jovens. Não sei se você viu o filme que eu fiz sobre Por que cantam os Suyá?, mas lá há uma cena em que as crianças, no momento em que ainda estão organizando o ritual, brincam vestidas para o rito, mas cantando. Assim vão aprendendo de fato a cantar akias, aquelas que serão cantadas nas semanas seguintes. Vão aprendendo, mas uma parte só. Não cantam as duas partes. Então, cantando sobre coisas ridículas, aprendem o estilo, aprendem o tipo de melodia em forma curta e depois aprendem as mais complexas e longas”. Questionado sobre a distinção entre antropologia da música e antropologia musical, duas perspectivas teórico-metodológicas para pensar sociedades e a música, dentre as quais Seeger escolheu a segunda. Diz: “No prefácio da segunda edição, eu estava contrastando o que eu queria dizer no meu livro com o trabalho de Allan Merrian, Antropologia da música. O livro de Merrian tenta mostrar como o estudo da música se beneficiaria com a aplicação direta da antropologia, com os assuntos da antropologia. seu livro é importante e brilhante quanto à história do campo. Mas há coisas na música e na performance que poderiam influenciar também a antropologia. não é somente uma via de mão única – deveria ser uma via de mão dupla. Uma antropologia musical voltaria sua atenção para a performance, para os processos, ao invés de os produtos. Eu acho ainda que a etnomusicologia deveria se pensar não somente como um importador de outros campos de ideias, mas também como exportador de perspectivas sobre processos sociais que poderiam beneficiar outros campos, seja a psicologia, a sociologia, a ciência política, e tudo mais. Em todas as áreas a música aparece e, observando como afeta processos, poderia melhorar esses outros campos também”.

Entre os Kĩsêdjê, o canto é a máxima expressão oral, quer individual ou coletivamente. A fala é também privilegiada entre eles e há diversas categorias de discurso. A língua Kĩsêdjê está dividida, de modo geral, em “linguagem cotidiana” (kaperni) e “linguagem da praça” (ngaihogo kaperni). Esta, pode ser agressiva (grutnen kaperni), ou “linguagem que todo mundo escuta” (m mbai wha kaperni). São linguagens com ritmos especiais, que estabelecem fórmulas e estilos próprios. Há diferentes estilos de canto, entre os quais dois gêneros de canções contrastantes: akia, cantadas apenas pelos homens, e ngere, estilo cantado por homens e mulheres. As akia são formas através das quais os homens Kĩsêdjê podem dizer em público algo sobre sua individualidade. São canções compostas e cantadas por cada indivíduo, em registro agudo, com linhas melódicas e estilo característico. Os Kĩsêdjê acreditam que só eles cantam akia, diferenciando-se de outros índios através desse canto. Em cada uma das cerimônias do grupo, o homem deve ter uma akia nova, deseja que ela seja ouvida individualmente, porém todos as cantam simultaneamente, de modo os homens entoam canções diferentes ao mesmo tempo em ritmo uníssono marcado pelo pé e pelo chocalho. O efeito é de uma cacofonia estridente onde cada homem canta tão alto e tão agudamente quanto possa, de tal forma que o som se destaque de todos os outros e seja ouvido por suas irmãs e amantes. Nas cerimônias em que os homens cantam akia, as mulheres são seu público, além de provedoras de comida. As mulheres, por sua vez, tem também suas próprias cerimônias, em que desempenham papéis principais e são ouvidas pelos homens. À exceção de algumas flautas que apenas raramente são tocadas, a música Kĩsêdjê é predominantemente oral, acompanhada por diferentes tipos de chocalho.

Os rituais em que cantam, são momentos de verdadeira euforia, tanto pelo próprio canto, como pela comida. Para eles, cantar e dançar por longos períodos de tempo proporciona uma experiência fisiológica que chega a lhes alterar a percepção.

Os Kĩsêdjê cantam, para restaurar a ordem em seu mundo, por um lado, para criar novos tipos de ordem, por outro. Seu canto é uma experiência social e política.

A edição de Por que cantam os Kisêdjê inclui DVD com vídeos sobre a Festa do Rato e trechos de áudio citados no livro.

A Cosac Naify disponibiliza um trecho para visualização.

 

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POR QUE CANTAM OS KISÊDJÊ

Autor: Anthony Seeger
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 40,53 (320 págs.)

 

 

 

 

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