Artes Plásticas

Mnemosyne

1 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

tábua do “Atlas Mnemosyne”

 

Aby Warburg e a compreensão do diálogo entre palavra e imagem

O legado intelectual de Aby Warburg permanece um desafio constante para a história da arte e da imagem. Se o século XX foi o século da imagem, então Warburg é um de seus pesquisadores extraordinários, pois ninguém se igualou a ele na dedicação intensa e escrupulosa não só às obras de arte, mas também às imagens do cotidiano.

Selecionamos aqui, a partir do comentário sobre a edição de seus textos sob o título “A renovação da Antiguidade pagã”, alguns livros de autores que dão prosseguimento a suas reflexões.

 

Aby Warburg, “A renovação da Antiguidade pagã”

A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu, reúne todos os textos que Warburg publicou em vida, com respectivas notas e adendos, além de dois estudos sobre ele.

Neles, o historiador da arte mostra a tensão que marca as obras renascentistas europeias, fruto de uma contradição, uma força que mais desestabiliza do que unifica as figuras. A divindade serena, modelo ao belo ideal, transformava-se: “Essas mênades dançantes, conscientemente imitadas, surgidas pela primeira vez nas obras de Donatello e de Fra Filippo, redefinem o estilo antigo, ao exprimirem uma vida mais movimentada, a vida que anima a Judite, o anjo Rafael que acompanha Tobias, ou ainda a Salomé dançante, essas figuras aladas que alçaram voo dos estúdios de Pollaiuolo, Verrocchio, Botticelli ou Ghirlandaio”. Warburg analisa a base da relação dos artistas modernos com o passado, revelando, sob a aparência límpida das obras da Antiguidade clássica, o conflito das duas forças antagônicas, potência extática nascida no seio da concepção contemplativa do mundo – a dualidade do mundo grego, marcado pelo caráter dionisíaco e apolíneo, conforme analisada por Nietzsche. 

A edição brasileira deste livro canônico, da editora Contraponto, com tradução de Markus Hediger, traz, além do prefácio da edição original, de 1932, de autoria de Gertrud Bing, também o prefácio da edição de estudos de 1998, assinado em conjunto por Horst Bredekamp e Michael Diers. Este último é de grande valia para a compreensão do contexto de surgimento do livro em 1932, fazendo uma perspectiva da história da fortuna da obra de Warburg e apontando alguns dos aspectos que determinaram a interrupção do projeto editorial de sua obra.

O editor César Benjamin contextualiza a discussão estética em que se insere Warburg: “Para se entender a reviravolta provocada por Aby Warburg (1866-1929) na história da arte, podemos partir de Johann Winckelmann, a figura dominante dessa disciplina durante muito tempo. Em 1755, Winckelmann propôs um enunciado que definiu a maneira como passamos a compreender a arte clássica grega: ‘O caráter geral que distingue as obras-primas gregas são a nobre simplicidade e a grandeza serena, tanto na postura quanto na expressão. Assim como as profundezas do mar se mantêm calmas em todos os momentos, por mais enfurecida que esteja a superfície, também a expressão, nas figuras dos gregos, mesmo no seio das paixões, exibe uma alma sempre grandiosa e sempre impassível’. Os trabalhos de Warburg alteraram profundamente essa percepção, ao destacarem a representação do movimento. Segundo ele, o que predominou na Antiguidade não foi o corpo imóvel e bem equilibrado, e sim o corpo tomado por um jogo de forças que o ultrapassava, que o fazia aparecer com os membros retorcidos na luta ou dominados pela dor, com os cabelos soltos e a roupa esvoaçando sob o efeito da corrida ou do vento”. Como explica César Benjamin, “ao insistir mais nos fenômenos de transição do que no tratamento dos corpos em repouso, mais naquilo que divide a figura do que naquilo que a unifica, mais no devir do que na forma imóvel, Warburg inverteu os princípios da estética clássica e a hierarquia das artes que dela procede: no lugar do modelo fornecido pela escultura, pôs o da dança, enfatizando a dimensão cênica e temporal das obras”.

