Propomos uma análise panorâmica a respeito de uma das figuras mais enigmáticas da história da arte. Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma família de prósperos banqueiros – o banco Warburg foi fundado no século XVIII e, quando Aby Warburg nasceu, era o maior da Alemanha. Aby era o primogênito e herdaria a responsabilidade pelos bem-sucedidos negócios da família, porém jovem ainda, abriu mão de sua primogenia em favor de seu irmão mais novo, com a condição que este lhe fornecesse, ao longo de toda sua vida, todos os livros que desejasse. Assim nasceu a então maior biblioteca privada da Europa, hoje abrigada pelo Instituto Warburg, em Londres. Na entrada da biblioteca, Warburg gravou o nome “Mnemosyne” e esta antiga deidade pagã, a musa da memória, permeia de maneira peculiar o núcleo de toda sua obra – desenvolvida até seu falecimento, em 1929. Porque a grande questão, para Warburg, diz respeito à influência da Antiguidade na cultura europeia na época do Renascimento: haveria um mito do “Reanscimento”?; o que “renasceu” da Antiguidade no Renascimento?; será que “renasceu”, ou há uma memória freática que pode ser percebida na arte? É o que pretendemos mostrar doravante.
Histórias de fantasma – uma leitura sobre a ciência sem nome de Aby Warburg
Es ist ein altes Buch zu blättern,
Athen-Oaribi, alles Vetern
– Warburg [1]
Aby Warburg foi o criador de uma ciência sem nome. Necessariamente sem nome, talvez; e talvez, também por isso, tão controversa quanto instigante. Sua ciência é uma história da arte que desafia os limites da análise estetizante da obra de arte em si. A Warburg interessa aquilo que está fora da figura, seu movimento, aquilo que nela pulsa, e que a extravasa. E ele o busca nos detalhes, que revelam-se frutíferos índices de certos modos de pensamento e dinâmicas culturais, para uma compreensão, para além da obra de arte em si mesma, formal e estilisticamente, sobre o funcionamento da mentalidade do artista e de sua época. Sua história da arte é uma história da cultura, mas amparada pela interpretação antropológica das imagens e possibilitada por uma psicologia histórica. Eis a dificuldade de nomenclatura de sua ciência, que certa vez ele definiu como “histórias de fantasma para gente grande”.
Giorgio Agamben é um dos muitos intelectuais que estudaram em meio às prateleiras da Biblioteca Warburg – a biblioteca é comentada, por ele e por outros, como a maior expressão do amplo projeto warburguiano: visando a formação de um núcleo de estudos para a ciência da cultura, suas dezenas de milhares de livros não eram separadas conforme a comum catalogação de assuntos e nomes de autores em ordem alfabética, mas por uma ordem que Warburg chamava de “boa vizinhança”, pois, assim como nas imagens, importam as relações estabelecidas; que muitas vezes iluminam-se a nós bem no livro ao lado daquele que procurávamos: o periférico ou marginal pode ser uma boa pista para uma investigação, de maneira profundamente humanista. Assim como na livre disposição dos livros na biblioteca, Warburg, em seus estudos de história da arte, esteve aberto à boa vizinhança desta com a história da cultura, com a filologia, a antropologia e a psicologia.
Agamben cita um tratado do século XV, do coreógrafo Domenico da Piacenza, que indica, entre os elementos fundamentais da arte da dança – entre memória, noção de espaço, agilidade e outros -, a “fantasmata”, ou seja, uma parada repentina entre dois movimentos, pois, como ele diz: “fantasmata é uma presteza corporal”, que o dançarino consegue “parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da medusa, como diz o poeta, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele instante, e no instante seguinte cria asas como o falcão que tenha sido movido pela fome” [2]. É este movimento, que é presença cristalizada, que interessa a Warburg nas obras de arte do Renascimento. Inscrito nas imagens, ele revela traços arcaicos da psicologia humana: arcaico latente, que na arte irrompe, de maneira traumática.
Ao colocar-se a tarefa de contar “histórias de fantasma para gente grande”, Aby Warburg portanto sintetiza sua particular história da arte, que fundamenta-se tanto na psicologia da expressão humana, quanto na antropologia das imagens, movida pela ideia central de sobrevivência [Nachleben] [3].
As sobrevivências advêm como imagens. A mênade grega dançante que sobrevive como Madalena ou Salomé em uma pintura do Quattocento; a astrologia pagã helenística que sobrevive enquanto teratologia aplicada nos manuais ilustrados do medievo; os acessórios em movimento que, na arte do Renascimento, provam a sobrevivência de um pathos identificado com as representações antigas. As sobrevivências podem ser compreendidas como sintomas de tempo. A imagem é assim alçada de uma “função simbólica” a uma “marca de movimento” da memória que se transmite nela [Mneme]: uma captação e formação da memória que é mais portadora de forças e transformadora de formas que transmissora de significações.
Segundo Agamben, Warburg foi o primeiro a perceber que “as imagens transmitidas pela memória histórica […] não são inertes e inanimadas, mas possuem uma vida especial e diminuída, que ele chama, justamente, de vida póstuma, sobrevivência” [4]. Warburg direcionou sua ênfase teórica, desde os primeiros escritos, para os modos com que as energias psíquicas conservadas da Antiguidade constituíram forças estéticas motivadoras das representações pictóricas e esculturais, numa efetiva pós-vida antiga.
O tempo contido nas imagens – modelo de anacronismo, o tempo fantasmagórico das sobrevivências -, é revelador de “fórmulas” de pathos, grandes energias configuradoras, como define Cassirer, de
“formas eternas da expressão do ser do homem, da paixão e do destino humano. […] Em toda parte que se manifesta um afeto da mesma natureza […] nascem ‘fórmulas típicas de pathos’, que se gravam de maneira indelével na memória da humanidade” [5].
A noção de ‘fórmula’ já esclarece a necessária repetição do fenômeno, que Warburg indaga enfatizando os processos de transmissão – de sobrevivência – das imagens primordiais que condensam tais formas de expressão. De acordo com Agamben: “As imagens que compõem nossa memória tendem incessantemente, no curso de suas transmissões históricas (coletiva e individual), a se enrijecer em espectros, e trata-se justamente de restituí-las a vida. As imagens são vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, a sua vida é sempre já Nachleben, sobrevivência, estando sempre já ameaçada e prestes a assumir uma forma espectral ” [6].
Entretanto, considerando as ressonâncias morfológicas das imagens, sua “força mitopoética”, que enquanto cristalização antropológica total da cultura antiga sobrevive na arte do Renascimento, o antigo que retorna como clássico, é antigo ou clássico? A ideia das imagens sobreviventes desenvolve-se pela óptica nietzschiana de uma genealogia das semelhanças, pautada pelo eterno retorno e por aquilo que ele instaura enquanto concepção alinear de tempo. Didi-Huberman – cujo comentário seguiremos de perto – ressalva, porém, que: “[…] aquilo de que as sobrevivências se lembram não é o significado – que muda a cada momento e em cada contexto, em cada relação de forças em que é incluído -, mas o próprio traço significante”. Pois o “retorno do mesmo não é um retorno ao mesmo, muito menos um retorno ao idêntico. O ‘mesmo’ que volta no eterno retorno não é a identidade do ser, mas apenas um semelhante” [7]. Investigando a influência da Antiguidade pagã no Renascimento, Warburg não indaga a cultura do início da era moderna sob o prisma do ‘renascido’ como modelo histórico, mas sob o ponto de vista de seus traços deslocados, do paradoxo de uma energia residual, fantasmal, das formas que sobrevivem à sua própria morte de maneira anacrônica. As formas não são reflexos de um tempo, mas são, antes, os restos de um conflito em ação no tempo. Trata-se de uma compreensão das formas como o resultado de um jogo de forças. Jogo potente, no sentido de ser violento, e também porque permanece latente, como potência; jogo que abarca uma noção dialética de tempo, como debate entre latências e crises que as potencializam e atualizam.
