Literatura

Por entre minúcias

27 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone
garvura de Evandro Carlos Jardim

garvura de Evandro Carlos Jardim

Uma parte interessante dos méritos da literatura de Beatriz Bracher repousa no cuidado com os detalhes. No romance Antonio, a narrativa é tecida dos encontros de minúcias. A mesma história é contada por diferentes personagens ao protagonista, pontuada, assim, pelas nuances narrativas, desdobrada ao longo da coerência das personalidades das personagens, através de suas maneira de ver e contar suas versões. Detalhes de trejeitos de fala, de tempo de raciocínio. As personagens ganham realidade através da construção de seus raciocínios, numa narrativa polifônica, pontuada como que por tensões musicais.

Benjamim, o protagonista, na iminência de ser pai, descobre um segredo familiar e resolve inquerir os envolvidos, para saber como foi que tudo aconteceu. Três deles, sua avó, Isabel, Haroldo, amigo de seu avô, e Raul, amigo de seu pai, contam-lhe, então, suas versões dos fatos. Unindo estes fragmentos de memórias alheias, Benjamin reconstitui a história de sua família. 

Reconstituição da vida, no seu tempo de desenvolvimento mais caseiro e cotidiano – um tempo que talvez esteja em vias de extinção?

Beatriz Bracher articula de maneira singular o geral e o particular, o individual e o histórico, criando personagens vivos, claramente identificáveis em seu contexto social. Segundo Rodrigo Lacerda, Antonio coloca o protagonista e seus leitores “curiosamente, na mesma condição: a de ouvintes emocionados”. 

Em entrevista, a escritora disse sentir um compromisso com a verdade quando escreve para publicar, e é exatamente isso que ela consegue transmitir. Suas personagens são ironicamente reais e transmitem sua veracidade ao texto como um todo.

O crítico Vinícius Jatobá, em resenha escrita para o jornal O Estado de São Paulo, contextualiza Antonio em relação às publicações anteriores de Bracher, traçando uma análise panorâmica de seu trabalho literário até então: “Sem abrir mão de uma tensa pesquisa formal, Bracher reclama à literatura uma nobreza ética abolida (ou ignorada) pela nova geração – é uma literatura clara e eminentemente política. Azul e Dura é um romance de força e beleza extraordinárias, um nó complicado onde a narradora, Mariana, coloca-se entre o crime e o castigo, a um passo da complicação moral definitiva ao sonhar com um assassinato bem intencionado. Todo feito de notas, com os jogos técnicos de versão contra revisão tão definidores do romance seguinte ainda algo embrionários, Azul e Dura é também uma reflexão sobre a construção da memória e do poder do relato. O romance posterior de Bracher, o rico Não Falei, retoma a reflexão sobre os limites da ética e moralidade. Gustavo, o protagonista, novamente diante de fragmentos e notas, decide expiar sua culpa a partir de um relato onde ele se defende de uma acusação que lhe autopune e constrange: de que foi responsável pela morte, durante a ditadura, de um familiar. Versão contra revisão, escrita que vai transformando a si mesmo, que se pensa, esses dois romances anteriores são fantasmagorias do rumor do corpo, enfrentamentos ao reverso e anverso do pavor e medo e culpa que habita o rosto além da máscara. Sem abandonar uma pesquisa estética abertamente pessoal, Bracher enfrenta o nó de uma situação incômoda e legalmente anistiada, mas ainda não cicatrizada; e que ainda gera a dor rumorosa da culpa, e precisa ser recordada para que não se repita”. Sobre Antonio, o crítico pontua que foi “a entrada de Bracher no território propriamente dito do romance: o prosaísmo”. A narrativa, ao contrário dos livros anteriores, “enfrenta uma nova realidade textual e imaginativa”. Para Jatobá, contudo, a prosa da autora foi demasiado tímida, “há uma palidez persuasiva nas vozes das personagens, e uma crescente angústia diante de certos vocabulários e ritmos que são próprios da escrita. O humor verbal, o sal da terra, o suor da fala estão demitidos diante de uma angústia tão sem fim que se banaliza pela ausência de pausas em seu assédio. O material de Bracher é o futuro, e esse novo mundo incerto parece instabilizar não apenas Benjamin, o instigador e inquiridor, como também o próprio estilo da autora e a coerência de seu projeto narrativo”.

