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Narrativas da revolução

17 novembro, 2017 | Por Isabela Gaglianone
El Lissitzky, "Tatlin trabalhando"

El Lissitzky, “Tatlin trabalhando”

Inveja, do escritor russo Iuri Oliécha (1899-1960), novela aclamada como um acontecimento literário radicalmente novo no ano de sua publicação, 1927, acaba de ser publicada no Brasil pela editora 34, com tradução de Boris Schnaiderman.

A novela recebeu novas e complexas leituras ao longo do tempo; trata-se de uma sátira mordaz e crítica implacável quanto aos ideais socialistas, porém marcadamente poética.

A trama vertiginosa beira o nonsense. É complexa a ambiguidade psicológica dos personagens, a exaltação de sentimentos contraditórios, que vão da arrogância à auto-humilhação, do amor à inveja desvairada. Satiricamente irresolutas na obra, estas contradições são articuladas por uma imaginação desenfreada e um domínio completo do tempo e do espaço narrativos: o resultado, é uma obra de metáforas audaciosas, desenvoltura soberba e de grandeza ímpar.

Ainda hoje, a novela é desconcertante sob muitos aspectos. Uma tragicomédia anárquica, cujo ritmo e intensidade verbal foram recriados com brilho pela tradução de Boris Schnaiderman.

O protagonista, um intelectual decaído, jovem idealista e sentimental – possível alter ego do autor – que se recusa a aceitar os valores comunistas, consome-se de inveja e aversão por seu benfeitor, um modelo de cidadão soviético que dirige uma bem-sucedida indústria de salsichas. Quando a obra veio a público, recebeu críticas elogiosas da academia literária soviética, que compreendeu tratar-se de uma condenação de sentimentos burgueses desprezíveis – ainda que Inveja possa ser igualmente lida como acusação severa quanto a todo o sistema soviético de valores. Oliécha era ciente de falhas tanto no capitalismo quanto no comunismo, e não era totalmente simpatizante a nenhum deles – apesar de, anos antes, durante a Revolução, ter sido um forte apoiador do comunismo.

Paralelamente à crítica política e social ambivalente, a novela é também notável enquanto exploração psicológica de seus personagens, através de um humor de certa maneira mal-humorado e visionário. Como pontua Boris Schnaiderman, no posfácio à obra, o protagonista “tece loas ao individualismo e à vida ocidental, mas em suas arengas há uma boa dose de autoflagelação, e o autor trata o caso com evidente ironia. Ao mesmo tempo, porém, a inveja que o personagem sente pelo mundo novo que se constrói à sua volta aparece como um sentimento tão rico, há tal variedade de matizes na sua vida interior, que, se a compararmos com a mentalidade honesta e singela dos homens novos dos construtores, vemos que o autor introduz no relato uma espécie de ironia em relação à sua própria ironia. E qualquer conclusão parece precipitada, pois o que se pisa é um terreno movediço, um país sem contornos precisos, o próprio reino da ambiguidade”.

Em 1934, ocorreu na Rússia o Primeiro Congresso de Escritores Soviéticos, cuja maior herança foi o estabelecimento da doutrina do Realismo Socialista, que contou com opinião favorável da maior parte dos escritores presentes e que previa o escritor como “engenheiro das almas humanas”, portanto responsável por dar conteúdo humano novo ao homem da realidade soviética, substituindo a atitude literária religiosamente pessimista e abstratamente ética, por uma interpretação social e histórica. Uma das vozes contrárias mais importantes foi a de Iuri Oliécha, que proclamou que “um escritor só pode escrever o que pode escrever” e que, para ele mesmo, era impossível pôr-se a trabalho como um trabalhador braçal ou como herói revolucionário que criasse uma epopeia, como o regime soviético recomendava. Porém, o caso de Oliécha foi bastante isolado a quase todos os escritores aceitaram as ordens vindas dos altos escalões políticos; o autor, graças à forte censura stalinista, foi preso durante anos em um gulag soviético.