Da noção de crise, decorre uma concepção da cultura ocidental como organismo, em que o tempo libera sintomas. O encontro de tempos é decisivo, uma colisão entre “um presente ativo com seu passado reminiscente”. Segundo Didi-Huberman, deve-se a Walter Benjamin “essa colocação do problema do tempo histórico em geral. Mas cabe inicialmente a Aby Warburg ter mostrado não apenas o papel constitutivo das sobrevivências na própria dinâmica da imaginação ocidental, mas ainda as funções políticas de que os agenciamentos memorialísticos se revelam portadores” [8]. Tanto em Benjamin quanto em Warburg, a imagem comporta em si a memória de um acontecimento forte, como uma espécie de marca ou um traço sobre os estratos mais arcaicos da consciência. A imagem traz consigo uma carga energética, potencial, a partir da qual pode-se questionar o modelo de história como narrativa linear e contínua, instaurando, em lugar de um encadeamento causal de acontecimentos, a concepção de “saltos” históricos, constelações [9]. Como coloca Agamben: “O humano se decide nessa terra de ninguém, entre o mito e a penumbra ambígua em que o vivente aceita confrontar-se com as imagens inanimadas que a memória histórica lhe transmite para restituir-lhe vida” [10].
As sobrevivências enquanto “fórmulas” patéticas persistem no cerne das lacunas de significação, nas imagens. Podem ser compreendidas, assim, como verdadeiros sintomas psicopatológicos da humanidade, sob o ponto de vista freudiano do recalcamento e do retorno do recalcado. As “fórmulas de pathos”, que Warburg percebe nas representações renascentistas da vida em movimento, sobrevivem como referências antigas, recalcadas, inscritas numa memória social coletiva.
Enquanto retornos de memória, as sobrevivências são deslocamentos atemporais, movimentos. Não por acaso Warburg as encontra nos adereços e acessórios que expressam movimentos: pois se a arte é um nó da cultura, e a representação da vida em movimento, sua grande problemática, é justamente no seu embate com as imagens mnêmicas, as imagens da memória – ou seja, com os movimentos de retornos das sobrevivências -, que ela abre-se como processo psíquico, revelando fórmulas de pathos primitivas e idiopáticas.
Fundamentadas no questionamento sobre as sobrevivências, sintomáticas no organismo da cultura, portanto, as reflexões warburguianas quanto às obras de arte visavam à importância das imagens no interior do contexto amplo de um processo da civilização. Conforme apontam os organizadores da edição de estudos dos textos de Warburg, um processo civilizador que, “em sua forma primordial, ainda não era língua e estava ‘a meio caminho entre magia e logos’. Duas gerações antes de Claude Lévi-Strauss, Warburg, […] desenvolveu uma teoria do simbólico cujo centro é ocupado pela capacidade de criar ‘um espaço de reflexão da ponderação’ entre o ser humano e a natureza, no qual as forças ameaçadoras se transformam em meios para a superação do medo” [11]. Como Warburg buscava identificar em todas as culturas as fontes de energias destruidoras ou aliviadoras, “ele não pôde, ou não quis, limitar-se ao mundo da arte” [12]; incluiu em seus estudos outras áreas, principalmente as histórias da literatura e das festas.
As artes da imagem são antropologicamente inseparáveis das artes das festas, para Warburg, pois estas constituíram o próprio meio a partir do qual as formas pictóricas adquiriram sentido. Pois a imagem não pode ser separada da sua relação com a poesia, com o mito, com a religião, com a totalidade cultural [13]. Nas palavras de Warburg: “O ethos apolíneo expande-se com o pathos dionisíaco, quase como um galho duplo de um mesmo tronco enraizado na misteriosa profundeza da terra nutriz grega. O Quattrocento sabia apreciar essa dupla riqueza da Antiguidade pagã” [14]. A ordem simbólica só pode ser compreendida na relação com as polaridades conflitantes, na tensão interna dos movimentos patéticos da cultura. Trata-se da coesão interna de toda civilização e também da força animal que a perpassa, que Warburg descobre, por exemplo, analisando os frisos gregos. A cultura pagã da Antiguidade, tanto em seus atos culturais como no desenvolvimento de suas imagens, encontrou uma expressão máxima de emoções elementares: em formas pictóricas que, como fórmulas e signos desses processos expressivos, podem ser transmitidas e transformadas. Essas fórmulas patéticas, podem, na arte do Renascimento, sempre ser procuradas e encontradas.
Entre os artistas renascentistas e seus conselheiros eruditos, a compreensão da “Antiguidade” como um modelo que requer, necessariamente, movimento acentuado – capturado em movimentos transitórios de adereços, trajes – corresponde a uma corrente dominante nos círculos artísticos e intelectuais da época, que encontrou no Da pintura de Alberti sua expressão mais destacada. Mesmo Leonardo da Vinci, em seu Trattato, sugere: “[…] imita quando puderes os gregos e os latinos, como o modo de revelar os membros, quando o vento se apoia sobre as suas roupas” [15]. Porém, ao investigar as obras de Botticelli, Warburg identifica, mesmo assim, a tensão, o caráter de confronto inevitável do artista com o mundo por meio de massas de expressão e imagens mnêmicas que, embora latentes, nunca desapareceram de seu solo cultural.
Em Botticelli ou Pollaiuolo, na mobilidade de expressão de Donatello, nas descobertas, da astrologia árabe em afrescos do século XV em Ferrara, Warburg mostra que “a necessidade de se confrontar com o mundo formal dos valores expressivos predeterminados, provenham eles do passado ou do presente, representa, para cada artista […], a crise decisiva” [16]. É nesse terreno, de embate, de crise decisiva, em que, segundo ele,
“nasce a flor da cultura do Renascimento florentino. As qualidades totalmente heterogêneas do idealista medieval e cristão, cavalheiresco e romântico, ou ainda clássico e platonizante, por um lado, e do pragmático mercador etrusco, pagão e voltado para o mundo externo, por outro, impregnam o homem da Florença dos Medici e nele se unem para formar um organismo enigmático, dotado de uma energia vital primária, porém harmoniosa” [17].
As obras renascentistas inspiram a mímica empática que induz a gestos elementares, encontrando a via de um compromisso entre a fantasia antropomórfica e a reflexão comparativa. As fórmulas genuinamente antigas incorporadas ao estilo renascentista da descrição da vida em movimento para as expressões exacerbadas do corpo ou da alma anunciam para o historiador da arte a tentativa, afinal alcançada, diz Warburg, “do gênio artístico de se livrar da servidão ilustrativa da Idade Média – devendo o ímpeto dramático de sua expressão a certas fórmulas de pathos”.
