Guia de Leitura

Multidão – parte II

7 maio, 2016 | Por Isabela Gaglianone

A multidão, profícuo conceito, encontrou repercussão também quando aplicado à literatura, à psicanálise e à história.

Em todas as áreas, há um embate com a autonomia, a subjetividade e a própria potência da multidão.

 

– Multidão como conceito literário –

Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”

O conceito de multidão existe também na literatura. Walter Benjamin o explorou no belo livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, no qual cria um mosaico da modernidade, no final do século XIX, entre Paris, Londres e Berlim. O mais notório argumento do livro é a figura do flâneur, termo em francês que designa o andarilho que se perde pela cidade e, andando sem destino, permite-se intensamente observar seu entorno como se eterna novidade. O flâneur é alguém aberto ao que o mundo expõe a cada segundo. A ele contrapõe-se a multidão, cujo significado Benjamin compara entre três autores: Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe e E.T.A. Hoffmann. No conto A janela de esquina do meu primo, Hoffman ressaltou à sua época as mudanças de uma nova convivência social urbana, tendo sido o pioneiro na introdução do conceito de multidão na literatura ocidental, depois absorvido por outros autores, como o próprio Poe em seu “O Homem da Multidão” e Charles Baudelaire, em seus poemas sobre Paris.

Por outro lado, o conceito figura também na teoria e crítica literária enquanto relacionado ao problema da expressão e a certo esgotamento da noção de opinião pública. Como indica Philippe Beck, no interessante “O acalanto e o clarim (Literatura, tirania, expressão) – Ensaio sobre a multidão literária”, a multidão, por não ser uma massa homogênea, mas, ao contrário, um conjunto de singularidades abertas, apesar de suscetíveis a fecharem-se, “é a possível obra aberta de cada um que aparece”. Beck no mesmo ensaio evoca o livro Gramática da multidão, de Paolo Virno, para expôr a pertinência da questão sobre multidão no impulso da linguagem, na questão, particular na aparência, da expressão, multidão como ferramenta decisiva para qualquer reflexão sobre a esfera pública contemporânea.

 

– Na psicanálise –

Sigmund Freud, “Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos”

Freud inicia seu Psicologia das massas e análise do Eu [i] questionando a distinção entre psicologia individual e social, ou das massas. Segundo ele: “Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado”.

As relações, portanto, são responsáveis por moldarem o indivíduo, desde a infância, e, portanto, são também fenômenos sociais. O irracionalismo dos movimentos políticos de massa – sobretudo à época da concepção do texto freudiano, entre 1920 e 1923, em que ascendiam rapida e davastadoramente o fascismo e o comunismo – é analisado, assim, sob o viés interpretativo psicanalítico. Conhecido como um de seus textos sociais, debate as ideias de Gustave Le Bon (1841-1931) – justamente em seu famoso livro Psicologia das multidões [Martins Fontes, 2016, 2ª ed., trad. Mariana Sérvulo da Cunha] – argumentando com conceitos como identificação, regressão, idealização, libido e recalque.

De acordo com Maria Rita Kehl, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o livro é “uma mistura desigual de boas observações sobre o comportamento das grandes massas que se formavam na Europa recém-industrializada, classificações pseudocientíficas inadequadas à complexidade do objeto e conclusões desabusadamente subjetivas e conservadoras para a época”. Freud, diz a psicanalista brasileira, “perseguiu com entusiasmo as observações iniciais de Le Bon, mas não se satisfez com as explicações que ele propôs sobre a disposição das multidões em seguir, irrefletidamente, seus líderes: contágio, prestígio, carisma, hipnose. Como se produz esse tipo de poder? Foi Freud, e não Le Bon, o grande teórico da psicologia de massas do século 20, ao propor que os membros da massa se apropriam do líder por meio de mecanismos de identificação com os ideais (paternos) que ele representa. Ao se identificarem com o ideal, os membros das formações de massa se sentem dispensados do julgamento de seu próprio supereu -daí a disponibilidade das massas para a violência, para atos de caráter delinquente que nenhum de seus membros, isoladamente, teria coragem de praticar”. Maria Rita Kehl conclui: “enquanto Le Bon fala em raças inferiores compostas de indivíduos que se assemelham aos povos ‘primitivos’, Freud equipara a psicologia das multidões à do neurótico comum. Enquanto o psicólogo francês acredita em uma casta superior capaz de conduzir as multidões, Freud atribui aos fenômenos de massa o caráter universal das formações do inconsciente”.