Iuri Kárlovitch Oliécha nasceu em 1899 em Elizavetgrad (atual Kropivnitski), na Ucrânia, em uma família de meios modestos. Cresceu em Odessa, onde teve contato com escritores como Isaac Bábel, Iliá Ilf e Valentin Katáiev, e participou dos círculos literários “Lâmpada Verde” e “Coletivo dos Poetas”. Em 1919, durante a Guerra Civil, abandonou o curso de direito para se juntar ao Exército Vermelho, e passou a produzir material de propaganda. Neste ano começa a publicar poemas e artigos satíricos no Gudók (Sirene), jornal dos trabalhadores ferroviários. Em 1927 publica as novelas Os três gorduchos (escrita em 1924) e Inveja, considerada sua obra-prima.

Apesar de uma primeira recepção calorosa por suas inovações formais, o retrato ambíguo do regime soviético em Inveja fizeram com que o autor caísse no desfavor dos críticos comunistas. Nos anos seguintes, Oliécha publicou ainda alguns contos e peças para teatro, colaborando inclusive com Meyerhold, mas acabou sendo condenado ao ostracismo. Foi reabilitado apenas em 1956, com a publicação de suas Obras escolhidas. Morreu em 1960, em Moscou.

 

Este lançamento faz parte da série Narrativas da Revolução, dirigida por Bruno Barretto Gomide, professor de cultura e crítica literária russas, da Universidade de São Paulo. Publicadas na década de 1920, as cinco obras de ficção escolhidas dialogam diretamente com a Revolução Russa de 1917 e, sobretudo, testemunham a diversidade de caminhos estéticos e a extraordinária força inventiva do período.

As obras também dialogam com a grande tradição da literatura russa do século XIX e com vertentes do modernismo e das vanguardas russas. Assim, permitem discutir o valor da nova literatura soviética, que sofreu incômoda comparação com os titãs do romance russo do século XIX. Na contramão desse tipo de hierarquização, Boris Schnaiderman assumiu, desde seus primeiros textos na imprensa, posição na qual apontou o estatuto de grande arte dessa nova prosa revolucionária.

Compõem a coleção, além da novela de Iuri Oliécha, os títulos: O ano nu, de Boris Pilniak, (1921), Viagem sentimental, de Viktor Chklóvski (1923), Nós, de Ievguêni Zamiátin (publicado em 1924, em tradução para o inglês) – estes, ainda no prelo – e O diário de Kóstia Riábtsev, de Nikolai Ognióv (1926).

Bruno Gomide, no artigo “Boris Schnaiderman: questões de tradução nas páginas de jornal”, publicada na revista Estudos Avançados, comenta o protagonismo da atividade ensaística e tradutória de Boris Schnaiderman, que “constitui o ponto nevrálgico no nosso contato com a multifacetada experiência russa”. Gomide comenta o arrojado trabalho de tradução de Schnaiderman e pontua que, ainda que seu trabalho conjunto de tradução poética com os irmãos Campos tenha sido o resultado de uma “afinidade eletiva”, antes deste notório encontro, “o elogio ao aspecto dinâmico e radical do texto literário já está embutido em seus comentários sobre a ficção breve de Oliécha, Katáiev, Bábel e tantos outros, feitos desde as primeiras linhas dos primeiros artigos publicados em jornal, nos quais Schnaiderman lamenta a substituição da ousadia por procedimentos mais tradicionais, derivados ora de transformações internas à própria vida e obra daqueles autores, ora resultado de pressões exteriores”.

 

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.Trecho.