Em entrevista concedida ao jornal Rascunho, a escritora mostra a sensibilidade intelectual que a torna um dos mais proeminentes nomes da literatura nacional; ela fala, sobre a tarefa literária: “No nono e último círculo do Inferno, da Divina Comédia, estão os traidores de seus hóspedes. Dante conta que eles estão perpetuamente imersos no gelo apenas com a cabeça de fora e os rostos voltados para cima, impedidos de continuarem a chorar, pois as lágrimas do “primeiro pranto, qual viseira de cristal”, congelam-se depois de inundar “do olho a cava inteira”. Fiquei pensando se a literatura também não é a possibilidade de abaixar o rosto e chorar de olhos fechados. Desprender-se de uma só dor e poder chorar, inclusive, a dor de muitos outros”.

Antonio, terceiro livro publicado por Beatriz Bracher, foi vencedor do 2º lugar do Portugal Telecom 2008 e do 3º lugar do 50º Prêmio Jabuti.

A autora tem, publicados, os romances Azul e dura [2002, 7Letras], Não falei [2004, Editora 34] e Antonio [2007, Editora 34] e os volumes de contos Meu Amor [2009, Editora 34] e Garimpo [2013, Editora 34].

 

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Trecho:

Os homens, você sabe, Benjamim, os homens gostam de inventar histórias e fantasiam muito. Na época em que Xavier se apaixonou por Elenir, eu não o conhecia bem. Freqüentávamos os mesmos ambientes, as famílias se conheciam, mas era só isso. O mundo era menor, ele chamava atenção, talvez eu também, como te disse o Haroldo, mas não creio. Talvez eles reparassem em mim porque, sendo uma moça de boa família, eu fazia faculdade. Em geral só seguiam nos estudos as moças que precisavam trabalhar, isso não era esperado de nós.

Esses dias de hospital. Este quarto verde. É confuso estar parada. Nunca tinha acontecido, nem depois da aposentadoria. Continuei com orientandos, continuei escrevendo e participando de bancas e discussões. Sempre muito o que fazer. Não sou de ficar doente, depois dos partos, no segundo dia já estava de pé, subindo e descendo escada. Muitos dias falando pouco, as memórias vêm de longe, de bem antes dos filhos e, você tenha um pouco de paciência, Benjamim, quero te contar.

Lembro que no meu tempo não era muito bem, no sentido mais besta da palavra, ser estudiosa, buscar estudos, nem para os rapazes, nem para as moças. Era comum a rapaziadinha que não pensava muito em fazer faculdade, ou que fazia meio de qualquer jeito. Quando eu vejo hoje em dia o teu empenho em estudar, batalhar, conseguir uma bolsa e ir para os Estados Unidos fazer mestrado, especialização, esforçar-se para ser um bom profissional, é uma coisa nova. Isso não existiu muito na minha geração, porque eram todos filhos de gentes que tinham ou fazenda, ou banco, ou indústria. Das minhas colegas poucas foram para o Sedes, que era uma faculdade muito boa, onde a minha mãe se formou, foi da primeira turma, e, naquele tempo, era só para moças. A maioria ia fazer Lareira, era um curso, a gente brincava, de espera marido. Elas aprendiam a cuidar da casa, tinham umas aulas de educação sexual pouco claras, por aí ia. As mais chiques, e eram raras, iam fazer Finishing School na Inglaterra ou na Suíça. Eram escolas de acabamento, onde se aprendia a polidez.

A minha diferença foi ter ido para a USP, isso era uma coisa nova. Papai, teu bisavô, era oftalmologista, professor da faculdade, conhecia o dr. Emanuel Kremz de lá, não éramos uma família rica, mas éramos de “boa família” e era isso o que importava. Outro dia eu revi o Great Gatsby na televisão e fiquei pensando nessa diferença. Aquela classe alta norte-americana pós-Primeira Guerra tinha algo de muito selvagem, em muitos sentidos. A sede de diversão, a vaidade e a ostentação. A moça fala “moças ricas não se casam com garotos pobres”, como se esse fosse um pensamento comum. Jamais diríamos isso aqui. Não falávamos de dinheiro, víamos, sabíamos, mas não era assunto. A diferença estava em outra parte.

