Crítica Literária

O livro por vir

1 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

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– Meu sonho já durou setenta anos. Afinal, ao recordar, não existe ninguém que não se encontre consigo mesmo. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Você não gostaria de saber algo do meu passado, que é o futuro que o espera?
Borges, “O outro”.

Um pensamento sem imagem que não se deixa representar, a revolver o tempo em uma forma circular, ao qual pertence a reminiscência ininterrupta, que, como um bom lance de dados, afirma todo o acaso de uma só vez – a experiência da literatura resguarda a necessidade de que se possa, em cada obra, “reservar o indeciso na decisão, preservar o ilimitado junto ao limite, e nada dizer que não deixe intacto todo o espaço da fala sobre a possibilidade de dizer tudo” (p. 149).

Maurice Blanchot, em O livro por vir, retira do âmago da experiência literária a circularidade do tempo na qual a literatura de maneira geral se desenvolve como problema, pois cada obra é uma experimentação, cada vez renovada, do tempo da transparência da linguagem, através da qual a imaginação transforma a realidade em ideia.

O livro de Blanchot responde a uma tese proposta por Roland Barthes em O grau zero da escrita [São Paulo: Martins Fontes]: inserida na discussão sobre o futuro das letras, a questão é a investigação sobre a própria possibilidade da literatura. Barthes separa a linguagem, o estilo e a escrita; segundo Blanchot, a escrita como compreendida desta maneira seria o ponto de ausência em que a literatura ao mesmo tempo começa e desaparece, o vazio que se torna fala, a fala literária que é silêncio de maneira mágica, na qual é possível “manter a busca em aberto nesse lugar onde encontrar é mostrar rastros”. Após percorrer um caminho analítico que perpassa casos de escritores à guisa de argumentos de ideais centrais ao desenvolvimento do problema literário – como o infinito literário do homem desértico e labiríntico, errante, entre a vocação e o malogro –, Blanchot chega ao poema Um lance de dados e ao “Livro” de Mallarmé, um livro por vir, sem autor e sem leitor, materialização da busca que é a tônica do problema desenvolvido ao longo de todo o texto: desde o encontro com o canto das Sereias, a busca pelo absoluto desenvolvida na narrativa, que é distância a ser percorrida no tempo circularizado.

E porque as Sereias, que eram apenas animais, lindas em razão do reflexo da beleza feminina, podiam cantar como cantam os homens, tornavam o canto tão insólito que faziam nascer, naquele que os ouvia, a suspeita da inumanidade de todo canto humano. Teria sido então por desespero que morreram os homens apaixonados por seu próprio canto? Por um desespero muito próximo do deslumbramento” (p. 4).

O canto das Sereias como aparece na Odisseia é analogia com a literatura e desdobra-se, enquanto mito, na própria compreensão da ambiguidade do tempo. Blanchot adverte:

Isto não é uma alegoria. Há uma luta muito obscura travada entre toda narrativa e o encontro com as Sereias, aquele canto enigmático que é poderoso graças a seu defeito. […] O que chamamos de romance nasceu dessa luta. Com o romance, o que está em primeiro plano é a navegação prévia, a que leva Ulisses até o ponto de encontro. Essa navegação é uma história totalmente humana. Ela interessa ao tempo dos homens, está ligada à paixão dos homens, acontece de fato e é suficientemente rica e variada para absorver todas a forças e toda a tenção dos narradores. Quando a narrativa se torna romance, longe de parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração, que ora abarca a imensidão navegante, ora se limita a um quadradinho de espaço no tombadilho, ora desce às profundezas do navio onde nunca se soube o que é a esperança do mar” (p. 6).

Isto não é uma alegoria, pois é a própria lei secreta da narrativa, o seu movimento de busca que resulta senão em si mesma, movimento que não tem destino ou objetivo, a não ser deparar-se com o desespero retórico da tentativa de clarificar aquilo que não pode ser iluminado, realizar-se enquanto ambiguidade do tempo, que não torna o acontecimento presente, mas presentifica a abertura do movimento infinito da experiência da literatura. “O fim da obra é seu começo”.

