Memórias de Adriano, da escritora belga Marguerite Youcenar (1903 — 1987), é uma autobiografia imaginária do imperador romano. Adriano de fato escreveu uma autobiografia que não sobreviveu até nosso conhecimento. Publicada originalmente em 1951, foi a obra de Youcenar que a tornou internacionalmente conhecida.
O romance é escrito em primeira pessoa, em forma de uma carta testamento, escrita por Adriano e endereçada a seu neto adotivo, o futuro imperador Marco Aurélio. Na carta, o imperador produz confissões, à maneira de uma anamnese, e assim faz um balanço de seu próprio tempo e existência, de modo que amalgamam-se suas memórias pessoais às memórias históricas. Através da voz de Adriano, falam inúmeras outras, e o retrato memorialístico de sua personalidade, humana por excelência, é também o retrato de uma época, em rigorosa reconstituição histórica. Sua narrativa associa filosoficamente dimensões sociológica e psicológica.
Segundo resenha de Bruno Magalhães, o livro “é um grande projeto de pesquisa de Marguerite Yourcenar. O que ela buscava? ‘Tornar uma vida conhecida, acabada, fixada (tanto quanto possa sê-lo) pela história, de modo a abranger com um único olhar a curva inteira; mais ainda, escolher o momento em que o homem que viveu essa existência a avalia, a examina, e por um instante chega a ser capaz de julgá-la. Fazer de modo que ele se encontre perante a sua própria vida na mesma posição que nós’. Mas não apenas isso. Ao longo do processo, as circunstâncias acabaram obrigando-a ‘a tentar preencher não somente a distância que me separava de Adriano, mas sobretudo aquela que me separava de mim mesma’. Essa aproximação que a autora buscou ter com Adriano deu-lhe a certeza de que ‘se pode reduzir à vontade a distância dos séculos’”.
No Caderno de notas que acompanha o texto das Memórias, Yourcenar diz: “Bem depressa compreendi que escrevia a vida de um grande homem. Desse momento em diante, impôs-se maior respeito pela verdade, maior atenção e, de minha parte, maior silêncio”.
Falando sobre o escritor pernambucano Fernando Monteiro, em artigo publicado pelo Suplemento Pernambuco, Priscilla Campos define-o como um personagem-fantasma de Marguerite Youcenar, e seu comentário nos dá uma interessante impressão sobre o projeto do romance da autora francesa: “Em notas sobre Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar comenta que boa parte de sua vida literária foi dedicada a definir e depois descrever uma espécie de ‘homem sozinho e, no entanto, ligado a tudo’. Yourcenar fala de certa figura dualística que se finca no vão estreito entre os fatos históricos e o isolamento; alguém passível de enxergar o mundo, ao mesmo tempo, como o bárbaro que destrói e o civilizado que organiza; um sujeito consciente da rigidez da solidão, da impossibilidade dessa condição sumir, evaporar-se. Estar só é maciço como um fragmento de ruína – o homem sozinho compreende o exílio, mas não se entrega a ele, pois sabe que a sobrevivência é sempre algo criado a partir da presença firme de outros tantos passados”.
De acordo com Nilson Adauto Guimarães da Silva, professor do Departamento de Letras da UFV, no artigo “Memórias de Adriano, Confissão e História”: “O romance, de fato, problematiza a questão das relações entre o discurso literário e a narrativa memorialística e histórica. Diferentemente do historiador que se vale apenas de documentos, a escritora se serve da intuição para reconstruir do interior o destino de Adriano; e este, para contar sua vida, não busca narrar os acontecimentos essenciais, explicá-los, nem organizá-los. A narrativa de vida não faz da reconstituição do passado um fim, mas antes um meio à disposição de um homem que procura se conhecer antes de morrer. Este desejo de conhecimento de si, inspirado pelo célebre preceito inscrito no templo de Delfos – conhece-te a ti mesmo – revela que Adriano coloca, neste momento crucial de sua existência, a busca da sabedoria antes daquela do reconhecimento histórico. No Oriente pacificado, um jovem da Bitínia, de enigmática beleza, apareceu a Adriano como um descendente dos pastores Árcades. Como uma recompensa interior da política exterior, a Idade de Ouro do império e da pessoa íntima de Adriano coincidem”. Assim, analisa Silva, “apesar do imenso trabalho de documentação, se Memórias de Adriano é um romance histórico, a história é na obra um instrumento posto à disposição de uma introspecção analítica e não o inverso. A História não é convocada por si mesma, é uma fonte para o conhecimento de si, a ficção da autobiografia supera a ficção histórica, e neste sentido trata-se de um romance histórico, de uma narrativa que se situa na encruzilhada da ficção e da História”. O professor ainda pontua que, para Yourcenar, “Adriano foi um gênio político: inovador sem demagogia, legislador com maleabilidade, conservador e visionário. E um grande helenista que traduzia os poetas gregos, o ponto de contato em todo o império romano com o pensamento e a arte gregos. Adriano é visto como o exemplo perfeito do imperador romano, mais humanista que Augusto e mais político que Marco Aurélio, o homem completo que anuncia o príncipe do Renascimento: ao mesmo tempo jurista e artista, estrategista e político, sábio e cínico, erudito e voluptuoso. A atuação de Adriano é vista no plano de uma filelenização do império romano, como absorção por Roma e suas províncias de um fermento intelectual que só Atenas detinha. Adriano afirma em sua carta: ‘Foi em latim que administrei o império; meu epitáfio será talhado em latim sobre a parede do meu mausoléu, às margens do Tibre, mas em grego terei pensado e vivido’. O grande mérito de Yourcenar, nestas Memórias, está no próprio procedimento de reconstituição imaginária: a restituição da voz própria de Adriano”.
Sobre isso, a autora diz nos Cadernos: “O retrato de uma voz. Se optei por escrever estas Memórias de Adriano na primeira pessoa, foi no sentido de eliminar o máximo possível qualquer intermediário, inclusive eu. Adriano podia falar de sua vida mais firmemente e mais sutilmente do que eu”.
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Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que foste hóspede, vais descer àqueles lugares pálidos, duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora. Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares, os objetos que certamente nunca mais veremos… Esforcemo-nos por entrar na morte com os olhos abertos…
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Autor: Marguerite Yourcenar
Editora: Nova Fronteira
Preço: R$ 27,92 (336 págs.)