“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão”.
(Rousseau, na tradução brasileira de Lourival Gomes Machado).
O pensamento de Rousseau abre um abismo entre o ser e o dever ser, onde o dever ser aparece como uma exigência de realização. É assim que Olgária Matos define o Segundo Discurso – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens – como uma “arqueologia da desigualdade”, termo também utilizado por Bento Prado Jr., em “Rousseau: filosofia política e revolução”.
Pode-se falar, dentre as obras de Rousseau, de uma trilogia da corrupção, três obras em que articula-se o argumento crítico do problema da desigualdade entre os homens: o Discurso sobre as ciências e as artes, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e o Ensaio sobre a origem das línguas. No Segundo Discurso, traçando o que Olgária Matos definiu como “arqueologia da desigualdade”, Rousseau problematiza o progresso da desigualdade entre os homens, reconstruindo uma suposta história humana, analisando comparativamente um estado primeiro de natureza, em relação ao homem em sociedade. Uma articulação entre história e antropologia, que lhe permite afirmar que havia igualdade no estado natural do homem, que foi substituída por uma desigualdade artificial, construída pela própria humanidade, com a criação da sociedade, corruptiva e avessa à liberdade.
Nas palavras de Maria das Graças Souza, no ensaio “História e declínio”, “O Discurso sobre a origem da desigualdade retoma, de forma mais sistemática, e acrescentando novos elementos, o tema da história do homem como movimento de degeneração e enfraquecimento. Neste processo, são os graus da desigualdade que assinalam os momentos críticos que acabaram por transformar completamente a alma humana e por viciar na origem as suas instituições. A instituição da propriedade foi o primeiro passo da desigualdade, estabelecendo a diferença entre ricos e pobres. O segundo passo foi dado na instituição dos governos […]. Por último, a transformação do governo legítimo em arbitrário completa a trajetória do mal na história, numa ordem que, do ponto de vista de Rousseau, deve ser considerada como necessária. Portanto, a transição do homem, de seu estado de natureza ao estado civil, é o resultado de uma perversão crescente cuja causa inicial é o estabelecimento da propriedade privada. A própria moral natural, torna-se assim insuficiente e é substituída por normas que, nascidas das instituições políticas, constituem um meio de legitimação da desigualdade.
Olgária Matos, analisando o trabalho investigativo de Rousseau como uma arqueologia da corrupção humana, aponta a oposição entre natureza e cultura para o filósofo como um paradoxo: a passagem do estado de natureza à sociedade é um rompimento definitivo, cujos efeitos são traumáticos para o homem. Segundo Olgária, “O homem natural é uma totalidade, é o “inteiro absoluto”, a unidade com relação a si mesmo, e só pode ser reportado a si mesmo ou a seu semelhante; o homem social é somente uma “unidade fracionária”, que só tem sentido relacionado a um denominador comum e cujo valor encontra-se em sua relação ao inteiro que é o corpo social”. Assim, a “arqueologia da desigualdade” encontra-se com a genealogia da corrupção, já que esta é causa da degeneração do homem. Mesmo a linguagem é também fruto da corrupção, da decadência humana em relação ao seu estado de natureza. A sociedade nasce no seio da corrupção e desenvolve-se à guisa dessa mesma corrupção.
ROUSSEAU – UMA ARQUEOLOGIA DA DESIGUALDADE
Autor: Olgária C. F. Matos
Editora: MG Editores Associados
Preço: R$ 50,00 (123 págs.)