Na introdução do texto de Freud, a “psicologia de massas trata o ser individual como membro de uma tribo, um povo, uma casta, uma classe, uma instituição, ou como parte de uma aglomeração que se organiza como massa em determinado momento, para um certo fim. Após essa ruptura de um laço natural, o passo seguinte é considerar os fenômenos que surgem nessas condições especiais como manifestações de um instinto especial irredutível a outra coisa, o instinto social — herd instinct, group mind [instinto de rebanho, mente do grupo] —, que não chega a se manifestar em outras situações”.

 

– Na história –

E. P. Thompson, “A economia moral da multidão na Inglaterra do século XVIII”

A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII é um texto clássico da história social. E. P. Thompson, um dos maiores historiadores ingleses contemporâneos, parte da análise das revoltas do século XVII para situar as possibilidades de uma ação semelhante fora da esfera do poder e do quadro político dominante. Seu livro mostra de maneira inequívoca que a sociedade capitalista se encontra fundada sobre formas de exploração simultaneamente econômicas morais e culturais – de onde surge seu conceito de uma “economia moral”.

O autor mostra que é superficial a visão, tradicional na historiografia economicista, que entende os famosos motins na Inglaterra do século XVIII enquanto reação objetiva, direta e, talvez, natural ao problema da fome.

Para Thompson: “Contra essa visão espasmódica, oponho minha própria visão. É possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII uma noção legitimadora. Por noção de legitimação, entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais”.

Ou seja, por trás dos motins, aparentemente reações imediatas ao problema da fome, se descortina um universo de tradições, costumes e crenças que traziam, a estas ditas perturbações sociais, legitimidade, coerência e coesão. Thompson, assim, identifica a existência de uma economia moral baseada na tradição cultural da sociedade inglesa oitocentista, que conferia um sentido mais amplo aos motins, ao passo que criava uma consciência de grupo, mobilizadora diante dos problemas sociais. A economia moral da multidão que o historiador propõe é uma “cultura política”, que inclui expectativas, tradições e superstições da população pobre em seu relacionamento ou envolvimento com ou no mercado, sobretudo o de alimentos.

Conforme sintetiza em artigo o historiador Frederico de Castro Neves, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará, no artigo “Economia moral versus moral econômica (ou: o que é economicamente correto para o pobres?)”, em torno do mercado “toda uma série de discursos e práticas se digladiavam na procura de reformar ou manter os direitos costumeiros sobre a oferta de alimentos. Mencionar estas posições em combate, no entanto, não significa escamotear a existência de tensões internas a estas posições ou as transformações políticas que as contextualizam. A própria pressão exercida pela multidão coloca em dúvida o controle paternalista sobre a sociedade, assim como questiona o progresso inevitável e pacífico trazido pelas reformas econômicas”. Dessa forma, explica o professor, “a ‘economia moral’, mesmo sendo uma ‘reconstrução seletiva do modelo paternalista’, conflita-se permanentemente com este modelo, o que não significa que o conceito ‘minimiza os conflitos mais profundos entre os paternalistas e os interesses populares’. Estes ‘conflitos mais profundos’ aparecem em todos os momentos, e não somente no espaço do mercado, mas na esfera da cultura. A pressão exercida pelas ações da multidão não surte efeitos somente sobre os reforrnadores liberais, mas, pelo contrário, principalmente sobre os próprios paternalistas. Esses, pretendendo obter o melhor dos dois modelos em conflito, ‘aceitavam em grande parte a mudança, mas retornavam a este modelo [paternalista] quando surgia alguma situação de emergência’. As relações paternalistas tanto dirigiam os camponeses para a submissão e a deferência quanto para à quebra de suas normas em momentos de crise. As reformas, portanto, podiam ser mais facilmente implantadas em períodos de boas colheitas e baixos preços, períodos que podem ser confundidos com ‘paz social’; no entanto, ‘a ausência de motins da fome não é necessariamente um indicador de ‘paz’ nem ausência de crença na economia moral’”.  Todavia, diz Castro Neves, “a insistência na defesa de direitos costumeiros significa que a multidão, apesar das pressões que exerce, está presa ao modelo paternalista”.