Logo, o que a influência da Antiguidade significa para a cultura artística do início do Renascimento? Uma espécie de função polar própria à memória empática das imagens. Um pensamento por imagens que antropormofiza complexos patéticos, sobretudo fóbicos.
Em 1895, Warburg fez uma viagem aos Estados Unidos, onde conheceu os índios pueblos, das tribos Oraibi e Walpi, ainda quase isolados na região do Arizona e Novo México. Apenas em uma palestra proferida mais de trinta anos depois, em 1926, dedicada a narrar o que ele tinha visto entre aqueles índios, foi-lhe possível articular ecos e ressonâncias de movimentos comportamentais semelhantes, em relação à memória simbólica, àqueles que ele há anos estudava na arte do Renascimento. Warburg pôde constatar que as imagens da vida cotidiana indígena e de suas festividades, com danças mascaradas, eram “a forma pagã e primária de responder à grande e atormentada pergunta quanto ao porquê das coisas. Diante do inapreensível nos processos da natureza, o índio contrapõe sua vontade de apreender, pois assim ele próprio se metamorfoseia em uma dessas causas” [18]. Comparando os índios aos artistas renascentistas, Warburg aponta que há uma transformação, na expressão humana “que vai do simbolismo do corpo e da realidade e que é [literalmente] apanhado com as mãos ao simbolismo que é apenas pensado” [19]. Entre os índios norte-americanos, percebe-se um simbolismo fabuloso, presente no jogo e na arte, que Warburg interpretou como sintoma e prova de “uma busca desesperada pela ordenação frente ao caos” [20]. Desse contato etnográfico, ele conta:
“Ainda não suspeitava que, a partir dessa viagem americana, precisamente o nexo orgânico [21] entre a arte a religião dos povos ‘primitivos’ resultaria tão claro para mim que eu observaria com tal nitidez a identidade, ou melhor, o que há de indelével no homem primitivo, que permanece o mesmo por todas as épocas, que isso me permitiria destacar esse nexo como órgão tanto da cultura do início do Renascimento florentino, como, mais tarde, na Reforma alemã” [22].
Segundo suas observações, as danças e as artes plásticas dos índios baseiam-se no tronco comum das representações religiosas, “que vêm à tona como práticas mágicas de uma visão cosmológica de mundo profundamente elaborada” [23].
Trataremos com mais cuidado sobre os rituais indígenas à frente. Nos interessa agora mostrar que Warburg encontra uma correspondência em relação aos enigmas da empatia com a natureza inanimada e também aos enigmas da origem das expressões linguística e em forma de imagem. Essa correspondência responde justamente à pergunta sobre o significado da influência da Antiguidade para a cultura artística do início do Renascimento, pois dela Warburg extrai a observação de que há um comportamento simbólico comum à toda humanidade, ainda que diferentes civilizações possam atualizá-lo como prática, ou reflexão. Segundo Leopoldo Waizbort, esse comportamento simbólico fundamenta dois aspectos básicos da cultura humana:
“a expressão e a orientação. Ambos dizem respeito à relação de ser humano e do mundo no qual vive […]. Ao tomar conhecimento da cultura dos índios hopi, Warburg se deu conta do vínculo da obra de arte com cultos mágicos e ritos da vida prática; tal percepção levou-o a redimensionar sua problematização no campo da ‘ciência da arte’, visando uma ‘ciência da cultura’ que pudesse abarcar mais profundamente as dimensões antropológicas envolvidas nos processos artísticos: como a expressão assume a forma de imagem? Ela resulta da vida prática; e, com isso, está montado o quadro em que o problema das fórmulas de pathos e dos engramas tem lugar: a expressão corporal e exterior humana baseia-se em pulsões internas e, de algum modo, as exprime […] Gestos, movimentos e expressões corporais são vistos como reações e comoções interiores” [24].
Acompanhar os deslocamentos espaciais e históricos destas experiências e comoções é a tarefa desta ciência sem nome de Warburg. Interessado nos deslocamentos, nos paradoxos de energia residual das fórmulas de pathos, para Warburg, o que faz sentido numa cultura, é o sintoma, o anacrônico: um nó de tempo, como coloca Didi-Huberman, evidenciado pelas imagens, que“sofrem de reminiscências […]. [Nelas,] o gesto faz subir uma memória inconsciente ‘das profundezas do tempo’. A admiração visual, em Warburg, sempre suscita uma espécie de inquietação fundamental sobre os turbilhões do tempo”[25].
Trata-se da busca pelos momentos reminiscentes que, sob a aparência da fórmula de pathos do gesto, fazem emergir a memória da humanidade.
Por isso, como sugere Agamben, nas mãos de Warburg, a iconografia não é nunca um fim em si, para além da identificação do assunto e de suas fontes, tende a configurar um problema que é, ao mesmo tempo, histórico e ético:
“[Sua] transfiguração do método iconográfico […] faz assim lembrar, muito de perto, a transfiguração súbita do método lexicográfico na ‘semântica histórica’ de Spitzer, em que a história de uma palavra se torna ao mesmo tempo história de uma cultura e configuração de seu problema vital específico” [26].
Os deslocamentos têm consequentes ressignificações; as transformações estilísticas na arte renascentista são resultado de um confronto com conceitos figurativos da civilização pagã. O novo “grande estilo que nos doou o gênio artístico italiano”, diz Warburg, “estava radicado na vontade social de libertar a humanidade grega da ‘prática’ medieval, oriental-latina”. Libertar-se da “prática”, pois o “lugar do mito” da Antiguidade pagã sobrevivia, na virada do século XV, tanto da maneira ancestral, prático-religiosa – sobretudo astrológica -, como também da maneira nova, artístico-estética. Através dessa nova concepção, artística, foi possível uma transformação do mitologismo clássico pela ação sublimadora da arte. Com Botticelli, no início do Quattrocento, a arte começa a encontrar um compromisso individual entre a auto-determinação e a subordinação ao destino. Botticelli foi o primeiro pintor a captar as ideias emergentes do mundo dos deuses da Antiguidade. O grupo da Flora em fuga e do deus vento que a persegue, na pintura conhecida como A primavera, corresponde à narrativa de Ovídio até nos mínimos detalhes. Sua pintura, diz Warburg, não quer ser apenas lírica, mas uma narrativa dramática – drama que o antropólogo das imagens identifica nas sobrevivências e nas fórmulas de pathos contidas nos detalhes – das vestes, dos cachos de cabelo esvoaçantes -, que expressam, na própria representação do movimento, um embate: as figuras de Botticelli, para o psico-historiador, dançam. Pulsam. O que sobrevive, não renasce simplesmente como imitação da Antiguidade, em Botticelli, é fundamentalmente uma “animação”.