Em resenha publicada na revista Topoi, Cássio Fernandes, professor adjunto do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, comenta a importância da tese de Warburg, que, defendida em Estrasburgo, orientada por Hubert Janitschek – estudioso do Renascimento, organizador da edição do De pictura de Leon Battista Alberti – seria editada em 1893 e “trataria das pinturas mitológicas de Sandro Botticelli, na perspectiva da leitura, por parte do humanismo florentino do ambiente de Lorenzo de’ Medici, da tradição homérica pela via da transmutação latina realizada por Ovídio. Era uma compreensão do diálogo entre palavra e imagem no seio do humanismo florentino dos anos 1480, somada a uma perspectiva histórico-artística que perseguia a relação entre artista, comitente e conselheiro erudito. Warburg defendia, na tese, que as pinturas de Botticelli, O nascimento de Vênus e a Primavera, surgiram da encomenda de Lorenzo de’ Medici e sob a base iconográfica formulada pelo literato e professor de Ovídio na Academia Platônica de Florença, Angelo Poliziano. Poliziano, então, seria o mediador da relação entre Botticelli e Ovídio nas pinturas, que teriam sido executadas justamente para ornar o salão de debates da referida academia”.

A tese de Warburg é o primeiro capítulo de A renovação da Antiguidade pagã. Como aponta Cássio Fernandes, nela, “Aby Warburg apresentava já o interesse pelo processo constitutivo das obras de arte e, ao mesmo tempo, sua disposição de seguir o caminho das transmissões do legado antigo no limiar da era moderna. E tudo isso é realizado num estudo de caso, analisando dois quadros para compreender, de modo individualizado, um problema histórico que certamente não se apresentava isoladamente, mas, ao contrário, indicava um edifício maior”. Warburg, próximo da perspectiva da história social da arte, pensando sobre o termo cultura do renascimento, aproximou-se do estudioso Jacob Burckhardt, a quem enviou a tese sobre Botticelli e, como conta Cássio Fernandes, “recebeu de volta uma carta com as seguintes palavras: ‘com o seu escrito o senhor fez cumprir um passo adiante no conhecimento do medium social, poético e humanístico no qual Sandro [Botticelli] vivia e pintava’. Burckhardt concedera a Warburg, de fato, o tema da cultura do Renascimento sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais que o estudioso de Hamburgo aprofundará ao longo de seus estudos”. Segundo o professor, “no que se refere ao livro em questão, é importante salientar a intensificação dos estudos de Warburg em temas históricos que permitem um aprofundamento das inter-relações e transferências culturais entre o mundo mediterrânico e a Europa nórdica. As demais seções do livro apontam nessa direção, indo, nesse sentido, muito além da perspectiva de Burckhardt”. Este caminho aberto, de inter-relações entre o mundo mediterrâneo e o norte europeu, foi uma das grandes novidades interpretativas de Warburg. Cássio Fernandes contextualiza: “Com a conferência de 1912, Warburg observava o quanto o classicismo grego estava perpassado por elementos orientais, oriundos do Egito, da Pérsia, da Mesopotâmia. Portanto, sua noção de ‘antigo’ tinha uma forte dose do primitivismo a minar o equilíbrio olímpico das divindades gregas. Paralelamente, sua noção de Renascimento ampliava-se ainda mais, ultrapassando em muito as relações entre arte nórdica e primeiro Renascimento na Itália, que até 1907 tinha dado um sentido a seus estudos histórico-artísticos”. Dessa maneira, com a conferência de 1912, Warburg afastou-se das concepções da Antiguidade grega e de Renascimento de Burckhardt. “Com o estudo sobre os afrescos astrológicos do Palácio Schifanoia de Ferrara, o Renascimento de Warburg absorve o vasto universo das interpretações árabes e indianas do mundo grego antigo, compreendendo, assim, um caminho migratório muito amplo a conectar o Renascimento italiano à Antiguidade grega. O texto de 1912 é, então, emblemático na obra de Warburg por indicar um rompimento com todas as fronteiras que os estudiosos da arte e da cultura do Renascimento tinham até então estabelecido, dando um caráter internacionalista a sua interpretação. Nem mesmo as históricas fronteiras entre Ocidente e Oriente permaneceriam de pé depois de seu estudo apresentado em Roma. É curioso que essa abordagem tenha permanecido fora do centro nefrálgico dos estudos histórico-artísticos durante o século XX”.

