Literatura

Não falei

19 maio, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Se fosse possível um pensamento sem palavras ou imagens, inteiro sem tempo ou espaço, mas por mim criado, uma revelação do que em mim e de mim se esconde e pronto está, se fosse possível que nascesse assim evidente e sem origem aos olhos de todos e então, sem esforço do meu sopro – tom de voz, ritmo e hesitação, meus olhos –, surgisse como pensamento de cada um, ou ainda, uma coisa, mais que um pensamento, uma coisa assim fosse possível existir, eu gostaria de contar uma história”. 

gravura de Evandro Carlos Jardim

gravura de Evandro Carlos Jardim

Não falei, romance de Beatriz Bracher publicado em 2004, é um livro denso, humana e politicamente. Nele, acompanhamos a narrativa em primeira pessoa de um professor universitário, em vias de mudar-se de São Paulo para São Carlos. A voz masculina dá corpo a uma reflexão, a um só tempo histórica e familiar, sobre a ditadura militar no Brasil, sobre as rodas de chorinho em que o pai tocava flauta, o café no balcão da padaria, os jogadores da seleção de Pelé; perpassando um sentimento de esvaziamento paulatino de utopias.

A mudança de cidade desencadeia no narrador uma série de reflexões, sobre a história, seu passado, as impossibilidades, despertadas pela retumbante memória de quando tinha 24 anos, em 1964: “Vejam então. Fui torturado, dizem que denunciei um companheiro que morreu logo depois nas balas dos militares. Não denunciei, quase morri na sala em que teria denunciado, mas não falei. Falaram que falei e Armando morreu. Fui solto dois dias após sua morte e deixaram-me continuar diretor da escola”.

A partir da confissão de sua tortura, os profundos significados que acompanham sua mudança tornam-se os trilhos da narrativa. A tensão entre o passado e seu desdobramento presente ganha dimensão significativa através da arrumação do espaço a ser deixado, de seus papéis, memórias, reflexões.

Segundo a crítica Amanda Barcellos Taranto Silva, em artigo sobre o livro, a “escrita ofegante em primeira pessoa depara-se com questionamentos do próprio narrador, de diálogos, cartas, reflexões. Em um jogo intenso com as palavras, com a frenética fluidez de idéias, há uma tentativa de reavivar na escrita o mundo-moderno-acelerado das últimas décadas: um universo que tenta se reerguer após a ruptura de 64, em um momento em que os sonhos foram destruídos e a formação deixada em alguma esquina do esquecimento. É neste esquecimento que o próprio narrador reforça a importância da linguagem, de seu uso e de sua força social”. Um dos grandes desdobramentos do título, que ecoa a partir da descrição da tortura, é a tentativa do narrador, como define a crítica, de “reaver a linguagem, enquanto produto do pensamento”. Tentativa que encontra ecos na forma do texto, cujos “trechos construídos de forma fragmentada”, indicam a “falta de sincronia no pensamento do protagonista, revelando sua dificuldade em compreender o que viveu. Nota-se, também, a fragmentação no nível semântico, com a sobreposição de assuntos sem uma marcação para uni-los. Revela-se, desta forma, a própria inquietação psicológica daquele que narra. Inquietações que são conduzidas por lembranças fragmentadas como resposta ao meio opressor, devido às dificuldades de uma comunicação objetiva impregnada de sensações”.

O resultado é a construção de um romance de múltiplas camadas, semânticas, históricas. A linguagem encontra-se próxima a um abismo cuja indicação inexata só é possível por ecos dispersos. A própria linguagem, presa num hiato interminável entre presente e passado, é irresoluta, inapreensível. Com uma prosa única, que é espécie de “invenção reflexiva”, combinação de devaneio e investigação, Beatriz Bracher criou uma narrativa profunda, de contrapontos labirínticos.

 

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“Não fui um revolucionário, não participei de seu entusiasmo, nunca tive o lume de um inimigo certo. Meu ânimo era grande, iríamos mudar muito mais que o mundo, os homens, cada um por seu caminho e estávamos juntos, mesmo que eu não fosse capaz da mesma trincheira vigorosa dos movimentos. Movimento, na verdade não era sempre o nome das coisas. Os da luta armada diziam organização, fechavam-se. Hoje na periferia e nos campos os grupos denominam-se movimento. Curiosa expressão, movimento. Tudo o que se move é divino, acho que Newton teve um problema com isso.”

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bracher

 

NÃO FALEI

Autor: Beatriz Bracher
Editora: 34
Preço: R$ 18,90 (152 págs.)

 

 

 

 

 

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