Eis sua discussão com Winckelmann. Para Warburg, a arte renascentista só foi “vital” por integrar elementos de confronto, impureza, feiúra, dor e morte. Dialogando com Wincklemann, e com sua profunda influência no pensamento alemão, Warburg indaga sua ideal “serena grandeza”, na medida em que ela encobre o dionísiaco e seu embate trágico com o apolíneo: “[…] a simplicidade e a grandeza tranquila, Winckelmann chegou a percebê-las no Laocoonte que se convulsiona num sofrimento mortal. […] Mas [devemos] afirmar que uma concepção de mundo antigo diametralmente oposta à de Winckelmann corresponde, efetivamente, ao espírito do Quattrocento” [27]. Para Winckelmann o plástico por excelência é o calmo, o estático, o apolíneo; a Warburg interessa o que extravasa os contornos da figura e que expressa seu caráter dionísaco, demoníaco, fóbico. No grupo escultórico do Laocoonte, por exemplo, redescoberto em escavações arqueólogicas no Renascimento, para Warburg, é a ideia do movimento que dá à escultura sua verdade, fundamental porque patética, pulsional. Goethe, que abriu caminho para Warburg pensar uma morfologia do pathos, já havia dito que “a mais alta expressão patética situa-se na transição de um estado para o outro. […] Quando essa transição conserva, ademais, o traço claro e nítido do estado anterior, ela constitui o mais maravilhoso objeto para as artes plásticas: é o caso do Laocoonte, onde o esforço atuante e o sofrimento unem-se num momento único” [28]. Não apenas a ação patética não se opõe à forma, como a gera e intensifica, dando-lhe movimento. Da mesma maneira, as fórmulas patéticas tornam impossível separar forma e conteúdo, pois designam a intricação necessária da carga afetiva à fórmula iconográfica.
A arte é resultado de confrontações múltiplas e complexas [29]. A graça das figuras de Ghirlandaio nos afrescos da capela de Santa Trinità, por exemplo, como Warburg mostra em um ensaio de 1907, só pode ser antropologicamente compreendida no cotejo iconográfico com as práticas religiosas e fúnebres do mercador Sassetti, que encomendou os afrescos. Aquela seria sua capela fúnebre e, segundo seu desejo, deveria narrar a lenda de seu santo padroeiro, S. Francisco, além de retratar a si mesmo como rico mercador em sua condição de representante da “República mediceia”, ao lado da presença ilustre do homem mais poderoso da época, Lorenzo de’Medici, o Magnífico, unindo as famílias dos Medici e dos Sassetti. Warburg mostra como os afrescos cumprem um compromisso com uma tradição medieval – uma honra cavalheiresca, inclusive para com o santo padroeiro a quem a dedicação dos afrescos mostra lealdade mesmo após a morte – mas, em uma investigação histórico-filológica, descobre, analisando o testamento de Sassetti, a coexistência de um medo profundo da deusa pagã Fortuna, que “surge diante dele como personificação de um mundo hostil, na forma de um assustador demônio do vento, prestes a se apoderar de seu frágil barquinho e lançá-lo contra os jacentes” [30]; no testamento, ele exorta seus filhos a resistirem contra a Fortuna até o fim. No cerne da casta cavalheiresca, no testamento que é também estabelecimento de regras morais aos filhos, aparece o apoio à audácia consciente da individualidade de formação humanista. Segundo Warburg, “o início do Renascimento recorreu caracteristicamente a uma Antiguidade ressurgida em palavra e imagem para expressar a posição individual na luta com o mundo no estilo heroico da Antiguidade pagã” [31]. A Fortuna emergiu do mundo imaginário, representando “acaso”, porém a palavra latina também significa “vento tempestuoso”: possui, para o comerciante marítimo, uma capacidade assustadora e incompreensível, um demônio da destruição que pode transformar-se em uma deusa das riquezas generosa – o que evocou “a recuperação de sua personalidade mítica sob a influência de um antigo pensamento antropomorfizante” [32]. Ela funciona, para o mercador Sassetti, como “uma fórmula icônica de reconciliação entre a confiança ‘medieval’ em Deus e a autoconfiança do indivíduo renascentista” – e foi, assim, incluída no brasão de sua família. Esse é um dos argumentos a favor de uma psicologia da reconciliação fortemente presente nesse período de transição, do pathos dos demônios com a visão do mundo medieval. Um conflito entre a força da personalidade individual e os decretos misteriosos e arbitrários do destino. Aparentemente paradoxal – ao reverenciar uma deidade pagã no recinto católico a que dedica sua própria eternidade -, Francesco Sassetti “pôde exibir sua piedade cristã em meio aos símbolos romanos, […] porque acreditava que havia acalentado os espíritos vívidos da Antiguidade ao integrá-los na sólida arquitetura conceitual do cristianismo medieval”; para Warburg, “as incompatibilidades aparentemente bizarras entre […] Deus e a Fortuna […] podem ser vistas como um todo. São frutos de uma polaridade orgânica das oscilações próprias ao homem culto do Renascimento, que busca sua reconciliação na era da metamorfose da auto-consciência energética” [33]. A polaridade é orgânica e as tentativas de estabelecer equilíbrio revelam momentos de resistência decisivos. As pinturas na capela servem-se de todo o valor das descobertas históricas e arqueológicas para conferirem à Antiguidade, diz Warburg, “sua posição tipológica: a antecâmara do sistema cristão” [34].
Entre as forças diversas da tradição, das sobrevivências, e do compromisso entre ambas que gera o estilo individual, as fórmulas plásticas renascentistas de pathos foram profundamente estimuladas pela arqueologia figurativa e pela linguagem poética. Através das interpretações eruditas, antigos tipos de deuses da Antiguidade foram conservados durante a Idade Média, diz Warburg, “sob a roupagem solene da alegoria moral, sobretudo na introdução à interpretação alegórica de Ovídio. Uma segunda tradição iconográfica muito constante manifesta-se também na área da astrologia” [35]. Os deuses antigos, porém, sobrevivem não por seleção devida à memória individual de algum erudito – ainda que sua interpretação fosse articuladora do material textual para o artista -, mas graças à sua própria força de atração astral-religiosa Nesse solo mítico complexo, o compromisso encontrado pelos pintores renascentistas, entre a alegoria antiga, a imaginação antropomórfica e a reflexão comparativa e humanista, testemunha a passagem, atualizada na reflexão artística, do monstro para a ideia.
Eis uma das polaridades mais instigantes investigadas por Warburg, ou seja, aquela que pulsa entre a lógica e a magia, inscrita no renascimento da Antiguidade demoníaca. Segundo Warburg: “A época em que a lógica e a magia – nas palavras de Jean Paul – ‘floresciam enxertadas no mesmo tronco’ como tropo e metáfora, é, na verdade, atemporal”[36].
As reminiscências das imagens pagãs, cosmológicas e oraculares, apontam para uma necessidade primordial do estabelecimento de uma causalidade mitológica. Assim, a doutrina astrológica, por exemplo mantida pela Idade Média, mostra para Warburg que a influência mítica da Antiguidade, bem como sua transmissão, “abrigam valores cognitivos latentes para uma história da significação do pensar antropomórfico”. O simbolismo complexo e fantástico dos deuses gregos que, mais tarde, sob influência oriental, viriam a assumir o governo sobre os astros errantes, permanece inalterado até o Renascimento; a doutrina segundo a qual os então sete planetas governavam os meses e mesmo dias do destino humano de maneira calculável segundo leis pseudo-matemáticas, ofereceu, diz Warburg, “aos deuses em exílio um refúgio seguro nos calendários dos livros medievais” [37]. Segundo nosso psico-historiador:
“Desse tipo de tradição dos deuses, na qual as figuras das lendas gregas haviam adquirido concomitantemente o poder terrível de demônios astrais, partia uma corrente principal que permitiu que os pagãos vestidos à moda nórdica se difundissem com grande facilidade […]. Por isso já os primeiros produtos da imprensa, os livros com ilustrações xilográficas, apresentavam em texto e imagem os sete planetas e seus filhos, contribuindo assim, graças à sua fidelidade às fontes, para o Renascimento italiano da Antiguidade” [38].