 

Georges Didi-Huberman, “A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg”

A abordagem de Warburg segue um procedimento, que lhe é muito próprio, de interpretação da obra de arte baseada nos fragmentos, nas singularidades. A crítica de arte brasileira Luciana Marcelino, no artigo “Detalhes em movimento ou a sobrevivência da ninfa”, publicado na revista Gambiarra, da Universidade Federal Fluminense, analisa esse procedimento interpretativo, contextualizado na análise de Sandro Boticcelli: “Tanto na análise do quadro O Nascimento da Vênus como no quadro A Primavera, Warburg fragmenta as composições. Esses fragmentos são correlacionados a outros fragmentos advindos tanto de representações pictóricas sobre diversos suportes como moedas, desenhos à pena, xilogravuras, relevos etc., como também representações literárias e de peças teatrais. Essas análises fragmentadas dizem muito a respeito do procedimento warburguiano de interpretação da obra de arte. Seu procedimento compõe histórias também fragmentadas, nas quais a síntese não é o objetivo final, mas sim as singularidades de cada acontecimento. A análise destes dois quadros enfoca elementos secundários da pintura, nesse caso os elementos acessórios em movimento dos cabelos e das vestimentas. A grande questão levantada por este texto diz respeito àquilo que sobreviveu das formas antigas. […] Warburg afirma que foi no detalhe dos elementos acessórios em movimento que se buscou a sobrevivência da Antiguidade. Trata-se de uma sobrevivência das expressões gestuais antigas, expressões intensificadas pelo movimento que acentuam os gestos”. Um dos grandes comentadores de Warburg, o filósofo francês Didi-Huberman, conforme citado por Luciana Marcelino, no livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, pontua: Warburg compreendeu a necessidade de uma antropologia histórica dos gestos que não fosse prisioneira das fisiognomias naturalistas ou positivistas do século XIX, mas que, ao contrário, fosse capaz de examinar a constituição técnica e simbólica dos gestos corporais numa dada cultura” [p. 217].

 

Philippe-Alain Michaud, “Aby Warburg e a imagem em movimento”

Além disso, acrescenta a crítica brasileira, “trata-se de uma sobrevivência de tensão, de forças contraditórias que não unificam nem repousam a figura, mas a põem em movimento como uma “mênade de gestos convulsivos e violentos arrebatamentos” (MICHAUD, Aby Warburg e a imagem em movimento. Contraponto, 2013, p. 32). O tema dos véus e cabelos ondulantes perseguiu Warburg em seu estudo das Ninfas. Didi-Huberman fala de um paradigma coreográfico, pois o que fazem a Deusa da primavera, as três graças, e a Vênus no quadro de Botticelli? Elas acima de tudo dançam. Assim, Warburg fez ressurgir em sua análise de Botticelli o gesto intensificado transformando o passo em dança; de onde, ao invés de acentuar a imobilidade da pintura, fez surgir dali uma coreografia”. Surge, disso, o paradoxo da ninfa – mais recentemente estudado também pelo italiano Giorgio Agamben – que, segundo Didi-Huberman, vem da dualidade figurativa do pano sobre o corpo. Nas palavras de Marcelino: “De um lado, o vento insufla o tecido que voa livremente pelo ar de forma abstrata, por outro lado, o mesmo tecido cola-se ao corpo, delineando contornos nus. A ninfa é, portanto, a ‘heroína dos movimentos efêmeros dos cabelos e da roupa’, uma ‘personificação transversal e mítica’ (DIDI-HUBERMAN, 2013) que abrange desde as graças de Botticelli às mênades antigas. Essa intensidade coreográfica atravessa toda pintura Renascentista à qual Warburg dedicou as pranchas 46 e 48 de seu Atlas Mnemosyne. A ninfa é tratada por Warburg como uma fórmula de páthos, uma corporificação feminina de memória psíquica sobrevivente, uma memória do gesto intensificado pelo movimento. Em sua prancha 46, ele justapôs 26 fotografias, entre outras imagens, havia um relevo do século XII, um afresco de Ghirlandaio em Santa Maria Novella, a portadora de água de Rafael e uma camponesa toscana fotografada pelo próprio Warburg. Agamben se pergunta qual dessas mulheres é a ninfa, qual delasé a ninfa original da qual as outras derivam? Nenhuma, responde. Porque a ninfa não tem original, nem cópia. A ninfa é algo indiscernível entre originalidade e repetição, entre forma e matéria. (AGAMBEN, Ninfas) A ninfa como fórmula de páthos é um ‘cristal de memória histórica’, um fantasma em que ‘o tempo escreve sua coreografia’”. Marcelino ainda acrescenta que, no final do século XIX, “as pesquisas da geologia e da paleontologia tornaram comuns os termos ‘fósseis vivos’ e ‘homem fóssil’, Warburg adotou essa ideia tratando dos fósseis em movimento utilizando o termo Leitfossil. Disse que um fóssil continha uma ‘vida adormecida em sua forma’. A ninfa, que é uma espécie de fóssil em movimento, configurou-se como um leitmotiv warburguiano do corpo em movimento”.