 

– Nos diálogos contemporâneos da filosofia política –

Paolo Virno, “Gramática da multidão: para uma análise das formas de vida contemporânea”

Em sua Gramática da multidão: para uma análise das formas de vida contemporâneas, Paolo Virno investiga a termo “multidão” como nova articulação política do trabalho que evita uma unificação repressiva no Uno (o Estado, a nação ou um estilo cultural “grandioso”), buscando entender como é possível conceber seu modo de unidade, como formas novas de microcoletivos funcionam e como se poderia explicar sua explosiva proliferação e criatividade.

O italiano é conhecido como um dos mais radicais e lúcidos pensadores da tradição política e intelectual pós-operaísta.

De acordo com análise do filósofo Alexei Penzin, membro do Instituto de Filosofia da Academia de Ciências da Rússia, de Moscou: “De todas as correntes marxistas heterodoxas, o pós-operaísmo se encontrou no próprio centro dos debates na filosofia contemporânea. Sua análise do capitalismo pós-fordista faz referência à filosofia da linguagem de Wittgenstein, a Heidegger e sua análise do Dasein, à “antropologia filosófica” alemã e a Foucault e Deleuze com sua problematização dos aparelhos ou dispositivos de poder, desejo e controle. A subjetividade, a linguagem, o corpo, os afetos ou, em outras palavras, a própria vida são captadas por esse regime de produção pós-fordista. Esses conceitos e discursos “abstratos” entraram na realidade do capitalismo contemporâneo e se tornaram fundamentais para ele, como abstrações reais, em funcionamento. Essas sugestões teóricas desencadearam uma enorme polêmica ao longo das últimas duas décadas”.

Virno parte da crise do conceito moderno de “povo”, crise ligada inevitavelmente àquela do conceito hobbesiano de Estado, a “multidão” re-emerge como categoria mais adequada para traçar uma “gramática” das inquietudes do homem pós-moderno. O filósofo italiano tenta, portanto, uma análise das formas de vida contemporâneas, através da “lente” privilegiada de tal categoria filosófica redescoberta, a qual devém, desse modo, um eficaz princípio sociológico.

O filósofo assim coloca a questão: “Considero que o conceito de ‘multidão’, por contrapor àquele, mais familiar, de ‘povo’, seja uma ferramenta decisiva para toda reflexão sobre a esfera pública contemporânea. É preciso ter presente que a alternativa entre ‘povo’ e ‘multidão’ esteve no centro das controvérsias práticas (fundação do Estado centralizado moderno, guerras religiosas, etc.) e teórico-filosóficas do Século XVII. Esses dois conceitos em luta, forjados no fogo de agudos contrastes, jogaram um papel de enorme importância na definição das categorias sócio-políticas da modernidade. A noção de “povo” foi a prevalecente. ‘Multidão’ foi o termo derrotado, o conceito que perdeu. Ao descrever a forma de vida associada e o espírito público dos grandes Estados recém constituídos, já não mais se falou de multidão, senão que de povo. Resta hoje perguntar, se ao final de um prolongado ciclo, não se reabriu aquela antiga disputa; se hoje, quando a teoria política da modernidade padece de uma crise radical, aquela noção derrotada, então, não mostra uma extraordinária vitalidade, assumindo assim uma clamorosa revanche?”

