Literatura

No século de Luis XIV

2 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
cartaz do polonês Julian Palka, 1955.

cartaz do polonês Julian Palka, 1955.

E. T. A. Hoffmann (1776-1822) é o mais expressivo escritor romântico alemão. Conhecido sobretudo pelo caráter fantástico de sua literatura, com A senhorita de Scudéri, inaugurou a novela policial como gênero na literatura alemã.

O texto foi publicado originalmente como uma obra autônoma, em 1820, e mais tarde foi agrupado na reunião de textos de Hoffmann, organizada em quatro volumes, intitulada Os irmãos Serapião. Os volumes tem como fio condutor uma narrativa que, como o Decameron de Boccaccio, gira em torno de um punhado de amigos, que se encontram no dia de São Serapião e, interessados todos por questões artísticas, contam histórias uns aos outros e as comentam em seguida. A história da “senhorita de Scuderi” é contada por Sylvester, que diz ter se aproveitado da Crônica da cidade de Nuremberg [Chronik der Stadt Nürnberg], de Johann Christoph Wagenseil, para caracterizar sua personagem-título.

A tal senhorita é uma famosa escritora, com 73 anos e incontáveis obras, que é levada a investigar uma série de crimes, na Paris dos anos de 1680. Os crimes tem em comum vitimarem sempre homens da nobreza ao levarem joias de presente a suas amantes – todos mortos com uma punhalada e encontrados sem as joias,

Entre histórias paralelas, aposentos de castelos, perucas, envenenamentos, mortes nos becos da violentíssima cidade, Hoffmann cria um panorama misterioso e realista. O retrato vivo desta Paris tomada por crimes é um dos méritos da escrita do autor e dá ao texto também um forte caráter satírico.

A crítica literária Maria Aparecida Barbosa, em artigo publicado na revista de cultura Agulha, contextualiza: “Hoffmann situa a história no ano de 1680, na Paris de Luís XIV. Ele retirou vários nomes de personagens do livro Siècle de Louis XIV (1751), de Voltaire. Cardillac, o ourives, era no livro francês o nome do governador do Castelo Trompette, citado an passant. Hoffmann menciona também como fonte de inspiração um episódio criminoso envolvendo um sapateiro de Veneza, que ao roubar suas vítimas, as apunhalava no coração. No conto “Mademoiselle de Scúdery”, cortesões e nobres que compram jóias valiosas confeccionadas pelo Mestre René Cardillac, o mais famoso joalheiro do seu tempo (como o sapateiro veneziano, também um artesão), são regularmente roubados e assassinados quando, à noite, encaminham-se às casas de suas amantes. Apesar das tentativas de prender os culpados, os ladrões de jóias continuam à solta e perpetuam seus crimes. Os nobres cavaleiros da corte dirigem então uma carta ao rei, em que solicitam medidas de segurança mais rígidas, a fim de que possam sem cautelas render visitas às suas amadas no meio da madrugada. Sobre essa carta, o rei pede a opinião da senhorita de Scudéry, uma velha dama muito querida na corte pelos seus ‘encantadores versos e romances’”. Para Barbosa, “Hoffmann criou o clima de crueldade, a partir de alguns elementos peculiares à Literatura Gótica, bastante bem-sucedida na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, que se voltava para temas como a luta entre o bem e o mal, o lado claro e o escuro da alma humana, assim como a sensualidade e o desenvolvimento espiritual”.

