O livro Cenário com retratos – Esboços e perfis, de Antonio Arnoni Prado, reúne ensaios que investigam a trajetória, tanto pessoal como criativa, de autores brasileiros, para refletir, a partir delas, sobre a maneira como são traçados historicamente no Brasil os percursos em busca da autonomia intelectual.
Alguns dos autores analisados são Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Erico Verissimo. Arnoni Prado, que é professor da Unicamp, traça aqui um interessantíssimo panorama, tecendo uma crítica literária, cultural e histórica. Seu cenário – a constituição histórica e social – do Brasil é, pois, pontuado por retratos de figuras marcantes da cultura brasileira.
Sua leitura segue o método proposto por Antonio Candido, através do qual a análise das circunstâncias concretas da vida brasileira necessariamente encontram ecos nos projetos e produções literários.
O autor, com sua prosa peculiar, marcada por um estilo claro e preciso, aborda questões como nacionalismo, intelectualidade, originalidade e as trocas mútuas entre gêneros literários.
“Ele trabalha com fontes historiográficas e faz uma revisão interessantíssima da história literária brasileira”, aponta o professor Francisco Foot Hardman. As observações de Arnoni Prado colocam lado a lado referências biográficas e o corpo das obras dos escritores, analisando grandes correntes do pensamento moderno, as raízes históricas do pensamento e suas implicações e decorrências sociais e intelectuais. Um bom exemplo da sagacidade de sua investigação, são suas em um documentário: “Lê-se Lima Barreto não para aprender português, mas para aprender a ser brasileiro”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
Introdução
A ideia deste trabalho é investigar de que modo as razões para compor nem sempre se ajustaram ao corte literário que até hoje baliza a obra de determinados escritores brasileiros. Os diferentes aspectos desse descompasso se, de um lado, enxertam à consciência autoral o peso abstrato das ideias que não têm autores, alargam, de outro, a enumeração desordenada dos motivos circunstanciais, como se a biografia e o destino, o empenho moral e o caráter, a genialidade e o oportunismo, por mais decisivos que sejam, se convertessem em motivos a tal ponto determinantes que acabam dispensando o compromisso com o arranjo da configuração estética sem a qual – como assinala Mário de Andrade – a obra literária não poderá existir.
É na vertente desses dois extremos, já a partir do século XVIII, que se situa a trajetória deste estudo. À vista dos efeitos que daí resultam, o foco preliminar – nem sempre dirimido pelos críticos – está no embate dessas diferenças, no modo como elas se repetem e agravam ao longo do tempo em busca da harmonia impossível entre a expressão literária e as circunstâncias que a estrangulam, deformando o verso pelo verbo, o sonho pela submissão, a criação pela vaidade, a pesquisa das palavras pelo galardão dos apalavrados.
Não foram muitos os que, em nosso percurso, se mostraram capazes de converter as imagens da realidade em criação literária original e incontroversa. Não é propriamente destes que o nosso argumento se vale, já que neles será inútil imaginar que a “força do concreto” – na expressão de Antonio Candido – tivesse outra alternativa senão a de render-se ao peso inventivo da magia e do talento. Em relação a eles, como é fácil conceber, o jogo é sempre jogado na profusão inesgotável da quimera, para o mais vivo deleite dos leitores deste e de outros tempos.
O que aqui nos importa é acompanhar os diferentes modos de resistência com que a literatura reagiu às vozes que a desfiguravam ora em favor do artifício e da retórica, ora em busca de um sucedâneo que a ignorasse nos fundamentos de seu próprio universo. Nesse jogo ambíguo e repleto de contradições, nosso olhar oscilou entre o talento e o risco, a pesquisa do belo e a falácia dos que dele se valeram para transformar o ofício de escrever num prolongamento secundário do mando, da vaidade e da presunção. “Quantas estâncias cheias de viço lírico não teriam sido inutilizadas pelos serventuários da justiça da Rainha!”, lastima-se o poeta Domingos Carvalho da Silva ao lembrar que a poesia de Alvarenga Peixoto, ainda que bem próxima do lirismo dos grandes árcades, acabou sufocada pelo estigma da lisonja, quando não corroída no bolor dos manuscritos que o tempo destruiu. E a luta do poeta para evitá-lo? E seu empenho contras as forças imponderáveis do destino sempre à espreita de sua liberdade, para o bem e para o mal? Até onde, afinal, o ato literário poderia expandir-se frente às condições externas consagradas pela crítica da época como fator determinante para compreender o sentido da literatura e da arte?
