matraca

Homem usando borboletas

7 maio, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O poeta

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

 

Manoel de Barros é o poeta que conferiu à poesia a delicada possibilidade de ser entendida como “a mais verdadeira maneira séria de não dizer nada”. Entre versos simples e carregados de sentido, é notável seu lírico talento para imagens, acompanhado por uma concretude quase surreal, como se pode perceber em trabalhos como Gramática Expositiva do Chão (1966). Sua poesia despertou a admiração de Millôr Fernandes, que escreveu sobre ele textos que o tornaram nacionalmente conhecido – sobre certo poeta ‘de verdade’ que o Brasil precisava conhecer; Manoel já era um senhor de mais de 70 anos. A partir de então, ele passou a publicar com maior frequência, cinco livros nos anos 90, depois mais seis na década passada. A editora LeYa, homenageando o poeta, publicou no final do ano passado a sua Poesia Completa. O volume conta com um poema inédito e também com o volume “Escritos em verbal de ave”, publicado pela mesma editora em 2011.

Daniel Piza, em artigo publicado no Estado de São Paulo, conta que o “grande acontecimento da sua vida, porém, se chamou João Guimarães Rosa. Manoel não lembra qual foi o ano em que o leu pela primeira vez, mas lembra bem o título – Sagarana (1946) – e a sensação deixada: “Eu fiquei roseado.” Manoel já era maduro e tinha alguns livros publicados, nos quais vê “o desejo de desconstruir a linguagem”, mas Rosa foi o pulo do sapo. Conta com discreto orgulho uma vez que se encontrou com o mestre, em 1960, por meio do diplomata Mario Calabria. Deu a ele o Compêndio para Uso dos Pássaros, então recém-publicado, e Rosa o leu imediata e calmamente, à frente dos dois amigos. Terminou, sorriu e resumiu: “Manoel, é um doce.” Antes, a bordo de um navio a caminho de Corumbá, tinha trocado apenas umas poucas palavras com Rosa, cercado de um séquito de amigos e brandindo um leque de buriti boliviano. O assunto da breve conversa? Passarinhos, claro”. Piza analisa que a “prosa de João deu asas à poesia de Manoel. Além das semelhanças de universo infantil sertanejo (“Mas o pantaneiro é mais pacífico que os jagunços; só usa arma para matar jacaré e queixada”), aponta acima de tudo “a paixão pelas palavras”. É o mesmo motivo por que rejeita rótulos como “regionalista”, que de vez em quando tentam colar em sua poesia. “Minha poesia é feita de palavras, não de paisagens”, diz, ressalvando a seguir que não pode fugir às suas origens: “Ela é também impregnada da água e do solo da minha infância”. Eis a explicação para um dos aforismos que estão na segunda parte do novo livro, Menino do Mato, e o qual Rosa muito possivelmente assinaria: “A poesia é a infância da linguagem”. Segundo Guimarães Rosa, Piza também conta, Manoel “era um poeta que reinventa imagens e ele, Rosa, a sintaxe”.

Em uma entrevista publicada no Jornal do Brasil em 16 de dezembro de 2006, Manoel aceitou responder a algumas das provocações deixadas em diversas poesias e os versos de seus livros foram transformados em perguntas. À pergunta “Como pegar a voz de um peixe?”, ele respondeu: “Mais difícil do que pegar na fala dos peixes é o pegar na fala das coisas. Francis Ponge tinha o gosto de pegar na voz das coisas. É necessário cultivar o peixe em casa para se conseguir pegar na voz dele. Há que domesticar o peixe. Eu, certa vez, criei um peixe no bolso. Ele pedia pra sair do bolso e cair nágua. Mas há que insistir em prendê-lo no bolso. Assim o peixe implora. E nós podemos agarrar na voz. Não é fácil. Ele soletra as águas antes de falar”; à pergunta “Os jacintos ainda crescem sobre as suas palavras?”, respondeu que “em poesia a Razão é acessório. Quem manda em poesia é a visão. Nem o ver é fundamental. O ver também é acessório. Quem manda é a visão. A visão vem completada de loucuras, fantasias e bobagens profundas. Foi a visão que achou jacintos crescendo em minhas palavras. Acho que os jacintos ainda crescem nas minhas palavras”; e sobre se “Ainda dá tempo de inventar uma tarde a partir de uma garça?”, Manoel disse: “Ontem eu vi um bentevi em cima de uma pedra. Ele estava fascinado pela solidão da pedra. Estou relendo o profeta Jeremias. As suas lamentações pelas desgraças da sua Jerusalém. No fim ele teve esta visão: Até as pedras da rua choravam”.

A jornalista Nina Rahe, em artigo publicado na revista Bravo, conta: “Viver um ano em Nova York e conhecer a pintura de Picasso e Chagall ajudou a formar a sensibilidade artística de Manoel de Barros. “Antes disso, eu era um primitivo, queria escrever em guarani”, diz o poeta. Manoel de Barros gosta mais de viajar por palavras “do que de trem” – e é por isso que todas as manhãs, na rotina de vadiagem com as letras, ele se fecha no “escritório de ser inútil”, onde diz ter sossego de pedra. […] Em Campo Grande (MS), onde mora numa casa modesta, de tijolos aparentes, com sua mulher, Stella, dedica-se a não “fazer nada” – que é como ele chama o escrever”.

A LeYa já havia publicado um volume com a poesia completa de Manoel de Barros em 2010 – sem Escritos em verbal de aves, livro posterior a essa primeira coletânea –, e o disponibiliza para visualização em pdf. O livro traz em seu princípio a “Entrada”, uma apresentação escrita pelo próprio Manoel, na qual ele diz: “Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada tenho profundidades”. A nova edição pode ser visualizada aqui.

Além da edição atualizada de Poesia completa, a LeYa também publicou uma edição especial, em formato de caixa, composta por 18 pequenos volumes. Uma bela homenagem a um dos principais poetas brasileiros. “Eu sou procurado pelas palavras. Elas desabrocham em mim. Poesia é uma artesania, é o belo das palavras”.

Manoel de Barros, autor de várias obras pelas quais recebeu prêmios como o Prêmio Orlando Dantas em 1960, conferido pela Academia Brasileira de Letras ao livro Compêndio para Uso dos Pássaros. Em 1969 recebeu o Prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pela obra Gramática Expositiva do Chão, em 1996, o Prêmio Alfonso Guimarães da Biblioteca Nacional, pelo Livro das ignorãças, em 1998 recebeu o Prêmio Nacional de Literatura do Ministério da Cultura, pelo conjunto da obra, em 2000, o Prêmio Academia Brasileira de Letras, com o livro Exercício de ser criança, em 2002, o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria livro de ficção, com O fazedor de amanhecer – para citar apenas algumas premiações. Seus livros foram publicados em Portugal, Espanha, França e Estados Unidos. Manoel de Barros foi tema do premiado documentário “Só dez por cento é mentira”, do diretor Pedro Cezar, exibido em janeiro de 2010.

 

A maior riqueza do homem

é a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.

Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,

que puxa válvulas, que olha o relógio,

que compra pão às 6 horas da tarde,

que vai lá fora, que aponta lápis,

que vê a uva etc. etc. Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.

 

 

MANOEL DE BARROS – POESIA COMPLETA

Autor: Manoel de Barros
Editora: LeYa
Preço: R$ 54,90 (480 págs.)

 

 

 

 

 

 

BIBLIOTECA MANOEL DE BARROS – 18 VOLUMES

Autor: Manoel de Barros
Editora: LeYa
Preço: R$ 162,90 (912 págs.)

 

 

 

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