 

Todas as manhãs ele canta no WC. Imaginem como é sadio e rico de alegria de viver. A vontade de cantar surge nele por um reflexo. Estas suas canções, emq ue não há melodia nem palavras, mas unicamente um ta-ra-ra, gritando em diferentes variações, podem ser interpretadas assim:

“Como me é agradável viver… ta-ra! ta-ra!… Os meus intestinos são elásticos… ra-ta-la-ta-ra-ri… Os sucos movem-se em mim corretamente… ra-ta-da-du-ta-ta… Encurta-te, tripa, encurta-te… tram-ba-ba-bum!

Quando, de manhã, ele se levanta, passa por mim (finjo dormir), atravessa a porta que leva para as profundezas do apartamento e vai ao WC, a minha imaginação voa atrás dele. Ouço um reboliço naquele quartinho, onde mal cabe o seu corpo volumoso. O seu ombro roça o lado interno da porta que bateu, os cotovelos chocam-se com as paredes, e ele vai movendo as pernas. Há um vidro oval e fosco embutido na porta do WC. ele gira o comutador, o oval fica então iluminado de dentro para fora e torna-se belo, cor de opala, um ovo. Mentalmente, veko esse ovo, suspenso na treva do corredor.

Ele pesa seis pudes. Recentemente, descendo não sei onde de uma escada, notou tremer-lhe o peito, acompanhando o ritmo dos passos. Por isso, decidiu-se a uma nova série de exercícios ginásticos.

É uma personalidade masculina exemplar.

Geralmente, faz ginástica não no seu quarto de dormir, mas no quarto de destinação indefinida, que eu ocupo. Aí há mais espaço, maia ar, mais luz, mais irradiação. Um frescor jorra pela porta aberta do terraço. Ademais, aí há um lavatório. Ele traz do quarto de dormir uma esteira.

Está nu até a cintura, de ceroula de malha, com um único botão no meio da barriga. O mundo cerúleo e róseo do quarto gira na objetiva de madrepérola do botão. Quando ele se deita de costas sobre a esteira e começa a levantar alternadamente as pernas, o botão não resiste. Desnuda-se-lhe a virilha. Tem virilha magnífica. Uma tenra mancha ruiva. Cantinho secreto. Uma virilha de reprodutor. Vi uma virilha com o mesmo fosco de camurça num antílope macho. A um simples olhar dele, as moças, suas secretárias e escrituárias, ficam certamente atravessadas por correntes elétricas de amor.

[…]

 

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.Trecho do posfácio de Boris Schnaiderman.

 

[…] Vem a seguir a obra mais discutida de Oliécha: a novela Inveja, escrita em 1927. Surge nela o contraste entre Kavaliérov, um intelectual decaído, que não se adapta ao ambiente criado pela Revolução, e seu protetor ocasional, um alto funcionário soviético que o recolhe na sarjeta e o leva para casa. Grande parte da novela consiste do diário do próprio Kavaliérov, em que transborda toda a sua amargura e todo seu rancor contra aquela outra humanidade, que ele no fundo inveja. Críticos estrangeiros viram em algumas tiradas do personagem uma exaltação, pelo autor, dos valores individuais face aos coletivos, mas tal asserção não parece ter muito fundamento, pois Oliécha apresenta seu intelectual afundado na mais abjeta miséria material e moral. Outros, como o prefaciador da edição das Obras escolhidas, interpretam a oposição Kavaliérov-Bábitchev como o conflito entre o velho e o novo, entre o intelectual que traz em si todos os vícios do passado e o homem que luta pela Revolução. Embora em essência a interpretação pareça exata, é interessante observar que Bábitchev é apresentado sem qualquer espécie de exaltação. Tanto ele como a juventude de sua época são descritos como gente capaz, ocupada de suas tarefas, mas o autor não lhes infunde muitas outras qualidades positivas. Malicioso e irreverente por excelência, o Oliécha da primeira fase apraz-se em apresentar os pequenos ridículos comuns na vida e no modo de ser das criaturas “positivas” […].

 

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INVEJA

Autor: Iuri Oliécha
Editora: 34
Preço: R$ 32,90 (192 págs.)

 

 

 

 

 

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