“[…] certo dia acordou fora do contexto, no sentido de que em vez de estar de lado estava de costas, observando o teto de seu quartinho, que ele sabe-se lá por que imaginava celeste, mexia em vão as patas peludas perguntando-se o que fazer. O pensamento o irritou, não tanto pela comparação quanto pelo pertencimento ao gênero: literatura, ainda literatura”.
O tempo envelhece depressa, belo livro de contos de Antonio Tabucchi, é poético, onírico, mas, ao mesmo tempo, real de maneira literal: em nota ao final do volume, o autor diz: “algumas destas histórias, antes de ganharem corpo no meu livro, existiram na realidade. Limitei-me a ouvi-las e a contá-las à minha maneira”. O livro reúne nove contos, que segundo o autor prestam homenagem às Nove Estórias, de J. D. Salinger, segundo ele “o livro de contos mais belo do século XX”.
As personagens dos contos de Tabucchi, através de uma prosa delicada, articulam-se em torno da noção difusa e múltipla do tempo – tempo dos acontecimentos por vir, tempo passado, tempo da memória e da consciência, tempo histórico do mundo e do homem.
Um homem que fora agente na antiga República Democrática Alemã e que durante anos espionara Bertold Brecht, vagueia sem destino por Berlim até que chega ao túmulo do escritor para lhe confiar um segredo. Em um lugar da antiga Iugoslávia, um oficial italiano da ONU, que durante a guerra do Kosovo sofrera as radiações do urânio empobrecido ensina a uma menina a ler o futuro nas nuvens. Outro homem, engana a sua solidão contando histórias a si mesmo e acaba por se tornar protagonista de uma aventura que inventa durante uma noite de insônia.
Segundo Patrícia Peterle, professora de literatura na UFSC, em resenha publicada no Jornal Rascunho, o “ato da escrita é, para esse escritor italiano e cosmopolita, uma espécie de viagem por meio de sensações e experiências e, ao mesmo tempo, um resgate delas. São os momentos vividos, os livros lidos e os autores admirados a deixar marcas na sua narrativa, à primeira vista simples, mas permeada de símbolos e signos. “Pessoa e Pirandello são os dois autores que posso citar: no primeiro a realidade pode ser; no outro pode parecer”: eis a resposta de Tabucchi a José Guardado Moreira, em 1993, quando lhe foi perguntado os autores com os quais mais se identificava. Todavia, não é possível esquecer tantos outros que desenham a complexa constelação desse escritor: Rilke, Conrad, Kavafis, Kafka, Drummond, Baudelaire e Svevo.O texto tabucchiano apresenta-se como um emaranhado, envolvente e fascinante para o leitor, com uma “textura” que exige uma atenção maior para a identificação dos inúmeros símbolos ali contidos”. Para a professora, para compreender a poética de Tabucchi, a “fragmentação, o escrever como forma de experimentação e a literatura como modus operandi são três aspectos essenciais”. Em O tempo envelhece depressa, Peterle vê um jogo de memória, fluído e efêmero e interpreta os contos como marcados por “deslocamentos físicos e imaginários, viagens, uma espécie de mapa perfilado por palavras e por geografias inventadas e reais que se cruzam na ficção. Uma viagem, também aquela proporcionada pela narrativa, que oferece a possibilidade de descoberta do outro e de si”.
O volume, publicado no Brasil pela Cosac Naify, foi traduzido por Nilson Moulin e traz texto de quarta capa de Bernardo Carvalho.
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O círculo
“Perguntei-lhe sobre aquele tempo, quando ainda éramos tão jovens, ingênuos, impetuosos, tontos, despreparados. Algo disso restou, menos a juventude – me respondeu.”
O velho professor interrompeu a fala, tinha uma expressão quase arrependida, enxugou apressadamente uma lágrima que se debruçara no cílio, deu um tapinha na testa, como se quisesse dizer que estúpido, queiram desculpar, afrouxou a gravata borboleta com aquela incrível cor de abóbora e disse com seu francês vincado pelo forte sotaque alemão: por favor, me desculpem, me desculpem, eu me esqueci, o título do poema é “O velho professor”, da grande poeta polonesa Wislawa Szymborska, e nesse momento apontou para si mesmo, como se quisesse indicar que o personagem daquele poema de algum modo coincidia com ele, depois bebeu outro calvados, mais responsável por sua comoção do que o poema, e deixou escapar um meio soluço, todos em pé, tentando confortá-lo: Wolfgang, não fica assim, continue lendo, o velho professor assoou o nariz num grande lenço xadrez:
Perguntei-lhe sobre a foto”, prosseguiu com voz retumbante, “aquela do porta-retratos, na escrivaninha. Eram, tinham sido. Irmão, primo, cunhada, esposa, a filhinha sobre os joelhos dela, o gato nos braços da filhinha, e a cerejeira em flor, e acima da cerejeira uma ave não identificada voando – me respondeu.
” O resto não escutou, ou quem sabe não quis continuar escutando, que amável o velho professor do cantão de San Gallo, os primos de San Gallo são meio toscos, palavras da própria tia-avó ouvidas uma noite na cozinha, criaturas estranhas, são boa gente, mas vivem naquele lugar isolado entre montes e lagos, já o velho professor de San Gallo, ao contrário, ela considerava muito agradável, da poesia que escolhera para ler na hora do brinde ele tinha até feito cópias, que delicadeza, e as deixou disponíveis para os convidados sobre a mesa posta, entre doces e queijos, pois, segundo ele, seria a melhor homenagem à memória do avô, “meu pranteado e inesquecível companheiro Josef, em cujo lugar o Senhor devia ter me chamado”. Contudo, ali estava ele, firme e forte, com tantas veiazinhas vermelhas no nariz que o álcool tinha tornado ainda mais evidentes, e entretanto vovó escutava tranquila (ou talvez dormisse) o elogio poético do cunhado ao seu finado marido, porque o aniversário daquela morte, já fazia uma década, era o motivo da solene reunião familiar, os defuntos devem ser lembrados, mas não obstante a vida continua, e a vida que continua merece ser celebrada tanto ou mais que os defuntos, e morram os invejosos, porque família é família, principalmente uma família antiga como a nossa, que desde o início do século dezenove possuía postos de correio que de Genebra chegavam até o cantão de San Gallo, e do lago de Constança até a Alemanha, e da Alemanha até a Polônia, ainda restam gravuras e fotografias, estão todas no álbum de família, daqueles antigos postos de correio nasceu depois a rede de comércio que hoje dá fama à família Ziegler na Suíça e na Europa inteira, os fundadores morreram faz tempo, os herdeiros mais velhos não vão demorar, mas a família continua, porque a vida continua, por isso aqui estamos celebrando a vida que continua, com nossos filhos e netos, concluiu triunfalmente o tio-avô de San Gallo.
[Trecho divulgado por “Entretenimento – UOL”].
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Autor: Antonio Tabucchi
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 32,90 (160 págs.)