 

Aby Warburg, “Histórias de fantasma para gente grande”

Outra publicação dos textos de Warburg no Brasil é a coletânea Histórias de fantasma para gente grande, organizada pelo sociólogo Leopoldo Waizbort e lançada pela Companhia das Letras no ano passado. O volume traz nove textos, entre ensaios, palestras e esboços, produzidos entre 1893 e 1929, portanto abrangendo momentos de toda a vida intelectual de Warburg, de seus primeiros escritos até o derradeiro.

A cultura do Renascimento na Itália é o ponto em torno do qual de certa maneira orbita todo o pensamento de Aby Warburg. A partir de suas pesquisas sobre ela, o autor partiu para reflexões sobre as manifestações culturais da Antiguidade, a Reforma Protestante, o Humanismo, pesquisou diversos países do Oriente e os indígenas norte-americanos, a arte do século XIX e mesmo os selos postais do século XX. Sua obra tornou-se, assim, fonte inesgotável de interesse para historiadores da arte, antropólogos, filósofos, sociólogos, pesquisadores da imagem, filólogos, psicólogos.

Em resenha, publicada no jornal O Globo, o professor Karl Erik Schøllhammer contextualiza a relevância intelectual de Aby Warburg: “Os historiadores da arte nunca deixaram de ler e reler a obra de Warburg, e os trabalhos de E.H. Gombrich e Panofsky não seriam compreensíveis sem a referência a ela. Entretanto, a ideia da atualidade do pensamento de Warburg traz uma conotação “muitas vezes frívola ou superficial: atualizamo-nos apressadamente, e tudo continua como antes”, como observou o historiador italiano Carlo Ginzburg já em 1966, quando escreveu um ensaio importante sobre o método de Aby Warburg, por ocasião da publicação em italiano de textos do autor e de seus principais discípulos, F. Saxl e E. H. Gombrich”. Pois, para Schøllhammer, é “exatamente a questão de outra visão de temporalidade histórica, de um conceito não banal de “atualidade”, presente na empreitada de Warburg, que chamou a atenção de pensadores diversos como Ginzburg (que fez parte de sua formação no Instituto Warburg em Londres), o filósofo italiano Giorgio Agamben e o historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Nessa discussão, é fundamental a ideia de sobrevivência (Nachleben) de tópicos e imagens do passado por uma relação sensível, empática ou patética (Pathosformel)”. O professor analisa: “O que em Warburg talvez tenha sido elemento de uma teoria de evolucionismo psicológico inspirado, entre outros, no estudo ignorado de Darwin “A expressão de emoção em animais e homens” (1872), contribui agora para uma teoria da capacidade expressionista da imagem (Ausdruchkunde) como parte de uma psicologia social ou cultural mais ampla. Eis a abordagem de Georges Didi-Huberman, que detecta nas obras de Warburg uma “arqueologia do Pathos” e sua potência numa memória coletiva expressa na arte. […] É assim que Giorgio Agamben entende as fórmulas patéticas. São cristais de memória histórica que trazem do passado algo que apenas sob o encontro com algum estímulo do presente se revela parte espectral da História. Este argumento aprofunda a ideia de “sobrevivência” (Nachleben) de Warburg, que aponta para uma complexa visão diacrônica da História em diálogo com as teses da História de Walter Benjamin e também com o conceito de “a posteriori” (Nachträglichkeit) de Freud”.