Como conta Karin Volubuef, na introdução ao livro O pequeno Zacarias chamado Cinábrio [Hedra, 2009]: “Nascido em Königsberg (atual Kalinigrado), Hoffmann curvou-se à tradição familiar e estudou direito, dedicando-se à carreira jurídica entre 1795 e 1806, ano em que perdeu seu cargo em decorrência da invasão das tropas de Napoleão. Teve início então uma série de dificuldades financeiras (que durou até seu retorno ao serviço público, em 1814), que lhe ofereceu, em contrapartida, a chance de dedicar-se ao seu desenvolvimento artístico. Nessa época, ele se aprimorou como músico, descobriu seu talento literário, foi diretor do teatro de Bamberg, compositor (inclusive de uma ópera, Undine, concluída em 1816), desenhista, pintor, maestro e crítico musical, sendo mesmo considerado o inventor da crítica musical moderna”. Segundo Volubuef, a obra literária de Hoffmann “reflete sua versatilidade, reunindo textos em prosa sobre temáticas muito variadas. Assim, por exemplo, destacam-se diversas obras que giram em torno da música, dentre as quais podemos citar O cavaleiro Gluck, Don Juan, Notícias acerca das mais recentes aventuras do cachorro Berganza, entre outras. Várias dessas obras de inspiração musical contam com a participação de um personagem que se tornou famoso no ambiente cultural da época: o maestro Johannes Kreisler (inspirador das famosas Kreislerianas de Schumann). Nele, Hoffmann criou uma figura exemplar, com todas as características do musico temperamental, dedicado exclusivamente à sua arte e alheio aos aspectos práticos da vida – o que contribuiu para a imagem do artista romântico exacerbado, mito que Paganini personificou com perfeição”. Volubuef pontua ainda que “outra faceta de sua obra é constituída pelos seus ‘contos de horror’, povoados de motivos como o autômato, o sócia (‘Doppelgänger’), a loucura ou o pesadelo”. Entre as obras de caráter mais realista, sobressai-se A senhorita de Scudéri, sobre o qual Volubuef pontua: “muito embora neste conto ainda esteja ausente a indispensável figura do detetive, Hoffmann antecipa diversos elementos e situações que mais tarde integrarão o repertório clássico da história policial: diversos suspeitos são ouvidos repetidamente a fim de se encontrar pistas, emprega-se tanto a análise objetiva dos acontecimentos como a intuição na tentativa de solucionar o crime etc”.

O livro foi organizado e traduzido pelo professor Marcelo Backes, que é também responsável por um glossário, incluído ao volume, bom como pelo posfácio, no qual conta: “Hoffmann não titubeava em transformar as causas jurídicas com que lidava em material satírico e fantástico para sua ficção e chegou a ser perseguido pelo Estado por causa disso”. Segundo Backes, apesar “de ser narrativamente mais simples, A Senhorita de Scuderi alcança um escopo de profundidade típico do autor, em que se discute as relações entre arte e crime, a arte para o artista e a arte para seu público, e o encanto do artista diante de sua obra”.

 

_____________

“[…] a luz logo sumiu. Colei-me à estátua, no fundo do nicho, mas eu recuei, horrorizado, ao sentir uma pressão contrária, como se a estátua tivesse adquirido vida. No clarão enevoado da noite, vi então que o pedestal girava lentamente e que por trás da imagem, uma figura sombria saía e avançava com cautela para a rua. Involuntariamente, como que impelido por uma força interior, esgueirei-me atrás daquele homem. Ao chegar exatamente em frente à imagem de Nossa Senhora, ele perscrutou a rua, e quando o brilho da luz clara que sempre queima ante essa Madona incidiu-lhe sobre o rosto, eu o reconheci: era Cardillac!

Um medo indescritível, um arrepio estranho me percorreu. Como que cativo de um encantamento, precisei ir atrás do fantasmagórico sonâmbulo. Pois era como eu julgava meu mestre, apesar de não estarmos em tempo de lua cheia, cuja aparição perturba os adormecidos susceptíveis a esse mal. Enfim Cardillac desapareceu nas sombras”.

_____________

 

scuderi

 

 

A SENHORITA DE SCUDERI

Autor: E. T. A. Hoffmann
Editora: Civilização Brasileira
Preço: R$ 35,00 (144 págs.)

 

 

 

 

Send to Kindle

Comentários