Agora, lá em casa, papai não tinha a menor dúvida de que eu tinha que fazer a faculdade. Isso era uma coisa rara no nosso meio. Mesmo se eu não fosse filha única, sei que ele pensaria da mesma forma, não tinha a ver só com a educação da filha, era uma visão de mundo diferente. Ele dizia, “eu não vou deixar dinheiro para você, mas vou deixar uma boa educação”.

Eu gostava de estudar, queria fazer Filosofia, e papai disse que eu podia fazer no Sedes, jamais na USP, se não eu ia perder a minha fé. Eu queria estudar na USP e, diante disso, eu resolvi fazer Letras Clássicas, foi uma ótima opção. Eu estudava muito, gostava demais da faculdade, foi um mundo absolutamente novo para mim, porque eu tinha entrado com sete anos no colégio, estava com dezessete, quando entrei na faculdade, e muito assustada, porque papai dizia: “só tem uma coisa, você vai fazer exame para a USP, trate de estudar muito porque vem de um colégio particular e vai competir com gente de colégio de Estado que é muito forte”. Para você ver a mudança absoluta. Agora, de fato, ele não tinha tanta razão, porque como eu tinha tido a oportunidade de estudar bem inglês e francês, entrei em primeiro lugar e fiz muito bem a faculdade. A verdade é que a educação das freiras do Des Oiseaux também era muito boa.

A faculdade foi um ponto de transição importante, todo o ambiente era estimulante, o prédio novo –fui das primeiras turmas da Maria Antonia–, os professores estrangeiros, colegas de outras cidades, de outros meios. A guerra terminara fazia dois anos, os fascistas tinham sido banidos da face da terra, vivíamos em um mundo livre e próspero, necessitado de braços e mentes para ensinar e construir. Há muitas diferenças para a faculdade que meus filhos fizeram e mais ainda para a que você fez. Acho que uma coisa importante, além da transformação do papel da faculdade no tempo, mudança de espaço, a guetização dos departamentos, além disso tudo, havia para nós, no final dos anos quarenta, a diferença do colégio para a universidade. Era uma diferença brutal. Eu vinha de colégio de freiras, nunca havia estudado em uma classe mista e o próprio ensino era muito diverso. A mim pareceu que tinha vivido fechada em um casulo até então, foi um sentimento de liberdade.

Tentei reencontrar esse sentimento quando voltei a estudar, em meados dos anos sessenta, mas, então, a confusão era grande e, cada vez mais, o prazer nos estudos ficou menos coletivo e mais solitário. Em 77, 78, quando Teodoro resolveu viajar, muitos professores estavam ainda exilados, o ambiente era de desmonte e frustração, ressentimento também, sabia que ele não estaria perdendo grande coisa. Talvez por isso considerei o caminho de Teodoro mais corajoso que o dos irmãos.

Esses meninos passaram pelo golpe e a ditadura ainda crianças, imagino que o medo disseminado no país tenha tido algum efeito neles. Sei disso porque vivi a guerra em criança. Havia sempre o perigo dos submarinos alemães, os blackouts que precisávamos fazer como treino. Meu pai ouvindo no rádio as notícias das movimentações das tropas. Apesar de tão longe, sentia a iminência da violência e isso de alguma maneira nos marcou. Na nossa época o bem venceu de forma que nos parecia inequívoca e o mesmo não aconteceu com o sentimento difuso de medo e ameaça que a geração do teu pai viveu. Nós não tínhamos dúvida do nosso papel no mundo, ele havia sido destruído, precisava ser refeito. O espaço de ação que teus tios e teu pai encontraram foi outro.

 

[Trecho divulgado pelo caderno Ilustrada, do jornal Folha de São Paulo, em maio de 2007]

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antonio

 

 

ANTONIO

Autor: Beatriz Bracher
Editora: 34
Preço: R$ 24,50 (192 págs.)

 

 

 

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