“Precariado” é um termo criado nos anos 1980, pela justaposição do substantivo “proletariado” ao adjetivo “precário”, para designar uma classe social emergente, composta por um número significativamente crescente de pessoas que levam uma vida de trabalho insegura, dependentes de empregos efêmeros, instáveis, flexíveis.
O precariado, assim, indica o proletariado precarizado. Trata-se do setor submetido à espoliação dos direitos sociais: previdenciários, benefícios trabalhistas, representação sindical. De acordo com Guy Standing, economista inglês responsável pela maior difusão do conceito, conforme disse em entrevista concedida à revista Carta Capital, em 2015: “A falta de segurança no trabalho sempre existiu. Isso não é o que define o precariado. Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas. Mas, de forma ainda mais significativa, os trabalhadores do precariado não possuem qualquer identidade ocupacional ou uma narrativa de desenvolvimento profissional para suas vidas. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariado está sujeito à exploração e diversas formas de opressão por estarem fora do mercado de trabalho formalmente remunerado. Ainda assim, o que distingue o precariado é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Eles não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam. Estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, pois são dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detém poder econômico”.
A distinção categorial de precariado é sobretudo relevante no plano heurístico: capaz de expor as novas contradições da ordem burguesa hipertardia, circunscrita à própria dinâmica do modo de produção capitalista na etapa de crise estrutural do capital.
Em tempos de nítida e crescente precarização de direitos trabalhistas, crise econômica e silêncio nas ruas, no Brasil, a nova legislação e a continuidade da terceirização e da subcontratação pelas empresas devem acelerar o processo de precarização do trabalho, piorar a desigualdade dentro do mercado de trabalho e intensificar a insegurança social e econômica.
“A Economia do Compartilhamento é um movimento: um movimento pela desregulação”, analisa Tom Slee, autor de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, recém-lançado pela Editora Elefante, com tradução de João Peres e prefácio de Ricardo Abramovay, professor de Economia da USP. Segundo Slee: “Grandes instituições financeiras e fundos influentes de capital de risco estão vislumbrando uma oportunidade para desafiar as regras formuladas pelos governos municipais democráticos ao redor do mundo. E para remodelar as cidades de acordo com seus interesses. Não se trata de construir uma alternativa à economia de mercado dirigida por corporações. Trata-se de expandir o livre mercado para novas áreas de nossas vidas”.
O autor, britânico que vive no Canadá, com pós-doutorados em Oxford e Waterloo, trabalha na indústria de software e diz que o impulso para compor o livro deu-se quando percebeu a apropriação de bandeiras de igualdade social pelos criadores da Economia do Compartilhamento – a saber, grupo empresarial do Vale do Silício, cuja fundação econômica baseia-se na especulação do mercado financeiro e que, sob o instigante slogan “o que é meu é seu”, patrocinaram o desenvolvimento de aplicativos e programas, graças aos quais todos poderíamos desfrutar o privilégio de dividir em lugar de possuir. Os aplicativos, segundo o discurso da Economia do Compartilhamento, “nos abririam” a possibilidade de estar em contato uns com os outros, com a segurança da mediação garantida por uma tecnologia infalível, literalmente, na palma da mão.
Slee desmonta o suposto discurso altruísta destes modelos de negócios – dentre os quais, atualmente, os mais notórios são Uber e Airbnb. Para o autor, nós compartilhamos nossas forças de trabalho, nossos dados, nosso tempo, nosso dinheiro e, em troca, recebemos até agora muito pouco, quase nada, ao passo que CEOs amealham bilhões de dólares, armam exércitos de lobistas e influenciam governos mundo afora: “O que havia começado como um apelo ao comunitário, a conexões interpessoais, a sustentabilidade, a compartilhamento, tornou-se o playground de bilionários, de Wall Street e de capitalistas de risco, expandindo seus valores de livre mercado cada vez mais fundo em nossas vidas”.
A precarização do trabalho que veicula-se através aplicativos desenvolvidos pelos grandes grupos empresariais estadunidenses ganha ares de uma perversidade diferente, graças ao discurso oportunista em que se encora, baseado em oferecimento de “oportunidade” e “parceria”, que na prática significam a transferência de riscos e gastos para o trabalhador, por parte do contratante, que garante para si mesmo maior liquidez em seu lucro, isento de qualquer responsabilidade socioambiental. Segundo Slee: “A promessa de um caminho mais humano para o mundo corporativo é, pelo contrário, uma forma mais agressiva de capitalismo: desregulação, novas formas de consumismo e um novo mundo de trabalho precário”.