Proust atualiza a ambiguidade do tempo desenvolvido enquanto movimento, enquanto distância a ser percorrida. A análise de sua obra é um dos pontos fundamentais no desenvolvimento de O livro por vir. Segundo Blanchot, há,

em sua obra, uma intrincação, talvez enganosa, mas maravilhosa, de todas as formas do tempo. […] Proust mistura, numa mescla ora intencional, ora onírica, todas as possibilidades, todas as contradições, todas as maneiras pelas quais o tempo se torna tempo” (p. 15).

Em sua obra há o desenvolvimento do tempo puro, de uma simultaneidade e entre presente e passado, entre criação imaginária e realidade vivida passada, que transforma o tempo em espaço vazio. “O próprio tempo da narrativa, o tempo que não está fora do tempo, mas que se experimenta como um exterior, sob a forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe seus recursos” (p. 17). A obra, assim, torna-se lugar do fenômeno da reminiscência, “comunicação que não é a do presente, nem do passado, mas o surgimento da imaginação cujo campo se estende entre um e outro” (p. 25). O espaço do imaginário romanesco, assim, é compreendida como “uma esfera, engendrada, graças a um movimento infinitamente retardado, por instantes essenciais sempre por vir e cuja essência não é serem pontuais” (p. 31).

Proust guarda o segredo da escrita e a espantosa paciência, consegue realizar o que nas suas próprias palavras chamou de “transmutação da lembrança numa realidade captada diretamente”. Na sua obra, encontra-se o surgimento da imaginação cujo campo se estende entre passado e futuro: sua narrativa escapa ao tempo cotidiano e abarca a imensidão navegante do tempo que movimento desenvolvido “pouco a pouco, embora imediatamente”: presente e memória simultâneos.

“É verdade que Ulisses navegava realmente e, um dia, em certa data, encontrou o canto enigmático. Ele pode portanto dizer: agora, isto acontece agora. Mas o que acontece agora? A presença de um canto que ainda estava por vir. E o que ele tocou no presente? Não o acontecimento do encontro tornado presente, mas a abertura do movimento infinito que é o próprio encontro, o qual está sempre afastado do lugar e do momento em que ele se afirma, pois ele é exatamente esse afastamento, essa distância imaginária em que a ausência se realiza e ao termo da qual o acontecimento apenas começa a ocorrer, ponto em que se realiza a verdade própria do encontro, do qual, em todo caso, gostaria de nascer a palavra que o pronuncia” (pp. 12, 13).

No capítulo dedicado a Proust, há uma breve porém interessante observação acerca de brancos deixados entre os capítulos de A educação sentimental de Flaubert. Alargando essa observação de maneira metafórica para o livro de Blanchot, vemos que os brancos traduzem a densidade móvel do tempo esférico. Os brancos deixados, os silêncios, os malogros, em grande parte nortearão a escolha e a análise dos autores que, a partir de então, servirão como argumentos ao texto de maneira geral, capítulo a capítulo. Brancos, errâncias, silêncios, em cada escritor de uma maneira diferente, “poderiam lembrar-nos que, por detrás do que acontece, acontece outra coisa”.

Por trás da análise estética de Blanchot há uma ontologia da experiência da literatura, desenvolvida através da multiplicidade de possibilidades que encarna em cada um dos escritores analisados; ontologia cuja essência repousa sobre a condição do tempo circular. Resultado de infinitas relações de sua origem com suas reminiscências, a experiência literária amalgama presente, passado e futuro, num porvir que é eterno retorno.

Mallarmé é a resposta à busca literária do grau zero da escrita. É analisando sua obra que Blanchot conclui que “a obra é a espera da obra” e que “somente nessa espera se concentra a atenção impessoal que tem por vias e por lugar o espaço próprio da linguagem”. Mallarmé resguarda o movimento constante de fim e começo, distância narrativa entrevista pelo canto das Sereias, tempo circular e movediço desdobrado por Proust. “Um lance de dados é o livro por vir” (p. 352).