Um exemplo, tão fundamental quanto perturbador, da sobrevivência das acepções astrais do mundo dos deuses gregos e sua potencialidade mnêmica fóbica, é a descoberta de práticas astrológicas no próprio círculo íntimo de Lutero durante a Reforma alemã. Os deuses astrais – através das obras dos astrólogos árabes e italianos – foram fielmente transmitidos por uma trilha que parte do helenismo e segue pela Arábia, Espanha e Itália, chegaram à Alemanha – e à sua imprensa. Esses deuses pagãos, conforme pontua Warburg, “continuaram sendo, em imagem e linguagem, divindades temporais plenas de vida, que marcavam matematicamente cada fração de período ao longo do ano […], dominando o cenário de modo mítico e pessoal” [39].
Lutero, que alegava a imponderável onipotência do deus cristão contra advertências pressagiadoras, contudo aceitou o núcleo místico-transcendental do evento cosmológico na sua própria qualidade de prodígio da natureza preconizado astrologicamente. Os membros de seu círculo mais próximo manejavam a astrologia antiga como uma medida de proteção intelectual contra a fatalidade – mundana, mas cosmologicamente condicionada. Segundo Warburg, “o fenômeno desse arraigamento tenaz da prática astrológico-pagã no círculo mais próximo dos aliados de um reformador hostil à astrologia perde algo de sua incompreensibilidade, assim que também se consideram […] todas aquelas diligências similares por parte dos eruditos aliados a Lutero como esforços pessoais, e sérios, em quebrantar mapas astrais hostilmente estilizados”, que os italianos haviam feito e trazido, à época, à Alemanha [40]. Pois havia uma verdadeira política astrológica em meio à disputa entre datas de nascimento – e seus correspondentes mapas astrais, tomados como hieróglifos oraculares fatalistas -, usadas como base para a legitimação ou deslegitimação de Lutero como profeta pressagiado pela ocorrência de determinadas conjunções planetárias. A própria concepção de história como algo condicionado pelo cosmos é característica do medievo tardio, mas genuinamente helenística e estava, para a teoria de então, vinculada sobretudo a certas conjunções astrais, que tinham como principais planetas Saturno e Júpiter. E assim, diz Warburg, como
“as aparições celestes foram apreendidas em termos humanos, para que se limitasse ao menos em imagem seu poder demoníaco, também um homem demoníaco como Lutero foi convertido em astro […], para que se compreendesse na imagem de uma grandeza mais elevada, cósmica, designada por Deus a causa de sua força, sobrevinda de modo super-humano e que de outra maneira seria inconcebível” [41].
A saturnofobia existente à época foi utilizada, como valor supersticiosamente venerador dos monstros: politicamente aplicada a uma disputa religiosa, sobretudo através da imprensa.
Porém, essa mesma saturnofobia, encontrou, na arte renacentista ao norte dos Alpes, uma razão sublimadora. Diz Warburg que “na época do humanismo alemão, abriu-se um caminho que, partindo desse uso prático das imagens proféticas […], conduz à obra de arte e à arte grandiosa de Albrecht Dürer” [42]. Warburg descobre, pela identificação de símbolos sobreviventes nas obras de Dürer, a influência da profecia monstrológica e astrofóbica, bem como o amadurecimento humanístico em relação a ela: “Suas criações estão profundamente arraigadas nesse solo primordial da crença pagã e cosmológica. Se não tivermos algum conhecimento sobre ela, não conseguiremos penetrar, por exemplo, na gravura Melencolia I, esse fruto maduro e misterioso da cultura cosmológica” de então [43]. Na gravura Melencolia I, Warburg vê o reconfortante ícone humanista contra a saturnofobia. Com Dürer, os funestos demônios planetários “foram remodelados pela metamorfose humanizadora […] na encarnação plástica do ser humano trabalhador e pensante” [44].
Para Warburg:
“Na época de transição do início do Renascimento, a causalidade própria à cosmologia pagã teve sua marca cunhada nos símbolos das divindades de inspiração antiga, e foi sua saturação com atributos humanos o que decidiu o feitio do confronto que, partindo do culto religioso aos demônios, levou à transformação puramente sublimadora da arte. […] O conflito cósmico ressoa como processo no interior do próprio homem. […] Com Dürer, os efeitos nocivos do demônio saturnino foram neutralizados pela atividade reflexiva própria da criatura iluminada” [45].
O complexo fóbico transmitido pela imagem mnêmica leva o homem a proteger-se; reflexivamente, ou religiosamente.
Entre os índios pueblo do Arizonas e Novo México, que Warburg conheceu no final do século XIX, foi possível ver a manifestação religiosa e prática em relação ao phobos. Na dança da serpente nas aldeias Oraibi e Walpi, localizadas em terrenos de deserto árido, a serpente, por aproximação mimética com os raios – prenúncios de chuva -, é utilizada com a intenção de exercer uma influência mágica necessária para a boa colheita de seu plantio, logo, para sua existência. Os dançarinos e a serpente viva, conta Warburg, “formam uma unidade mágica”: os índios relacionam-se totemicamente com as serpentes: ao invés de as sacrificarem – são cerca de cem serpentes, entre cascavéis e outras, em um ritual que ao todo dura dezesseis dias -, os índios as obrigam a atuarem como mediadoras em prol da chuva, na medida em que, no cume da cerimônia, ao som de chocalhos e matracas, as devolvem ao deserto, em um ritual que envolve levar a serpente à boca e então carregá-la até que esteja em segurança para retornar à natureza e efetuar a mediação.
É a essência da penetração mágica no ser da divindade, para participar de sua força sobre-humana. Segundo Warburg, de acordo com os mitos do povo de Walpi, essa veneração das serpentes remonta inteiramente às sagas cosmológicas sobre a origem ancestral [46]. A serpente portanto é apenas convertida em emissária para que retorne às almas dos mortos e produza, em forma de raio, a chuva, de maneira que entremeiam-se mito e prática. A expressividade do gesto – aqui, religioso e intimamente ligado à luta primordial com a natureza, pela vida -, inscreve-se no cerne da lacuna de significação. Na complexidade dos fatos culturais, toda a permanência da cultura não exprime uma essência ou arquétipo, mas um sintoma, um traço deslocado. Essa concepção, conforme analisa Didi-Huberman, enunciava, para Warburg, “uma hipótese antropológica sobre a plasticidade e sobre o mimetismo dos movimentos corporais investidos pela ordem simbólica. Inversamente, enunciava uma hipótese estética sobre o enraizamento de toda figuração antropomórfica na própria motricidade corporal” [47]; a inscrição da imagem dá-se sobre um fundo de linguagem de gestos, que inscreve valores intrínsecos, figurais e simbólicos.