Segundo Ricardo Abramovay, no prefácio à edição brasileira de Uberização, este livro “é uma importante denúncia contra o cinismo dos que se apresentam ao grande público como promotores da cooperação social e do uso parcimonioso dos recursos, mas que na verdade estão entre os mais importantes vetores da concentração de renda, da desregulamentação generalizada e da perda de autonomia dos indivíduos e das comunidades no mundo atual”. A explosão da cultura digital ocorrida ao longo do século XXI, diz o economista, “revigorou os mais importantes ideais emancipatórios, combalidos pela queda do muro de Berlim”; porém, não tardou para que ficasse claro “que esta narrativa edificante subestimava a mais importante transformação do capitalismo do Século XXI: a emergência da empresa-plataforma. […] O livro de Tom Slee tem o mérito de desmistificar a aura de esperança com que a sharing economy foi encarada em seus primórdios”. Sle mostra, segundo Abramovay, que “sob a retórica do compartilhamento escondem-se a acumulação de fortunas impressionantes, a erosão de muitas comunidades, a precarização do trabalho e o consumismo”.
Em A rebeldia do precariado – Trabalho e neoliberalismo no sul global, Ruy Braga, professor do Departamento de Ciências Sociais da USP, fundamenta etnograficamente a crise da globalização neoliberal iniciada em 2008, traçando uma relação de comparação entre três países, Portugal, África do Sul e Brasil. Braga analisa as resistências populares às políticas de espoliação social que acompanham a difusão do neoliberalismo e da precarização do trabalho na semiperiferia do sistema. Sua etnografia da condição proletária recorre ao arcabouço teórico marxista, o que permite ao autor interpretar tanto os avanços da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro, quanto as novas formas de insurgência contra a espoliação protagonizadas pelo precariado urbano.
Em entrevista à revista Carta Capital, Braga afirma que quem compõe o precariado do Sul global são, basicamente, os “setores das classes trabalhadoras e das classes médias em vias de proletarização localizados em sociedades semiperiféricas, que oscilam entre o aprofundamento da exploração econômica e a ameaça da exclusão social e que, portanto, são mais diretamente atingidos pelo recrudescimento da mercantilização do trabalho, das terras urbanas e do dinheiro que acompanhou a crise da globalização após 2008”. O autor comenta também o sindicalismo, por ele tratado com grande ênfase em A rebeldia do precariado, comparando-o nos três países: “Nos últimos dez anos, o sindicalismo português renovou-se em diálogo com as demandas dos jovens, das mulheres e dos trabalhadores precários, além de liderar um histórico ciclo de greves gerais contra as políticas de austeridade impostas pela Troika em acordo com o antigo governo de Passos Coelho. Os sindicatos sul-africanos, refiro-me ao Cosatu, sobretudo, sempre mantiveram seu apoio ao governo do Congresso Nacional Africano (ANC), mesmo quando o ANC decidiu implementar políticas privatizantes e neoliberais. Como resultado, tivemos a participação ativa do sindicato dos mineiros, o NUM, no massacre de Marikana em agosto de 2012, a expulsão do sindicato dos metalúrgicos, o NUMSA, e o aumento da tensão no sindicalismo de base com a criação de novos sindicatos, como o dos carteiros de Johanesburgo, por exemplo. Eu diria que o sindicalismo brasileiro tem oscilado de uma ‘posição sul-africana’ de apoio a governos genericamente neoliberais para uma ‘posição portuguesa’ de maior abertura aos trabalhadores precários e oposição aberta a um governo austericida por meio, inclusive, do recurso à greve geral. Nos três países analisados no livro, Portugal, Brasil e África do Sul, procurei destacar que a auto-organização política dos trabalhadores precários, sobretudo, os mais jovens, foi um fator de dinamização do movimento sindical tradicional”.
Guilherme Boulos, no texto de orelha do livro, afirma ser “fato inquestionável que o precariado tem feito um bom barulho ultimamente, especialmente no que Ruy Braga chamou de ‘Sul global’. Dos piqueteiros na Argentina aos sem-teto no Brasil e chegando à ‘juventude sem futuro’ do 15M espanhol, importantes lutas sociais e deslocamentos de eixos foram protagonizados pelo precariado global. Da fábrica ao território, do enfrentamento aos patrões ao enfrentamento ao Estado.