O poema, realização do “livro por vir”, realiza o sentido do devir, vence o acaso ao mesmo tempo que o ressoa. “O acaso será vencido pelo livro se a linguagem, indo até o extremo de seu poder, atacando a substância concreta das realidades particulares, não deixar mais aparente senão ‘o conjunto das relações existentes em tudo’” (p. 330). O acaso silencia as regras, põe em dúvida a ideia de plano e reverte o tempo, abrindo uma súbita lacuna no presente: parodia a origem e a finalidade, esquarteja a noção linear de tempo rumo a um fim. Pela abertura a um tempo vazio, que destrói o passado e o presente como agentes do futuro: o tempo torna-se circular.

O acaso ecoa as representações de tempo. Mas um poema que vence o acaso retumba em si a possibilidade do silêncio que resguarda toda a fala. Ausência de origem, o acaso é determinação do múltiplo e a ele semelhante – porém é com seu lançamento ao infinito, seu encontro com o absoluto, que traz sua soberania enquanto eterno retorno do tempo sobre si mesmo, condensado enquanto totalidade de possibilidades e a própria possibilidade do pensamento: “Todo pensamento emite um lance de dados”. Como diz Blanchot,

“é a realidade do espaço próprio da linguagem, do qual somente o poema – livro futuro – é capaz de afirmar a diversidade dos movimentos e dos tempos, que o constituem como sentido ao mesmo tempo que o reserva como fonte de sentido” (p. 355).

Assim, a obra é descentrada em relação a si mesma, “porque se trata de uma obra ao mesmo tempo toda presente e toda em movimento, mas também porque é nela que se elabora e dela que depende o próprio devir que a desdobra”.  O poema nos coloca diante do paradoxo da ambiguidade do tempo: presentifica a abertura do movimento infinito a percorrer a distância “do tempo de exceção, na altitude de um talvez”. É um movimento em que, “à medida que a obra tenta realizar-se, a traz de volta ao ponto em que enfrenta a impossibilidade. Ali, a fala não fala mais, ela é; nela nada começa, nada se diz, mas ela continua sendo e sempre recomeça” (p. 317). Por esse movimento o poema vence o acaso – “Todo pensamento emite um lance de dados”.

Deleuze trava um diálogo com o problema exposto por Blanchot na análise do poema; em Diferença e repetição, ele diz que “o bom lance de dados afirma todo o acaso de uma vez; aí está a essência do que se chama questão”. Segundo ele, há vários lances de dados, “cada um toma o acaso de uma vez e, em vez de o diferente ter diferentes combinações, como resultado do Mesmo, ele tem o mesmo ou a repetição como resultado do Diferente” (Diferença e Repetição, São Paulo: Graal, p. 281). O lance de dados concentra toda a potencialidade do pensamento. Afirma todo o acaso de uma vez:

Abolir o acaso é fragmentá-lo segundo regras de probabilidade em vários lances […]. O lance de dados, ao contrário, afirma o acaso de uma vez, e cada lance de dados afirma todo o acaso de uma vez. A repetição dos lances não é mais submetida à persistência de uma mesma hipótese nem à identidade de uma regra constante. […] Que significa, pois, afirmar todo o acaso, a cada vez, de uma vez? Essa afirmação se mede pela ressonância dos disparates que emanam de um lance e que, sob essa condição, formam um problema. Todo o acaso, então, está em cada lance, embora este seja parcial, e aí está de uma só vez” (idem, p. 280).

Trata-se da afirmação da obra em seu devir, movimento que se torna seu próprio sentido e que possibilita que o espaço interior do pensamento e da linguagem possa assim ser representado de maneira sensível. A própria linguagem é espaço em que as relações se projetam e perspectivam-se, dobram-se e redobram-se, da distância extrema de uma talvez excepcional. O devir, de acordo com Blanchot, constantemente fim e começo, na obra

“é talvez seu sentido, sentido que seria o próprio devir do círculo. O fim da obra é sua origem, seu novo e seu antigo começo: é sua possibilidade aberta uma vez mais, para que os dados novamente lançados sejam o próprio lance da fala mestra que, impedindo a Obra de ser – Um lance de dados jamais –, deixa voltar o último naufrágio em que, na profundidade do lugar, tudo sempre já desapareceu: o acaso, a obra, o pensamento, EXCETO na altitude TALVEZ…” (p. 359).

