Numa das paredes exteriores do auditório a frase grafitada:
“O doutor Rojas (cuja história da literatura argentina é mais extensa do que a literatura argentina).”
Todos olharam para o senhor Borges, o grafitador do bairro. O senhor Borges sorriu. Abanou a cabeça e murmurou um pouco convincente: não fui eu.
Num jogo ambíguo com a comum idolatria aos escritores que a história da literatura já fez consagrar, o escritor Gonçalo M. Tavares, uma das figuras centrais da literatura portuguesa atual, criou um fantástico “Bairro”, cujos moradores são “o senhor Valéry”, “o senhor Brecht”, “o senhor Walser”, “o senhor Calvino”, “o senhor Swedenborg”, entre outros escritores ilustres. Um bairro que os avizinha, ao mesmo tempo os isola e humaniza. A ambiguidade desdobra-se em cada livro, de acordo com o protagonista escritor.
Em O senhor Eliot e as conferências, cada capítulo é uma conferência proferida pelo senhor Eliot , a convite do senhor Manganelli, a um público diminuto, porém intelectualmente requintado, como Borges, Breton e Swedenborg. As conferências são sobre poesia, ou mais especificamente, sobre um verso de algum poema de poetas sem relação aparente entre si: Cecília Meireles, René Char, Sylvia Plath, Marin Sorescu, W.H. Auden, Joseph Brodsky e Paul Celan. As conferências prometem explicar os versos, porém os desmontam grosseiramente até que deixem de fazer sentido e, então, propõem-lhes correções absurdas, usando de um racionalismo e de um materialismo que soariam sádicos a qualquer amante dos poetas analisados. Um humor negro intelectual, muito engenhoso. Engraçado e curioso fato: no livro O senhor Swedenborg e as investigações geométricas, o senhor Swedenborg assiste a uma conferência do senhor Eliot, exatamente sobre um verso de Sylvia Plath (verso efetivamente analisado em O senhor Eliot e as conferências) que diz: “Não sou ninguém; não tenho nada a ver com explosões”. O senhor Swedenborg se distrai logo no início da fala de Eliot e mergulha em sua obsessão sobre a geometria como um problema para a escrita e para o escritor; somente em meio aos aplausos pelo término da conferência, volta a prestar atenção.
Segundo Júlia Studart, doutora em Teoria Literária, na resenha publicada no jornal O Globo, “Gonçalo procura imprimir sobre o corpo de seu trabalho, a partir do corpo de alguns escritores e pensadores (os moradores do Bairro), uma teoria do espaço íntimo e, ao mesmo tempo, pensá-los como componentes de uma intensidade secreta relacional”. Analisando o conjunto da obra do escritor, ela afirma que é o livro Biblioteca (publicado no Brasil pela editora Casa da palavra) “que abre um empenho em direção ao corpo político de escritores e de seus trabalhos a partir de verbetes de imaginação. A tarefa é impor o homem com sua humanidade como um centro de reflexão, como um centro da história nos tempos de agora”.
Gonçalo M. Tavares afirmou que “O Bairro” não foi pensado antes do primeiro livro da série, O senhor Valéry, que era apenas um livro isolado e que acabou por articular-se depois com a escrita dos outros – O senhor Henri e a enciclopédia, O senhor Brecht, O senhor Juarroz, O senhor Kraus, O senhor Calvino, O senhor Walser, O senhor Breton e a entrevista, O senhor Swedenborg e as investigações geométricas e O senhor Eliot e as conferências.
Tavares possui já uma extensa obra, entre romances, teatro e poesia. Recebeu os mais importantes prêmios literários em língua portuguesa – para citar somente alguns: o Portugal Telecom em 2007; o prêmio José Saramago em 2005 pelo romance Jerusalém (publicado pela Companhia das Letras); o prêmio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian pelo livro O Senhor Valéry; o prêmio “Revelação de Poesia” da Associação Portuguesa de Escritores com Investigações.Novalis (editora Difel); em 2011, os prêmios “Grande Prémio Romance e Novela” da Associação Portuguesa de Autores, Portugal Telecom e Prémio Fundação Inês de Castro, pelo livro Uma viagem à Índia (publicado pela editora Leya). Até José Saramago, em 2005, rasgou-lhe o elogio: “não tem o direito de escrever tão bem aos 35 anos: dá vontade de lhe bater”.
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Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu
Trata-se, em primeiro lugar, podemos pensar, de uma mentira. O dia não cresce. Porém, as coisas não são assim tão simples.
Antes do mais, note-se neste verso que o crescer de um dia não é em direção a um sítio alto qualquer. O dia poderia crescer em direção ao topo de um edifício. Mas não. Cresce em direção ao céu.
Reparem ainda que o dia, no verso de Cecília Meireles, vem do chão; o chão visto assim como o outro lado do céu.
Uma dúvida se instala de imediato sobre este verso.
De que chão se trata?
Porque se o dia, imaginemos, crescer desde o chão de uma montanha de três mil metros de altura até ao céu, será evidente que quem vem ver tem menos para ver, pois o percurso é menor. Se se tratasse aqui de algo comercial, seria perfeitamente legítimo que alguém que vem ver o dia crescer entre o chão de uma montanha de três mil metros e o céu não pague o mesmo. […]
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O SENHOR ELIOT E AS CONFERÊNCIAS
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Casa da Palavra
Preço: R$ 14,70 (80 págs.)