“Evidentemente, não se trata de uma substituição. Os conflitos em torno do trabalho, assim como a organização sindical, permanecem fundamentais na luta de classes. Mas a dinâmica do precariado fez surgir resistências de novo tipo que carregam uma nova gramática e um potencial de rebeldia que tem deixado marcas indeléveis no mundo contemporâneo”.
Na entrevista supracitada, Ruy Braga afirma que “a lógica das políticas socioeconômicas impostas pelo governo ilegítimo de Michel Temer só é compreensível a partir do jogo de forças necessário à ampliação do precariado urbano, pois são orientadas pelos ataques à proteção trabalhista e previdenciária que afastam os trabalhadores dos direitos sociais”. Segundo o autor, “o golpe trabalhista imposto ao país pelo governo ilegítimo de Michel Temer é um exemplo clássico daquilo que David Harvey, nas trilhas teóricas de Rosa Luxemburgo, chamou apropriadamente de ‘acumulação por espoliação’. Ou seja, tendo em vista a crise econômica, governos e empresas buscam restaurar a acumulação capitalista por meio da mercantilização de direitos sociais. Quando você desmonta a proteção trabalhista você comprime o valor da força de trabalho, barateando os custos das empresas, inclusive aqueles custos rescisórios assegurados pela CLT. Vale observar que o conceito de acumulação por espoliação não se restringe à proteção do trabalho, abarcando a mercantilização das terras, da natureza e do dinheiro. Taxas de juros exorbitantes que sequestram a renda dos trabalhadores e a entrega de áreas de proteção ambiental para a exploração da indústria de mineração também são bons exemplos de acumulação por espoliação”.
Ruy Braga é autor também de A política do precariado [2012, Boitempo].
Guy Standing, professor de Desenvolvimento na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres, em O Precariado. A Nova Classe Perigosa, apresenta as características do “precariado”, a partir de uma sólida reflexão política e socioeconômica, para compreender a nova ordem social global e suas respostas aos anseios dos indivíduos dessa nova classe, que não possuem garantias trabalhistas ou previdenciárias, não possuem empregos permanentes, são submetidos a rendimentos incertos e muitas vezes nem sequer sabem que integram a classe dos precariados. Aqueles que estão no precariado carecem de autoestima e dignidade social em seu trabalho graças à efemeridade de seus empregos, mecanicidade de seus trabalhos e ausência de uma identidade coletiva fundada no mundo de trabalho. O resultado é uma crescente massa de pessoas – em potencial, todos nós que estamos fora da elite – em situações alienadas e anômicas, mas também ansiosas e propensas à raiva.
No texto “O precariado e a luta de classes”, publicada pela Revista Crítica de Ciências Sociais, com tradução de João Paulo Moreira, Guy Standing ressalva que “alguns comentaristas reagiram ao conceito argumentando que a precariedade é uma condição social. É-o de facto, mas uma condição social não age, falta‑lhe a capacidade de ação humana. O precariado é uma classe-em-construção. Podemos precisar melhor a sua definição. Contudo, e como adiante veremos, ele possui uma caraterística ímpar que vai fazer com que seja uma peça charneira na fase de reimplantação da Transformação Global e nas lutas que terão de ter lugar para que esta seja alcançada”. Para o autor, “o precariado tem relações de produção bem definidas e este tem sido o aspecto mais acentuado pela maioria dos comentadores, apesar de não ser, efetivamente, o mais determinante para a sua compreensão. O trabalho desempenhado pelo precariado é, de sua natureza, frágil e instável, andando associado à casualização, à informalização, às agências de emprego, ao regime de tempo parcial, ao falso autoemprego e a esse novo fenômeno de massas chamado crowd-sourcing”. Neste processo, analisa Standing, “o precariado se vê obrigado a desempenhar uma proporção elevada e em crescimento de trabalho‑para‑trabalhar relativamente ao trabalho propriamente dito. Assim, ele acaba por se ver tão explorado fora do local de trabalho e do período laboral remunerado como quando se encontra no emprego dentro do horário normal. Esse é um fator que distingue o precariado do velho proletariado”. Outra peculiaridade do precariado é que “o capital global e o Estado que lhe defende os interesses têm necessidade de um precariado grande, razão pela qual este é uma classe‑em‑construção a não uma subclasse”. Segundo Standing, “esta é a primeira vez na história em que o Estado retira sistematicamente direitos aos seus próprios cidadãos. Há cada vez mais pessoas – e não apenas migrantes – a ser transformadas em ‘denegadas’, limitadas no alcance e no aprofundamento dos respetivos direitos cívicos, culturais, sociais, políticos e económicos. É‑lhes, cada vez mais, negado aquilo a que Hannah Arendt chamou ‘o direito a ter direitos’”.
