Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada [i].
Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer tomam a Odisseia como paradigma das buscas e errâncias humanas, uma vez que, grosso modo, a figura de Ulisses é compreendida como prototípica do movimento mito-esclarecimento-mito, cuja problematização articula a crítica desenvolvida pelos dois filósofos ao longo do livro: eles descobrem, na história de Ulisses e de seu retorno a Ítaca, a primeira alegoria da constituição do sujeito. Assim, a Odisseia é interpretada, por um lado, como história da razão desencantada dos artifícios míticos; por outro lado, mostra como a emancipação do mito que leva à idade da razão é resultado de uma gênese violenta.
Famosa passagem que o ilustra é a retomada do episódio das Sereias, a travessia pela região de seu canto e encanto, identificado pela tradição posterior como terreno da palavra poética.
A força do canto, assim como a força da arte, é arrebatadora. Preso ao mastro, emblema do preço da autonomia, o que Ulisses escuta, segundo Adorno e Horkheimer, “não tem conseqüências para ele, a única coisa que consegue fazer é acenar com a cabeça para que o desatem; mas é tarde demais, os companheiros – que nada escutam – só sabem do perigo da canção, não de sua beleza – e o deixam no mastro para salvar a ele e a si mesmos. Eles reproduzem a vida do opressor juntamente com a própria vida, e aquele não consegue mais escapar a seu papel social. Os laços com que irrevogavelmente se atou à práxis mantêm ao mesmo tempo as Sereias afastadas da práxis: sua sedução transforma-se, neutralizada num mero objeto da contemplação, em arte. Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imóvel como os futuros freqüentadores de concertos, e seu brado de libertação cheio de entusiasmo já ecoa como um aplauso. Assim a fruição artística e o trabalho manual já se separam na despedida do mundo pré-histórico. A epopéia já contém a teoria correta. O patrimônio cultural está em exata correlação com o trabalho comandado, e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação social da natureza”.
Freud, no texto “Nossa atitude perante a morte”, que integra suas “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, de 1915, analisa a primordial relação humana com a morte, anterior e alheia aos enigmas intelectuais que orbitam a questão.
Segundo ele, diante do cadáver do inimigo vencido, o homem primordial teria apenas satisfeito-se com seu triunfo, sem colocar em questão o mistério acerca da morte. Este, teria sido despertado diante do conflito emocional gerado pela perda de entes pelos quais nutrem-se sentimentos. A dor pela morte acompanha a contestação sobre seu significado.
Para Freud, essa transformação interpretativa resultou na elaboração da dissociação entre corpo e alma, que traça um processo de início no lugar da desintegração que a morte instaura: a ideia de sobrevida, após a morte.
Seu argumento sobre a relação com a morte e com crença na vida posterior a ela é pontuado pela citação do canto XI da Odisseia, trecho que contém a resposta, que dá a Ulisses, a alma de Aquiles:
“[…] não foi,
nem será, nenhum homem mais bem-aventurado que tu, ó Aquiles!
Pois antes, quando eras vivo, nós Argivos te dávamos honras
iguais às dos deuses; e agora reinas poderosamente sobre os mortos,
tendo vindo para aqui: não te lamentes por teres morrido, ó Aquiles.’
Assim falei; e ele tornando a palavra respondeu-me deste modo:
‘Não tentes reconciliar-me com a morte, ó glorioso Ulisses.
Eu preferiria estar na terra, como servo de outro,
até de homem sem terra e sem grande sustento,
do que reinar aqui sobre todos os mortos. […]”
Maurice Blanchot, em O livro por vir, perpassa meandros da história da literatura e, partindo da Odisseia, reconhece que a busca pelo absoluto, desenvolvida na narrativa, a revela como distância a ser percorrida num tempo circularizado.
No primeiro capítulo, “O encontro com o imaginário”, Blanchot interpreta o canto das Sereias, conforme aparece na Odisseia, de modo a traçar uma analogia com a literatura e a desdobrar-se, enquanto mito, na própria compreensão da ambiguidade do tempo. Porém, adverte que sua interpretação “não é uma alegoria. Há uma luta muito obscura travada entre toda narrativa e o encontro com as Sereias, aquele canto enigmático que é poderoso graças a seu defeito. […] O que chamamos de romance nasceu dessa luta. Com o romance, o que está em primeiro plano é a navegação prévia, a que leva Ulisses até o ponto de encontro. Essa navegação é uma história totalmente humana. Ela interessa ao tempo dos homens, está ligada à paixão dos homens, acontece de fato e é suficientemente rica e variada para absorver todas a forças e toda a tenção dos narradores. Quando a narrativa se torna romance, longe de parecer mais pobre, torna-se a riqueza e a amplitude de uma exploração, que ora abarca a imensidão navegante, ora se limita a um quadradinho de espaço no tombadilho, ora desce às profundezas do navio onde nunca se soube o que é a esperança do mar”. Não é uma alegoria, pois é a própria lei secreta da narrativa, o seu movimento de busca que resulta senão em si mesma: movimento que não tem destino ou objetivo, a não ser deparar-se com o desespero retórico da tentativa de clarificar aquilo que não pode ser iluminado, realizar-se enquanto ambiguidade do tempo, que não torna o acontecimento presente, mas presentifica a abertura do movimento infinito da experiência da literatura. “O fim da obra é seu começo”.
Auerbach inicia Mimesis com uma bela análise do episódio da cicatriz de Ulisses. O crítico lê a cena em que Ulisses é reconhecido por sua ama, Euricléia, quando de seu retorno, sob disfarce de mendigo, à Ítaca, comparando-a a outro texto antigo, o sacrifício de Isaac conforme descrito no Velho Testamento. O contraponto explicita a qualidade temporal presentificada, uniformemente iluminada, do texto homérico. Auerbach demonstra que a tensão não é elemento relevante ao longo do processo literário de Homero, que narra sempre um primeiro plano, presente, criando um “efeito retardador”, evitando, pois a impressão de perspectiva temporal. Ulisses não relembra como conseguiu a cicatriz em sua juventude, a própria ação vem à luz, dando início a um novo presente.
Segundo Auerbach, o texto homérico e o texto bíblico contrapõem as diferentes maneiras de compreensão da realidade, dos povos grego e judaico; ambos representam constituições sociais e tradições literárias díspares. Na Odisseia, os fenômenos são “acabados, uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão”, ao passo que na Bíblia, “só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsciente; tempo e espaço são indefinidos […]; os pensamentos e os sentimentos permanecem não expressos: só são sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo, dirigido com máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por isso mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado de segundos planos”. Eis porque a Odisséia exige uma análise e, a Bíblia, uma interpretação.
A viagem, o retorno, as artimanhas em cada parada; os deuses, semi-deuses, monstros e humanos entrelaçados: auxiliando, importunando, apaixonando-se. Em cada canto da Odisseia há possibilidades ricas e infinitas para divagações, analogias, metáforas, pontos de estímulo e de repouso, intelectual ou lúdico, literário ou filosófico. Pelo menos. Palavra que aprofundou-se na condição de título e, mesmo para o senso comum, substantivada, é chave, inclusive, para todo um repertório imaginário coletivo.
[i] [tradução de Frederico Lourenço, co-edição Companhia das Letras e Penguin]