Literatura

Viajar e escrever, viajar para escrever

29 novembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Um bom par de sapatos e um caderno de anotações é uma seleção de textos e breves considerações de Tchekhov, organizada por Piero Brunello – professor de história social na Università Ca´Foscari, Veneza, também responsável pelos textos de prefácio e apêndice. A tradução foi feita por Homero de Andrade para a editora Martins Fontes. O livro foi publicado originalmente em 1895, resultado de notas realizadas em uma viagem do escritor, entre os meses de abril e outubro de 1890, à ilha-prisão de Sakalina, situada entre o mar de Okhotsk e o mar do Japão. Apesar da organização dos textos sugerir a formação de um “guia teórico-prático de reportagem”, para viajantes, jornalistas ou, simplesmente, leitores, o livro ultrapassa esta modesta pretensão, concentrando textos interessantes sobre assuntos variados: o castigo comum das fustigações – censurado até pouco tempo mesmo em traduções estrangeiras – ou questões teóricas e práticas da narrativa, observações que acabam por esboçar os traços de sua poética.

Durante a viagem, Tchekhov percorreu em condições precárias a região siberiana – a pé, a cavalo, sobre carroças, navegando em balsas e barcos a vapor –, demorou dois meses e meio para chegar à ilha, que “pareceu-lhe um inferno”; percorreu mais de doze mil quilômetros. Ao chegar, “pôde encontrar as pessoas, ver como viviam e escutar suas histórias”.

Sua grande reportagem possui lições de vida, até hoje vivas e válidas. O escritor José Castello, por exemplo, em texto publicado no jornal Rascunho, diz que o livro é “precioso”: “Na verdade, eu o leio como um precário, fragmentado, mas fértil ‘guia de vida’. Tenho-o sempre por perto”. A lição que tira do livro baseia-se principalmente na seguinte anotação (batizada pelo organizador de “Não planejar demais”): “Às vezes deixar nas mãos do acaso pode revelar-se útil, principalmente se o lugar é desconhecido”. Para José Castello, essa passagem mostra que a literatura “é um ‘lugar desconhecido” e, assim, conclui: “Ao chegar, enfim, à ilha de Sacalina, Tchekhov tentou impor certa ordem ao caos que nela encontrou. Acumulou gráficos, tabelas, estatísticas, que depois não lhe serviram para nada. A escrita veio de outro lugar. Surgiu “entre” essas tentativas de ordem, nos intervalos em que ele desistiu de ordenar e aceitou apenas observar. Admirar a própria confusão: eis um bom começo para quem pretende escrever”.

Antes de partir, como consta no livro, Tchekhov escreveu ao amigo Suvorin:

Pode ser que eu não consiga escrever nada, mas, ainda assim, a viagem mantém para mim seu aroma: lendo, olhando para tudo e ouvindo, conhecerei e aprenderei muito. Ainda não viajei, mas, graças aos livros que agora li por necessidade, fiquei sabendo muita coisa que todos devem saber, sob pena de quarenta açoites, e que minha ignorância não me permitiu conhecer antes. Além disso, suponho que a viagem seja um trabalho ininterrupto, físico e intelectual, de meio ano, e isso me é necessário, pois sou ucraniano e já começo a ficar preguiçoso. É preciso adestrar-se. Que seja minha viagem uma asneira, uma cisma, um capricho, mas pense e diga: o que perderei se partir? Tempo? Dinheiro? Vou passar privações? Meu tempo não me custa nada; dinheiro, de qualquer modo, eu nunca tenha, e, quanto às privações, vou viajar a cavalo uns 25, 30 dias, não mais, passarei todo o tempo restante no convés de um vapor ou num quarto, de onde irei bombardeá-lo continuamente de cartas. Mesmo que a viagem não me dê absolutamente nada, será que, apesar de tudo, não haverá uns dois ou três dias dos quais eu vá me lembrar o resto da vida com entusiasmo ou amargura?

 

UM BOM PAR DE SAPATOS E UM CADERNO DE ANOTAÇÕES

Autor: Anton Tchekhov
Editora: Martins Editora
Preço: R$ 28,07 (160 págs.)

 

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