Em entrevista, quando questionado sobre a necessidade de uma nova articulação das relações entre o coletivo e o individual e, portanto, sobre o lugar da coletividade em seu pensamento, disse: “Devo muito aos pensamentos de Lev S. Vygotskij sobre o coletivo, sobre a relação entre o coletivo e a singularidade. Sua principal ideia é que a relação social precede e permite a formação do ‘eu’ autoconsciente. Deixe-me explicar: no início há um ‘nós’; entretanto – e aqui reside o paradoxo –, este “nós” não equivale à soma de muitos ‘eus’ bem definidos. Em suma, mesmo que não possamos falar ainda da existência de sujeitos reais, há, ainda assim, uma intersubjetividade. Para Vygostkij, a mente do indivíduo não é um ponto de partida incontroverso, mas o resultado de um processo de diferenciação que acontece numa sociedade primeva: ‘O movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento ‘da criança não se realiza do indivíduo para o socializado, mas do social para o individual’”. Segundo o filósofo, “o pensamento acerca da ‘comunidade’ contém um defeito básico: ele negligencia o princípio da individualização, isto é, o processo de formação de singularidades a partir de algo que todos os seus elementos compartilham. A lógica da multiplicidade e singularidade não é suficiente, e precisamos esclarecer a premissa, ou a condição de possibilidade, de uma multidão de singularidades. Vou enunciar isto em forma de provocação: precisamos dizer algo sobre o Uno que permite a existência de muitos indivíduos irrepetíveis. O discurso acerca da ‘comunidade’ evita pudicamente o discurso sobre o Uno. Entretanto, a existência política dos ‘muitos’ como ‘muitos’ está enraizada num âmbito homogêneo e compartilhado; ela é talhada a partir de um pano de fundo impessoal. É em relação ao Uno que a oposição entre as categorias de ‘povo’ e ‘multidão’ surge claramente. E o que é o mais importante, há uma inversão na ordem das coisas: enquanto o povo tende ao Uno, a multidão se deriva do Uno”. Para Virno, “é fundamental é entender os trabalhos e os dias da multidão como a matéria-prima para definir um modelo político abrangente que se afaste daquele artefato medíocre do Estado moderno, que é ao mesmo tempo rudimentar (no tocante à cooperação social) e feroz. O que é fundamental é conceber a relação entre o Uno e os Muitos de uma maneira radicalmente diferente daquela de Hobbes, Rousseau, Lênin ou Carl Schmitt.

 

 

 

Segundo Luciano Barbosa Justino, doutor em Letras e professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), no artigo “A potência oralizante da multidão: por que os estudos culturais ajudam a compreender a experiência dos muitos na literatura contemporânea”, o conceito de multidão “como ‘um conjunto de singularidades cooperantes’ pode nos livrar do ranço literário da leitura que chamo de identitária, baseada em princípios disciplinares de identidade e que impregnam ainda as abordagens étnicas, de gênero e geração abertas pelos estudos culturais”. Para Justino, é necessário pensar-se a multidão em sua multiplicidade constitutiva, não como “personagem”, diz ele, “mas principalmente como método crítico, em outras palavras, falta a multidão como ética da leitura”. A partir da leitura do desenvolvimento do conceito de multidão conforme feito por Antonio Negri, o professor aponta que “o potencial crítico do conceito de multidão, que ressignifica os objetos a partir da experiência e de sua partilha, pressupondo a recusa do “papaguear identitário” da massa e do povo como consciência dos riscos essencializantes das identidades e das individualidades de substância e transcendência”. Dessa maneira, “pensar o fim da massa e do povo a partir da ‘potência ontológica da multidão’ não é negar a existência de produtos culturais que por razões ideológicas foram definidos como tais, popular ou massivo, é abri-los a uma outra estratégia de leitura”. O papel mais relevante da literatura, no processo desta linha de raciocínio, está na sua relação com a oralidade e no decorrente caráter dêitico de sua imanência, de acordo com o professor, segundo quem a “imanência da literatura, suas máquinas, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari, é dêitica porque a potência oralizante da multidão é posicional num contexto de multiplicidade, de diferença e memória pessoal e coletiva. Ela não é um modo de oposição ao popular, ao massivo e ao erudito. Ela os constitui num cronotopo de muitos em inter-relação recíproca”.

A multidão como ética de leitura, conforme sugere o professor, rebate-se no movimento criador da multidão. E o problema da multidão torna-se o de um “novo sentido de ser”.

 

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[i] A edição, publicada pela Companhia das Letras, com tradução de Paulo César de Souza, integra, enquanto 15º volume, a coleção Obras completas, que reúne todos os textos de Freud. O volume traz ainda o ensaio “Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina”, que desenvolve formulações sobre a sexualidade feminina e a homossexualidade em geral. Há, também, dois textos sobre a telepatia, que são testemunho do interesse de Freud pelo tema, e o ensaio “Uma neurose do século XVIII envolvendo o Demônio”, que analisa um peculiar documento, deixado por um pintor alemão, sobre a história do pacto que fizera com o Diabo a fim de livrar-se de sua neurose.

 

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