Artes Plásticas

Natureza ambígua

17 novembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

escultura de Cícero Alves dos Santos, o “Véio”

A arte contemporânea tornou menos nítidas as fronteiras entre o mundo e o museu. Instalações nas ruas, grafites nas galerias, artes de deriva são exemplos. Também o é uma arte considerada por muitos ingênua, composta por esculturas feitas com madeira encontrada na mata por um artista popular sergipano, exibida em São Paulo até dezembro, que provoca o ressurgimento da questão sobre a validade artística: o delicado trabalho de Cícero Alves dos Santos, o Véio, rompe preconceitos e apaga a suposta linha divisória entre arte popular e erudita.

Feitas sobretudo com galhos, troncos e raízes, suas esculturas ganham exposição na Galeria Estação, com curadoria do crítico Rodrigo Naves, e também uma bela análise, no livro Véio – Esculturas, publicado pela WMF, com textos do crítico. Tanto a exposição quanto a publicação do livro visam proporcionar uma ampliação da recepção da potência significativa da obra deste artista. O livro sugere que diante dos trabalhos de Véio, artista visionário que, vivendo em uma região em que são rígidos os limites entre campo e cidade os extrapola, estabelecem-se questões amplas sobre a conceituação do que seja arte.

Como diz o pintor Paulo Monteiro, no catálogo da exposição, para Cícero Alves dos Santos “existem dois tipos de tronco de árvore dos quais são feitas as suas esculturas: o fechado e o aberto. Os troncos abertos são aqueles em que a projeção de uma imagem se acomoda à forma natural de uma parte da árvore. Uma forquilha pode se transformar em duas pernas ou dois chifres, dependendo da figura ali projetada pelo artista. Já os troncos fechados são entalhados somente a partir de sua imaginação. […] Esse jeito de fazer nos leva a pensar em uma relação que passa por uma espécie de endogamia com a natureza. Uma simbiose entre figuras do mundo animal e figuras do mundo mineral ou vegetal, em que o “fazer” acaba sendo uma questão menor do que a da projeção das imagens”. Esse procedimento encontra analogias com a arte pré-histórica e sua lógica mágico-religiosa; porém, a originalidade de Véio, que o distancia desta lógica primeva, é, segundo Monteiro, “o seu ponto de partida. A origem do trabalho de Véio é a historia do povo sertanejo, toda atravessada por misticismo, lendas e lutas sempre relacionadas à natureza. A relação de Véio com essa história se concretizou em um museu, o “Museu do Sertão”, que ele construiu ao lado de seu ateliê, localizado no interior sergipano. […] O “Museu do Sertão” de Véio é um depósito poético, uma coleção de sentidos para sua obra, onde brinquedos, instrumentos, peles de animais e ferramentas convivem com caveiras de bois, móveis antigos e santos de gesso. Onde, enfim, podemos encontrar os modos e os motivos que o levaram a se tornar artista. O próprio Veio costuma dizer que se tornou artista para contar a história de seu povo”.

Também nomeado Sítio Soarte, o seu “Museu do Sertão” forma um cenário curioso, formado por esculturas em madeira bruta que representam manifestações socioculturais sertanejas.

Rodrigo Naves, ao comentar as duas formas de escultura de Véio, sobre as “madeiras abertas”, diz: “De par com o forte aspecto vegetal dos materiais usados nas esculturas (as curvas e irregularidades de troncos e raízes), surpreende a intensidade das cores empregadas na maior parte dos trabalhos. Elas revelam uma feição artificial e pop, em que os meios-tons raramente encontram lugar, e que, a princípio, diferem em tudo das sutilezas dos elementos naturais, avessos às aparências taxativas e regulares dos objetos industriais. No entanto, acredito que essa oposição acabe intensificando o aspecto espontâneo (algo não determinado por um projeto) dos fenômenos naturais. Como as cores não têm grande importância na definição formal das obras, elas ajudam sobretudo a realçar a irregularidade dos volumes que recobrem, sem ocultar sua origem orgânica e vegetal”. Já sobre os trabalhos entalhados, feitos nas “madeiras fechadas”, Naves analisa: “Ainda que algumas vezes Cícero as recubra de tinta, na grande parte dos casos a madeira fica nua, sem que a tinta recubra o trabalho realizado nela. Curiosamente, nas esculturas de Cícero ocorre uma inversão do que vemos acontecer cotidianamente: o trabalho humano, a intervenção na natureza, conduz a uma miniaturização dos objetos que engendra”. Segundo o crítico, na “obra de Cícero – sertanejo que conseguiu comprar uma pequena reserva florestal por preocupações exclusivamente preservacionistas –, as consequências nefastas da dominação sobre a natureza se fazem notar na própria escala dos objetos: quanto maior a intervenção humana menor a força e potência dos seres que resultam dela; ainda que esse aspecto acentue sua grandeza estética”.

Segundo Naves, é notável a importância da obra de Cícero Alves dos Santos, em termos de riqueza artística formal e enquanto expressão cultural, ambas, unidas em seus trabalhos: “A convivência com um ambiente tão ambíguo e dinâmico certamente instigou ainda mais o talento desse sertanejo incomum, que fez da preservação da memória de sua gente a razão de sua existência. Memória não é nostalgia. Por isso, para afirmar toda uma arte com origem num mundo rural que vai desaparecendo, Cícero precisou tornar-se o criador de uma categoria de arte que não existia. Esta”.

_____________

Galeria Estação: Rua Ferreira Araújo, 625 – Pinheiros – São Paulo

Exposição até 20 de dezembro de 2014.

_____________

 

VÉIO – ESCULTURAS

Autor: Rodrigo Naves
Editora: WMF Martins Fontes
Preço: R$ 62,30 (200 págs.)

 

 

Send to Kindle

Comentários