Dentre as alegorias fóbicas que captam em imagem e símbolo relações entre o humano e o que lhe causa inapreensível temor, de fato nos chama atenção especial a serpente, que, como diz Warburg, “merece um capítulo próprio na filosofia do ‘como se’ ” [48]. A serpente, cuja mordida fatal aniquila sem piedade, tem o poder de abandonar sua pele e seguir subsistindo, renovada. Para a mitologia dos índios norte-americanos Walpi, as serpentes são vistas como causadoras de raios e portanto, geradoras de água pela chuva. Mas a serpente também era elemento fundamental no culto grego orgiástico a Dionísio, no qual as mênades dançavam com cobras vivas nas mãos em homenagem à divindade e as sacrificavam durante o frenesi extático. No Velho Testamento, na forma da serpente primordial, é o espírito do mal, da tentação, o poder satânico que provoca a tragédia do homem sob o pecado original. No grupo escultórico do Laocoonte, as cobras estranguladoras são o símbolo trágico da força destruidora do mundo inferior. Há, ainda, também oriunda da Antiguidade, uma divindade-serpente, Esculápio, o deus antigo da saúde, cujo símbolo é uma serpente enrolada em seu bastão terapêutico; segundo Warburg, “o que está enrolado em seu bastão é em certa medida ele mesmo, ou, para ser, mais exato, a alma do morto que já partiu, que subsiste e reaparece na forma da serpente” [49]. Podemos com Warburg dizer que, na mitologia, não se busca a causa mais simples, mas, ao contrário, “é instituído, em prol da possibilidade de apreensão, um ser saturado com um máximo de força demoníaca, para que assim se possa realmente apanhar a causa dos acontecimentos enigmáticos” [50].
Da mesma maneira [51], o transporte arqueologizante dos deuses deu-se justamente por sua saturação de força demoníaca. A representação destes deuses, no Renascimento, levados para “o reino da beleza de aparência escultural, iniciado por Rafael e sua escola”, aponta Warburg,
“teve para nossa visão científica de cultura a consequência fatal de considerarmos os deuses pagãos, enquanto potências do destino para o alto Renascimento, superstições já ultrapassadas. Mas a força demoníaca dos deuses pagãos, de jaez astrológico, precisa ser considerada justamente como sua função primordial mais antiga e própria, que sobreviveu ao período de espiritualização estetizante” [52].
Ou seja, ainda que no Renascimento a arte tenha conseguido, através de compromissos individuais dos próprios artistas entre um repertório imagético latente, mnêmico, e a individualidade humanista, sublimar racionalmente o poder fóbico dos demônios astrais – a força fóbica antropomorfizada -, isso só se deu através de um debate com as superstições, que não estavam ainda ultrapassadas. No Palazzo Schifanoia, a Vênus, ainda é vestida “alla franzese” – seguindo o estilo pictórico da tradição flamenga – e, até chegar no “éter luminoso” do Triunfo de Galateia de Rafael, precisou passar pela libertação, com Botticelli, do “realismo medieval da arte do gênero banal ‘alla franzese’, da subserviência ilustrativa e da prática astrológica” [53].
Também no Palazzo Schifanoia, nos afrescos feitos pela mão do artista responsável, Francesco del Cossa, “emerge do plano uma espécie de humanidade liberta sob o signo da verdadeira Antiguidade”, enquanto que as pinturas executadas por seus assistentes, segundo Warburg, “graças à inspiração excessivamente erudita do consultor, […] são impedidos pela monstruosidade demoníaca de ascender à divindade olímpica” [54]. Botticelli teria sido o intermediário, também, entre Cossa e outro afresco de Rafael, este nas Stanze do Vaticano, que retrata a escola de Atenas, na qual, “já não se trata mais”, diz ele,
“de um valor expressivo simbólico, próprio ao monstruoso complexo agonístico. A serenidade elevada da academia grega permeia o salão. A deusa Atena está em um nicho ensombrecido, mas governa lá do plano de fundo. Per monstra ad sphaeram! Da terribilità dos monstros à contemplação, na esfera ideal, da observação pagã erudita. Eis a marcha no desenvolvimento cultural do Renascimento” [55].
Através do monstro, chegar aos astros. O complexo fóbico, antropomorfizado, é manipulado e sublimado. Trata-se da luta pela liberdade criativa e intelectual, na qual há um estímulo que realiza-se como função mnêmica: o que Warburg define como “a dialética do monstro” [56]. Ao repetir o adágio do monstro para os astros, ele identifica uma tensão polar, no processo de desdemonificação da herança das impressões cunhadas pelo phóbos, que confere à dinâmica do movimento humano uma borda de vivência aterradora. A presença – sobrevivente – do mito, cujo horizonte é definido pela polaridade entre lógica e magia, ressalta portanto uma dimensão psicológica da cultura; daí a exigência de Warburg de uma “psicologia dos modos de expressão humana”. No diálogo entre a imagem e o mito, há algo que transborda para a ação, uma vez que a imagem é dotada de uma capacidade não apenas de representar, mas de suscitar os estados de alma. E aquilo que é visado na relação entre a imagem e o mito não é puramente linguístico, nem puramente visual, nem uma síntese destas duas dimensões. A concepção warburguiana da imagem como Pathosformel é um híbrido de matéria e de forma, de singularidade inaugural e de repetição. Ou, como sugere Didi-Huberman, é preciso compreendê-las como “cristalizações corporais da ‘dialética do monstro’. Momentos-sintoma da imagem antropomórfica” [57].
Sintoma de tempo, que na arte irrompe, pois ela está “no centro do redemoinho da civilização” [58]. O tempo dos fantasmas inscrito na capacidade de sobrevivência das imagens é permeado por uma luta de forças plásticas.
Sobretudo, o comportamento frente às imagens mnêmicas é primitivo. A memória das imagens revela valores cognitivos a respeito do modo de pensar antropomórfico e, através dela, é possível analisar as “profundezas da natureza pulsional”.
Ao inscrever a palavra Mnemosyne na entrada de sua biblioteca, Warburg estabelece de maneira central o problema da dialética das sobrevivências – que permanecem latentes, ou, como memória, recalcadas, mas que nunca deixam de exercer força e que, repentinamente, retornam. Estabelece portanto a centralidade da busca por “palavras primitivas da linguagem dos gestos passionais”, sobretudo pelos desdobramentos da investigação sobre “a função dos antigos valores expressivos, predeterminados através da representação da vida em movimento na arte do Renascimento europeu”. A busca por uma “nova teoria da fundação memorativa das imagens”.
Atlas Mnemosyne é o nome que Warburg deu a seu derradeiro e talvez mais ambicioso projeto. Tratava-se de dispôr reproduções fotográficas (de imagens de diferentes épocas, obras de arte, monumentos arquitetônicos, ilustrações ou mesmo notícias de jornal), reunidas por afinidades patéticas, pregadas (literalmente, com tachinhas, para que pudessem ser reagrupadas em outras pesquisas de diferentes pathos) em grandes pranchas colocadas em cavaletes móveis que ocupavam o salão da biblioteca de Warburg, nas quais a comparação simultânea entre as imagens evidencia as sobrevivências. O Atlas ilustra “ad oculos” o método da pesquisa warburguiana e sua concepção de sobrevivências inscritas nas imagens como fórmulas de pathos. Mostra que a memória atua junto aos pólos limítrofes do comportamento psíquico – sua cristalização em imagem, quer reforce a contemplação serena ou a entrega orgiástica, “aciona mnemicamente a herança indelével” [59].