Há, disponível, um trecho para visualização.

 

 

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[notas]

 

I. O Atlas Mnemosyne a pathosformeln

Edgard Wind, “A eloquência dos símbolos”

Ianick Takaes de Oliveira, no artigo “Warburg apud Wind: reflexões sobre o conceito de símbolo warburguiano” – apresentado no Simpósio Nacional de História Cultural, na USP, no ano passado –, sintetiza: “Edgar Wind (1900-1971) conheceu Aby Warburg (1886-1929) em Hamburgo em 1927, dois anos após sua saída da clínica do Dr. Binzwanger na Suíça; o estudioso hamburguês viria a morrer dois anos após. Nesse momento, Aby adentrava em sua sexta década, e Wind iniciava sua carreira acadêmica (nesse mesmo ano, começaria sua Habilitation com uma tese sob a orientação de Ernst Cassirer, que defenderia em 1929, a respeito de tópicos cosmológicos da filosofia neo-kantiana). O encontro e a curta amizade foram cruciais para ambos”. Para sistematizar o pensamento do notável intelectual que foi Warburg, Wind, aponta de maneira sistematizada Oliveira: “elencou três pontos principais que considerava essenciais em seu mentor: (1) seu conceito de imagem; (2) sua teoria dos símbolos; (3) sua teoria psicológica da expressão. Quanto ao primeiro item, afirma em Warburg a convicção basilar de que a separação da imagem das outras funções culturais era uma supressão de seu elemento vital; a imagem emerge de um todo cultural. Dessa forma, Mnemosyne, palavra tão cara à Warburg, serve como lembrete ao Historiador da Arte de que sua atuação é a de um curador da existência humana e que a própria experiência da memória é objeto de pesquisa. Wind serve-se dessas posições para criticar a corrente formalista em História da Arte — personificada pelos precedentes Wölfflin e Riegl — que tendia a afirmar a autonomia do objeto artístico e de seu desenvolvimento. A respeito do terceiro item, da teoria psicológica da expressão, Wind visa esquadrinhar questões relativas à formação psicológica e orgânica da expressão: as imagens surgem da expressão do corpo e são transpostas empaticamente para um objeto que conterá doravante essa carga expressiva”.

A imagem, desprendida de sua relação com a poesia, suprime, em si mesma, o seu elemento vital. A Mnemosyne que preocupou tanto a Warburg como a Wind, resume em si a relação entre o material histórico e a memória social – o Atlas Mnemosyne é um estudo das imagens, que Aby Warburg deixou incompleto ao morrer e que encontra contiguidades com o princípio constelar de Benjamin, da cosmogonia antiga ao conceito geográfico, às representações literárias e ao âmbito crítico.

 

Warbug afirma a unidade antropológica da escultura e da dança, que resguardam um tensionamento e polaridade, constantemente conflitantes, entre o dionisíaco e apolíneo, em imagens que traduzem movimentos patéticos primitivos. E foi neste sentido de pesquisa que começou a trabalhar com um mapa de genealogias de imagens, o Atlas Mnemosyne.

Como explica Fabio Henrique Ciquini, pesquisador doutor em Comunicação e Semiótica, em artigo: “O nome faz referência à personificação mitológica da memória – a deusa Mnemosyne – e a obra em si consiste em pranchas de um metro e meio por dois, onde são afixadas com prendedores de fácil remoção, reproduções fotográficas distintas como desenhos, obras de arte, imagens publicitárias, entre outras. Warburg elabora esses painéis abordando a Nachleben (pós-vida) contida nas imagens, possíveis relações genealógicas entre as formas, expressões patéticas similares”. O Atlas oferece múltiplas possíveis combinações entre as imagens, que relacionam-se ao conceito warburgiano de pathosformeln, ou fórmula de páthos – conceito concebido quando o autor percebeu, nas imagens da sua época, a existência de uma tipologia visual retomada, reengendrada; analisando o retorno desse páthos da Antiguidade, compreendeu-as como aparições fantasmáticas, que brotam de imemorialidades, que estão nas franjas da cultura. Trata-se de um estudo profundo e meticuloso sobre as raízes ancestrais e os lastros de memória encarnados nas imagens e que transitam entre elas e um inventário dos modelos antiquizantes preexistentes que influenciaram a representação da vida em movimento e determinaram o estilo artístico na época do Renascimento.