O poeta mexicano Octavio Paz também dialogou, no ensaio “Signos em rotação”, com o problema como colocado por Blanchot. Segundo ele:

“Não é a subjetividade e sim, como diria Ortega y Gasset, a interseção dos distintos pontos de vista que nos dá a possibilidade de uma interpretação. Nenhuma delas é definitiva, nem sequer a última (Toute penseé émet un coup de dés), frase que absorve o acaso ao disparar seu talvez na direção do infinito; e todas, de sua perspectiva particular, são definitivas: conta total em perpétua formação. […] este poema nega a possibilidade de dizer algo absoluto, consagração da impotência da palavra, é a o mesmo tempo o arquétipo do poema futuro e a afirmação plena da soberania da palavra. Não diz nada e é a linguagem em sua totalidade. Autor e leitor de si mesmo, negação do ato de escrever w escritura que renasce continuamente de sua própria anulação” (“Signos em rotação”, São Paulo: Perspectiva, p. 113).

O poema não nega o acaso, mas o neutraliza, reduz o acaso ao infinito, “cada uma de suas momentâneas combinações diz, sem jamais dizê-lo inteiramente, o número absoluto” (idem). Trata-se, portanto, de um “poema crítico”, classificação que Paz explica:

“Se não me engano, a união dessas duas palavras contraditórias quer dizer: aquele poema que contém sua própria negação e que faz dessa negação o ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação. A poesia, concebida por Mallarmé como a única possibilidade de identificação da linguagem com o absoluto, de ser o absoluto, nega-se a si mesma cada vez que se realiza em um poema (nenhum ato, inclusive um ato puro e hipotético: sem autor, tempo ou lugar, abolirá o acaso) – salvo se o poema é simultaneamente crítica dessa tentativa. A negação da negação anula o absurdo e dissolve o acaso” (idem, p. 111).

Entre todos os autores analisados por Blanchot – Rousseau, Beckett, Kafka, James, Musil, Broch, Hesse são somente alguns exemplos –, a breve análise de Borges é significativa, pois coloca a questão da proximidade da literatura com os paradoxos do infinito. E o infinito concentra o sentido do devir. Assim, na movimentação do livro, a errância labiríntica, responsável pelo engendramento do infinito no finito e cuja figura exemplar é Borges e sua refinada literatura, prepara o argumento da problematização do tempo ausente e do devir da obra. Segundo Blanchot, a “errância, o fato de estarmos a caminho sem poder jamais nos deter, transformam o finito em infinito” (p. 137). É a capacidade da literatura de perder-se dentro de seu próprio quarto, de criar labirintos. É a capacidade de engendrar questões, de problematizar as percepções, de circularizar o tempo no descobrimento de um esplendor da constante mistura das origens e das reminiscências. Trata-se da transformação do mundo em livro e do livro como possibilidade de mundo. A literatura como duplo do mundo, esférica como o tempo. “A verdade da literatura está no erro do infinito”, está no indeterminado colocado no espaço determinado pelo homem desértico ou labiríntico – “o deserto ainda não é nem o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem engendramento. Nele, pode-se apenas errar” (p. 115). Analogamente também na literatura como um todo, há um espaço infinito aberto no finito, quando ela é reconhecida como “unidade inesgotável de um único livro e a repetição fatigada de todos os livros”. Assim, o lance de dados extravasa-se enquanto imagem para a experiência literária de maneira geral.

[…] se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não somente em uma? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não esteja suspeitas ao acaso? […] Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam em outras. […] a Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos”.  (Borges, “A loteria da Babilônia”, S.Paulo: Cia das Letras, pp. 58 – 60).

A questão por trás do acaso e de seu vencimento é o niilismo do tempo e a evidência de um silêncio particular que há por trás de cada obra, uma potência silenciosa. Blanchot mostra o inacabamento como exigência de toda comunicação. A eterna volta do passado através das reminiscências e consequente compreensão circular o tempo enriquece de significados os espaços em branco e desperta o silêncio sensível, a fala neutra, “aquilo que sempre já foi dito, que não pode cessar de dizer-se e não pode ser ouvido, tormento de que as páginas de Samuel Beckett nos dão o pressentimento”. (p. 307). É no interior da obra que se encontra o fora absoluto, mas sua palavra não diz o mundo, senão a falta que há no mundo. O vazio que se torna fala que é o espaço da literatura.

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