Ao observar as pranchas do Atlas Mnemosyne, as relações criadas pela simples “boa vizinhança” das imagens, são cada vez mais complexas, densas e intrincadas. O Atlas não oferece uma explicação interpretativa preconcebida, mas uma matriz visual, capaz de multiplicar as interpretações, capaz de interpretar a cultura, sempre como um processo de sobrevivência, ou seja, de transmissão, recepção e polarização. O Atlas Mnemosyne foi definido por Warburg como “uma história da arte sem palavras”, tendo em vista a função que ele atribuía à imagem como órgão da memória social, sintoma das tensões espirituais culturais: seu atlas reúne as correntes energéticas [fantasmáticas] que animam a memória.
Pois, voltando à análise de Didi-Huberman à guisa de conclusão,
“[…] a graça da imagem provoca, além do presente que ela nos oferece, uma dupla tensão: com respeito ao futuro, pelos desejos que convoca, e com respeito ao passado, pelas sobrevivências que evoca. Em cada imagem poderosa é provável que Warburg tenha visto esse duplo ritmo em ação: ‘A ninfa extática (maníaca), de um lado, e o deus fluvial enlutado (depressivo), do outro’. O autor de Mnemosyne é um pouco esse deus fluvial para nossa bela disciplina, a história da arte: tendo por fundo o luto, ele administra seu devir e seus turbilhões internos. Que turbilhões? Momentos originários, redemoinhos do tempo na história. Não só o modelo freudiano do sintoma permite compreender melhor o poder desses redemoinhos, sua necessidade dinâmica e formal, como também a metapsicologia freudiana do tempo permite observar o próprio rio, o rio das sobrevivências – rio de Mnemosyne – como que por dentro” [60].
Se Atlas lembra essa personagem da mitologia carregando o universo sobre suas costas, a mãe das musas e personificação da memória Mnemosyne, era, na visão de Warburg, encarregada de “oferecer e de abrir balizas visuais não de uma história da arte, mas de uma memória impensada da história”. Significa que, para ele, as imagens não são meros “objetos”, nem apenas cortes no tempo e golpes no espaço. São “atos”, memórias, questionamentos, visões e prefigurações; são os os rastros de uma longa história de olhares que nos precederam.
Para Warburg, Buckhardt e Nietzsche foram os dois maiores sismógrafos da história[61], pois sensíveis a seu anacronismo, às resistências daquilo que, na cultura humana, sobrevive, latente como um trauma. A ideia de retornos acronológicos enquanto dinâmica das pulsações, sob o ponto de vista do trauma psicológico, freudiano, passou a fazer parte do vocabulário warburguiano de maneira mais intensa e consciente após sua própria internação, na clínica psiquiátrica do dr. Binswanger, primeiro médico a aplicar a clínica proposta por Freud, e que tornou-se interlocutor intelectual daquele paciente ilustre. Acometido por um surto psicótico, Warbrug permaneceu internado por quatro anos e sua alta foi-lhe dada quando escreveu e apresentou, ainda na clínica, a palestra sobre os índios pueblo norte-americanos. Foi após deixar a clínica de Binswanger que Warburg passou a trabalhar arduamente no projeto de seu Atlas Mnemosyne, essa tentativa de traçar uma restituição da Antiguidade como símbolo da “dupla herma com Apolo e Dionísio”, de modo a buscar a “alma dos valores expressivos pré-formados na representação da vida em movimento”. O projeto permaneceu inacabado, como se poderia supor por sua magnitude, pois, como os livros da biblioteca, as imagens eram constantemente mudadas, nas pranchas do Atlas, tendo em vista uma lógica por trás da relação estabelecida entre as imagens e tornando complexa sua reunião. O italiano Maurizio Ghelardi contraria um senso-comum, ao dizer que a criação do atlas, essa atualização de um “pensamento por imagens”, não é, porém, o grande acontecimento intelectual da trajetória de Warburg, mas sim sua doença. Para Ghelardi, a doença prova sua profunda sensibilidade intelectual; a capacidade de transformar a doença em estudo e o estudo em doença, possibilitou a ele a compreensão, restrita em qualquer das ciências com nome, da memória inscrita nas imagens – que as torna realidades mais complexas, dotadas de sobredeterminações temporais e significantes. Seria o indício de que, também Warburg, foi um sismógrafo muito sensível.
A reflexão warburguiana é sensível à percepção de uma esquizofrenia da cultura ocidental, que é percebida nas imagens, na medida em que estas trazem consigo, no percurso constelar que efetuam como sobrevivências espectrais [como Nachleben], um conflito fundamental de sua formação, entre a representação racional e a representação mágica da vida, entre o logos e o pathos, entre a emoção primitiva e a reflexão que pretende dominá-la. A sua visão trágica da cultura implicava precisamente um dualismo perene, a luta de Atenas contra Alexandria: conflito nunca resolvido entre o pensamento lógico-racional e o mágico-religioso. Sem a existência desse intervalo entre os dois pólos, a arte não seria concebível. O artista, diz Warburg na sua introdução ao Atlas Mnemosyne, “oscila entre a visão matemática do mundo e a religiosa”, impelido pela função mnêmica, que não cria prontamente o espaço da reflexão, mas atua “junto aos polos limítrofes do comportamento psíquico, de modo a reforçar a tendência à contemplação serena ou à entrega orgiástica” [62]. A função polar da figuração artística, “entre a fantasia imersiva e a razão emersiva”, é algo documentado na confuguração das imagens, cujo poder – psíquico e plástico – atua diretamente sobre o material sedimentado de uma memória inconsciente – intemporal, insensível às continuidades narrativas ou contradições lógicas. Segundo Warburg:
“O desagrilhoar do movimento expressivo do corpo […], abarca toda a escala da humanidade cineticamente abalada (escala que vai da cisma desamparada ao frenesi sanguinário), e todas as ações mímicas entre seus extremos (tais como andar, correr, dançar, pegar, levar, carregar) permitem ouvir o eco de uma entrega passional […]. Ora, o Renascimento italiano buscou introjetar essa herança do engrama fóbico com uma ambivalência peculiar. […] A tendência ao restabelecimento da clareza nos contornos da linguagem gestual – só na aparência puramente superficial e artística – conduziu desde si mesma, isto é, correspondendo à lógica interna das amarras arrebentadas, a uma linguagem formal adequada à trágica e estoica Antiguidade soterrada”.
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notas:
[1] “É um velho livro a folhear,/ Atenas e Oraibi, todos primos” -Warburg brinca, com essa corruptela do verso de Goethe, em Fausto: Es ist ein altes Buch zu blättern: / Vom Harz bis Hella alles Vettern [“É um velho livro a folhear:/ Do Harz à Hélade, todos primos”]. Cf. “Memórias da viagem à região dos índios pueblos na América do Norte”, in: H. fantasma gente grande.
[2] AGAMBEN, Ninfa, pp. 23, 24.
[3] Este conceito central é de difícil tradução para manter a ideia de “pós-vida”; em italiano optou-se pela tradução “immagine insepolta” para “imagens sobreviventes”, escolha interessante, pois mais fiel à ideia de fantasmas.
[4] AGAMBEN, Ninfa, pp. 36, 37
[5] CASSIRER, apud DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, pp. 174, 5
[6] AGAMBEN, Ninfas, apud TEIXEIRA, Felipe Charbel. “Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas”
[7] Idem, ibidem, p. 158
[8] DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos vaga-lumes, pp. 61, 62.
