Estranha matéria, que sobe do fundo
à flor da memória camada de espuma
diário de bordo vem quebrar aqui
(…)
– trecho de “Talvez hoje”
O verso, nas línguas, dizem tantos filósofos, antecede a prosa. Por ser mais imediato, por ser mais sentimental. A linguagem poética permanece existindo como verso e então não deixa de se estender por uma prosa, porém, invisível: suas palavras, suas imagens, ecoam-se entre si e interiorizam discursos inteiros sem nem precisar proferi-los. As imagens poéticas encerram um círculo hermenêutico de compreensão da parte pelo todo e do todo pela parte. O último livro de Eucanaã Ferraz particulariza em si essa coesão e Sentimental é um desdobramento semântico da própria palavra que lhe dá título, vai de um sarcasmo melancólico, sensorial, a uma leveza quase etérea, corredeira de figuras mágicas.
Octavio Paz diz que a poesia é, no limite, mágica, no sentido de
mágico semelhante ao que entende a antropologia: uma chave simbólica[i].
Ao longo de Sentimental, o teor dos poemas beira o narrativo, a corredeira das sinestesias e das significações, porém, nasce de imagens imediatas que juntas desnovelam a imaginação, imagens que equilibram-se no tempo; no tempo que passa, morte em tantos sentidos, mas também no tempo do sonho e o do passado que, como memória, revive-se a cada momento do presente – o sentimental é latente. O tom é grave, mas leve, quando ácido, então descrente e também nostálgico. Os extremos coexistem, na plenitude da complexidade de sua coexistência. Surdo e com “os dois olhos bem abertos”, na “mímica sem sentido” que “parece ser o sentido de tudo” (versos do poema “Oboé”) é como se o mundo estivesse submerso, mudo, de modo que somente às imagens coubesse significar – com todas as polissemias e flutuações de significados a que as levam os poemas de Eucanaã.
O ritmo geral dos poemas é sincopado, o ritmo quebrado do deslocamento tônico dos versos. Efeito resultado por diferentes formatos e divisões dos versos, que ora prolongam, ora cortam as sonoridades, mas também causado pelas experiências ricas de pontuação: tanto nos encadeamentos sem vírgulas, que amalgamam signos em um único significado, enriquecendo-o, ou que, ambivalentes, geram duplos sentidos – como os substantivos que são ao mesmo tempo possíveis verbos poéticos, por exemplo, “Janeiro bicicletas” (de um verso de “Papel tesoura e cola”) – quanto nos versos com seguidas pontuações expressivas, como no angustiado poema “Dizer adeus, amigo”: “Devia ter sido, naquele tempo, antes do destino, / que, talvez um movimento, meu, de alguém, // (…) qual teria sido?, e tudo fosse diferente, outro caminho. / Mas nada se fez. Tantas vezes nada se faz”. A síncopa musical dá ao ritmo um caráter um pouco folclórico, um pouco rústico, porque a tônica do compasso é deslocada e o ritmo torna-se fugidio, o contratempo, esperado a ser o tempo fraco, passa para um primeiro plano. Um ritmo dissonante. Na poesia de Eucanaã, o ritmo sincopado do deslocamento sonoro ilumina algumas palavras e transmuta suas imagens, deixa a tônica semântica muitas vezes suspensa – por exemplo, “retesa enquanto repuxos de sangue aveludam / avenidas que pareciam inquebrantáveis mas / agora castelos em degelo sob pés em desafio // cada contorcionismo é mais que desespero / e que beleza – é fora do tempo é sem narrativa / é ainda graça leveza cada gesto que // surge” (do poema “Dance”) ou “A flor aberta do gramofone por onde amídala / a música passava lisa;” (do poema “Victor talking machine”). O próprio sentimental, enquanto ambivalência de sensação e de sentimento, desenvolve-se nessa musicalidade, em que a base conceitual e a tonalidade coexistem nos movimentos simbólicos dos poemas.
Esse ritmo sincopado, que aparece algumas vezes como quebra violenta, outras, sereno deslocamento – como na simplicidade de “dezembros de dezembro”, do poema “O círculo negro” –, é como o ritmo da água, que como rio ou como mar é imagem recorrente no livro. O mar metaforiza por um lado o morrer poético, condensa a profunda e irreversível sensação do tempo que passa. “E como nunca antes: aéreo. Mais / que isso, marítimo. Repara: // tem ares de quem navega a todo / pano em seu navio-fantasma” (do poema “Só faço verso bem-feito”); mas o mar também se revolve infinitamente e metaforiza por outro lado um constante murmurar do passado relembrado pelo presente – um tempo subjetivo, presente solitário em que vivem, em universos próprios mas espelhados, o viúvo, o astronauta, o homem a bordo de seu silêncio e o insone urbano, separados pela mesma margem arenosa às avessas. Entre “nuvens algas”, atrás de uma “epopeia mística de mais de mil / de milhares de versos”, a poesia do livro lembra a definição de Octavio Paz, segundo a qual “o poema é tempo arquetípico”, ou seja, “um perpétuo presente que é, também, o mais remoto passado e o futuro mais imediato. (…) A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto”[ii]. Assim, “De nada adiantaria dizer ao rio que // chegando à praia ele não retornará” (versos do poema “Tão bonita”), na imensidão navegante, o tempo é fugidio, repleto de silêncios e de fábulas.
A poesia de Eucanaã Ferraz, em Sentimental, parece um trapezista. Nela, o sentimental equilibra-se sobre o intelectual e cria um mundo próprio, uma atmosfera quimérica. Os poemas escapam-se uns nos outros, formando um todo que abarca rumos de destinos distantes, além-mar. De um ponto a outro, desdobram o caráter de tensão existencial do “sentimental”, em suas dimensões históricas e humanas.
[i] Nas palavras de Paz, a poesia “é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso é limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas de para transformar o homem e fazer ‘deste’ ou ‘daquele’ esse ‘outro’ que é ele mesmo”; (…) “O valor das palavras reside no sentido que ocultam” (PAZ, Octavio. “A imagem” in: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2012, 4ª ed., pp. 43 – 50).
[ii] Idem. “A consagração do instante” in: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2012, 4ª ed., p. 54.
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 23,80 (96 págs.)
* Resenha originalmente publicada na Revista Cisma.