Não foi à toa que o próprio Antonio Candido, ao estudar o método crítico de Sílvio Romero, assinalou, na raiz desse processo, a inevitável ambiguidade de suas implicações. Primeiro ao nos mostrar que, em Sílvio, o alcance do método, marcadamente derivado das influências geográficas e climáticas, só pôde de fato avançar a partir do momento em que, em 1880, ele incorpora o critério do fator humano, responsável – segundo Candido – pelo seu afastamento da tirania da natureza em busca de um “pragmatismo crítico” cada vez mais próximo dos fatores pessoais e biográficos. E depois pela aproximação, mesmo que provisória e pouco articulada, das verdadeiras fontes da dimensão literária da obra.
Mas não é apenas dessa perspectiva que a análise de Candido vincula o conjunto dessas contradições ao avanço de suas ambiguidades. O que de fato ampliou a compreensão do problema foi que, a partir do crítico de A formação da literatura brasileira, elucidou-se, em primeiro lugar, o reconhecimento de que a verdade dos princípios científicos e a natureza da crítica não podem ser tomados como fatores essenciais; e, em segundo, a consciência de quanto o determinismo e as implicações do método histórico pesaram no coração do crítico frente à incapacidade de dosá-los com equilíbrio na árdua tarefa de desvendar a natureza propriamente literária das obras estudadas.
Um dos resultados dessa atitude foi o modo como os efeitos da contaminação acadêmica da crítica foram gradativamente se desvinculando da tendência para submeter os projetos de autoria aos “critérios programáticos” da escola a que estivessem ligados, como no caso de Aluísio Azevedo em relação ao naturalismo de Zola, por exemplo. Basta ler os escritos de Candido sobre o autor de O cortiço para notar como, na contramão dos críticos que em geral a explicavam essencialmente a partir do modelo francês, a obra de Aluísio deixa de ser um projeto incaracterístico, ainda que fecundo, para ganhar um traço específico e historicamente relevante que o afasta definitivamente dos dogmas científicos de seu tempo.
É verdade que em alguns casos a autocrítica deriva dos próprios escritores, como no caso de Joaquim Nabuco, que, em fevereiro de 1865, consciente das fragilidades de “O gigante da Polônia”, poema que dedicara ao pai no ano anterior, reconheceu, em carta a Machado de Assis, as limitações de sua veia poética. Foi quando decidiu abandonar “as musas do Parnaso” para dedicar-se ao ensaio positivista, menos abstrato e mais próximo da ciência, terreno em que julgava mover-se com maior segurança, ao contrário do que pensava Oliveira Lima, que chegou a compará-lo a ninguém menos que Victor Hugo.
No caso de ambos, como veremos, há um dado curioso: o de que o recuo frente à criação literária é movido por uma espécie de nostalgia voluntária da exclusão, onde a sensação de desterro parece fecundar a identidade nacional – em Nabuco, sob a aura dos grandes valores da Europa; em Oliveira Lima, sob o influxo do universo espiritual português.
Caso inverso, no outro extremo, é o dos criadores medíocres, que avançaram para muito além da qualidade literária de seus escritos. Trata-se de autores de produção difusa – Medeiros e Albuquerque entre eles -, que inclusive chegaram a cargos e honrarias acadêmicas desproporcionais ao presumido valor artístico do que escreveram. Isso sem falar naqueles que, mesmo menores, revelaram intenções revolucionárias a partir de modelos em voga na cultura de seu tempo, como ocorreu com a militância anarquista de Elísio de Carvalho, secundária na época, mas depois reveladora e quase necessária em razão dos manifestos inspirados em revistas libertárias da Europa, ostensivamente contrários à disciplina de grupos e escolas, em nome da autoria independente, provocadora e desigual.
[Trecho divulgado pelo jornal Folha de São Paulo]
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CENÁRIO COM RETRATOS – ESBOÇOS E PERFIS
Autor: Antonio Arnoni Prado
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 31,43 (312 págs.)