[9] Como as imagens dialéticas de Benjamin, as fórmulas de pathos de Warburg são recebidas em um estado de “ambivalência latente não polarizada” e, somente no encontro com o indivíduo vivente, podem readquirir polaridade e vida.
[10] AGAMBEN, Ninfas, p. 46
[11] BREDEKAMP, Horst e DIERS, Michael, “Prefácio à edição de estudos”, in: WARBURG, A renovação da Antiguidade pagã, p. xvii
[12] Id., ib., p. xviii
[13] De sua “linfa vital”, como disse Edgar Wind.
[14] WARBURG, apud DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos vaga-lumes, p. 134
[15] Idem, H. fantasma, p. 82
[16] Id., apud DIDI-HUBERMAN, A sobrevivência dos vaga-lumes, p. 254
[17] Id., ib., p. 66
[18] Id., ib., p. 247
[19] Id., ib., p. 248
[20] “…e não um deixar-se levar pelos impulsos no fluxo das coisas, rindo à toa”. Id., ib., p. 262
[21] De acordo com Agamben, “essa situação da imagem entre a religião e a arte é importante para delimitar o horizonte de sua investigação, cujo objeto é a imagem, mais do que a obra de arte, e isso a coloca decisivamente fora dos confins da estética”[21]. Porém, ainda mais forte que a questão metodológica, a relação entre arte e religião e sua inserção nas simbologias mágicas possibilitaram a Warburg a constatação de um pensamento primordial do homem em relação ao cosmos. Entre os índios, Warburg percebeu dois processos paralelos, “que mostram, com uma conspicuidade estranha e surpreendente, a polaridade do ser humano em sua luta com a natureza. Primeiro, a vontade de subjugar magicamente a natureza por meio da metamorfose em animal; e segundo, a capacidade de conceber – com uma abstração notável – a natureza em termos cósmico-arquitetônicos como um todo que se mantém objetivamente coeso e está condicionado tectonicamente” [WARBURG, Histórias de fantasma para gente grande, p. 260].
[22] Id., ib., p. 258
[23] Id., ib., p. 260
[24] Leopoldo Waizbort, “Apresentação”, in: WARBURG, Histórias de fantasma para gente grande, p. 14
[25] DIDI-HUBERMAN, op. cit. p. 277
[26] AGAMBEN, “Aby Warburg e a ciência sem nome”, p. 116
[27] WARBURG, apud DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, p. 236, nota 216
[28] GOETHE, “Sobre o Laocoonte”, apud DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 181
[29] A imagem é resultado de sobrevivências e de embates primordiais. Eis também uma discussão com Kant, pois a compreensão da obra de arte enquanto implicação antropológica da imagem, do artista e do espectador, contradiz a ideia kantiana da arte desinteressada. Para Didi-Huberman, a arte “não cura, não sublima, não acalma absolutamente nada. Ainda que seja ‘uma potência afirmativa do falso’, a arte continua a ser uma efetuação [vital] da potência”: recusa de antemão todo o ‘ascetismo’ da tradição estética clássica” [DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 128].
[30] Id., ibid., p. 183
[31] Id., ibid., p. 184
[32] Id., ib., p. 187
[33] Id., ib., p. 194
[34] Id., ib., p. 193
[35] Id., ib., p. 447
[36] Warburg, Renovação A. pagã, p. 517
[37] Id., ib.
[38] Id., ib., pp. 454, 455
[39] WARBURG, H. fantasma, p. 132
[40] Id., ib., p. 149
[41] Id., ib., pp. 195, 196
[42] Id., ib., p. 179
[43] WARBURG, A renovação da Antiguidade pagã, p. 554
[44] Idem, H. fantasma, p. 187
[45] Id., ib., pp. 188-190
[46] “Narra-se em uma fábula como o herói Tí-yo teria viajado ao mundo inferior para descobrir onde encontrar a fonte primordial da água tão almejada. Nessa viagem, Tí-yo passa pelas várias kivas dos regentes do mundo inferior e – sempre acompanhado de uma pequena mulher-aranha que fica sentada em sua orelha direita, onde não pode ser vista, e que lhe serve de guia, como um Virgílio indígena que conduz Dante pelo mundo inferior – finalmente chega, após passar pelas duas casas do Sol a oeste e a leste, à grande kiva da serpente, onde obtém o mágico páho para conjurar o clima. Tí-yo retorna com ele e, segundo a saga, traz ainda duas jovens serpentes do mundo inferior, que têm filhos serpentiformes – criaturas muito perigosas, que acabam por obrigar as tribos a se mudar dali, de modo que nesse mito as serpentes são ao mesmo tempo divindades metereológicas e animais da tribo, que motivam as peregrinações do clã” – WARBURG, H. fantasma para gente grande, p. 236.
[47] DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, p. 188
[48] WARBURG, H. fantasma, p. 249
[49] Id., ibid., p. 240
[50] Id., ib., p. 248
[51] Para Didi-Huberman, Warburg pôde observar “a força mágica das semelhanças, o que conviria denominar, para além de Lévi-Strauss, de eficácia imaginária. Essa descoberta, independentemente de qualquer exotismo – e de qualquer arquetipismo -, deu início ao projeto, tão necessário quanto delicado, de um comparatismo antropológico baseado em critérios de forma e também de conteúdo e contexto” [DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, p. 312]
[52] Id., ib., p. 355
[53] Id., ib.
[54] Id., ib., p. 309
[55] Id., ib., p. 311
[56] Que, para Didi-Huberman, “descreve uma estrutura de sintoma”, que explica, “simultaneamente, o recalcamento e o retorno do recalcado: […] na ‘crise’ e na figura ‘sintomática’, que surge no ‘grau de tensão máxima de energia’”.
[57] Id., ib., pp. 255, 256
[58] Id., ib., p. 136
[59] WARBURG, H. fantasmas, p. 363
[60] DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, p. 277
[61] Um bom contexto histórico da influência da “sismógrafo” Buckhardt é oferecida pelo professor Gerd Bornheim: “Se Winckelmann pretendia tornar presente e atual a Grécia, com Hoelderlin predomina a ideia da distância, e sua tristeza nasce da consciência aguda de um abismo entre a Grécia e a Alemanha. O poema Grécia (Griechenland) termina com as palavras: Denn mein Herz gehoert den Toten an [“Pois meu coração pertence aos mortos”]. A morte chama-se Jacob Burckhardt e é o capítulo final da história do sonho grego. […] As raízes do autor de Considerações sobre a história universal ainda estão no classicismo alemão, mas, se para Goethe o mais belo sonho da humanidade foi sonhado pelos gregos, esse sonho, em Burckhardt, transforma-se quase em um pesadelo, objetivado em sua monumental História da cultura grega, a primeira visão pessimista da Grécia. Ele vê a cultura antiga com os olhos de Schopenhauer, e suas categorias interpretativas básicas, que adquirem corpo na arte, são as da angústia, da melancolia, do desespero, da dor. A partir dessa obra, a Grécia deixa de ser uma religião. Se Hoelderlin realmente acreditava nos deuses gregos, agora abrem-se as portas para uma interpretação do mundo antigo determinada pelo critério da objetividade” – BORNHEIM, Gerd. “Introdução a Winckelmann”.
[62] WARBURG, H. fantasmas, p. 363