Ciquini conta que “Warburg, como pensador das ciências da cultura e não apenas historiador da arte, compõe suas pranchas do Atlas Mnemosyne com recortes de jornais, páginas de livros, cartões-postais, fotografias publicitárias, enfim, qualquer imagem que possibilitasse ao autor a verificação da pós-vida das pathosformeln, que compusesse seu imenso cenário de ‘iconologia dos intervalos’. A disposição dos elementos elaborada pelo pesquisador possibilitava pensar em fluxos diversos entre as imagens, além de o espectador entrever e “comparar com uma só olhadela, numa mesma prancha, não duas, porém dez, vinte ou trinta imagens”.

 

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II. Contextualização da discussão com Winckelman

Jacqueline Lichtenstein [org.], “A pintura”, vol. 07 – textos de Leonardo, Cellini, Vasari, Poussin, Winckelmann, Lessing, entre outros.

Winckelmann identificou como ideais da arte a “nobre simplicidade e calma grandeza”, e utilizou-os como cerne de toda sua teoria estética. Seu projeto consistia na imitação do ideal de beleza da arte grega e sua obra é considerada como fundamentação do Classicismo helenista alemão da última década do século XVIII.

Além de ser considerado o fundador da arqueologia moderna, em função de seus estudos das escavações de Pompéia e Herculano, Winckelmann estabeleceu novos parâmetros para a história da arte, influenciando todo o seu desenvolvimento posterior.

Gerd Bornheim, em sua “Introdução à leitura de Wincklemann” [em: Páginas de filosofia da arte – indisponível], “os seus autênticos continuadores não são os escultores e os pintores”, cujo academicismo os levou a seguir o caminho cópia, “mas os poetas”. O professor e crítico Pedro Süssekind, em artigo, pontua que Winckelmann “inaugura uma compreensão da história da arte baseada na busca das condições de surgimento das obras antigas, ‘sob o céu grego’, mas procura com isso definir um critério normativo, atemporal, um modelo a ser imitado sob um céu diferente. Há uma aporia, entre a singularidade do surgimento da arte antiga e o postulado da sua exemplaridade. Mesmo assim, o caráter histórico das investigações de Winckelmann influenciou decisivamente a estética posterior, de Herder a Hegel, e o desenvolvimento da história da arte voltado para a compreensão das obras em sua particularidade”.

 

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III. Contextualização da relação com Jacob Burckhardt

Jacob Burkhhardt, “A cultura do Renascimento”

A publicação, em 1867, de A cultura do Renascimento na Itália, considerada a obra-prima do historiador suíço Jacob Burckhardt, representou um momento crucial para a historiografia. Tornou-se, na virada do século, não só um texto fundamental para historiadores, como também para filósofos e críticos de arte. Pois foi Burckhardt que, com essa obra, cunhou a concepção de Renascimento que persiste majoritariamente até hoje, a definição do período como de grande florescimento do espírito humano, espécie de “descoberta do mundo e do homem”.

Segundo o professor de estética do departamento de filosofia da USP Lorenzo Mammì, com a publicação do livro de Burckhardt, “o ‘homem do Renascimento’ se torna uma categoria antropológica, um modelo de vida. E aí começam os problemas”. Pois, pergunta o professor: “Existiu mesmo um ‘homem do Renascimento’, bon vivant e esclarecido, em oposição a um ‘homem da Idade Média’, carola e retrógrado?”.

Para Burckhardt, a sociedade italiana dos séculos XIV e XV produziu os primeiros homens modernos, cujas principais características são o humanismo, o desencantamento da natureza, o pensamento livre de paradigmas religiosos, a concepção de história.

A grande ruptura de seus estudos em relação à historiografia anterior foi a da negação de um sentido intrínseco aos acontecimentos. Para Burckhardt a figura que melhor combina o devir histórico à cultura é o artista, por sua capacidade de captar os símbolos de uma época e, ainda assim, deixar entrever o que há de permanente.

 

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