Há, para o autor, três tipos de precariado. Ainda no mesmo artigo, ele diz que o primeiro, “é constituído por aqueles que acabam por se ver afastados das velhas comunidades e famílias da classe trabalhadora; na sua maioria sem instrução, são propensos a associar o seu sentimento de privação e frustração a um passado perdido, seja ele real ou imaginado. Por isso tendem a dar ouvidos às vozes populistas e reacionárias da extrema‑direita, culpando o segundo e até mesmo o terceiro tipos de precariado pelos problemas com que se defrontam. São os atávicos, um grupo que tende a deixar‑se atrair pelo carisma”. O segundo tipo é constituído “pelos migrantes e pelas minorias, que, por não terem presente nem um sítio a que chamem seu, vivem imbuídos de um forte sentimento de privação relativa. Damos‑lhes a designação de nostálgicos. Politicamente tendem a ser relativamente passivos ou desprendidos, com exceção de um ou outro dia de raiva, em que alguma coisa que se lhes apresenta como uma ameaça direta acaba por fazer incendiar a fúria coletiva”. Finalmente, o terceiro tipo “é formado pelos instruídos, que, por força do trabalho inconstante e da falta de oportunidade para impor uma narrativa às suas vidas, experimentam um sentimento de privação relativa e de frustração quanto ao respectivo status, uma vez que lhes falta um sentido de futuro. Vamos designá‑los por boémios. No entanto, porque se trata da parte potencialmente transformadora do precariado, que o mesmo é dizer da nova vanguarda, abre‑se a possibilidade de serem apelidados de progressistas”. Os três tipos, aponta o autor, “de um modo geral, rejeitam as agendas políticas dominantes do século XX”. O “aspecto-chave” a considerar, pontua, “é que existe no seio do precariado, sob várias formas, terreno comum para uma rejeição do velho consenso político e dos partidos do centro-direita e centro-esquerda. Daí a perceção de que se assiste a uma crise da democracia, pois o precariado não se sente representado e recusa entregar‑se a uma realidade política mercadorizada e em plena perda”. O precariado, a classe mais baixa e mais ativa, segundo Standing, “se quiser ter a força que é necessária para, pela via da afirmação, se abolir a si próprio, o precariado terá de se tornar uma classe-para-si – ou então, uma parte suficiente dos seus membros terá de atingir um suficiente patamar de comunalidade. Isto faz dele uma classe verdadeiramente transformadora e, por isso, perigosa. Outras classes da atual distopia neoliberal têm uma natureza utilitária, pretendendo perpetuar-se e obter cada vez mais das estruturas existentes. São conservadoras, ou reacionárias, na medida em que se opõem a mudanças estruturais. Só o precariado está em posição de ser verdadeiramente transformador”. Nesta transformação, ressalta o autor, “a luta pela desmercadorização da educação é crucial se o precariado quiser atingir uma dimensão criativa, artística, subversiva e, em última análise, política e moral”.
Segundo Ruy Braga, conforme escreve no artigo “Precariado e sindicalismo no Sul global”, publicado pela revista Outubro, “um dos mais impactantes livros sobre o mundo do trabalho lançado nas últimas décadas, ele já surgiu com ares de ‘clássico’, por ser capaz de traduzir em dados o espírito de toda uma época”. Propondo-se a dialogar com Standing, Braga aponta que “uma mirada na formação do precariado europeu de uma perspectiva brasileira talvez seja útil para problematizar aquela que constitui a grande contribuição de Standing ao debate público contemporâneo: o alerta sobre a natureza ‘perigosa’, isto é, filofascista, dessa nova classe. De fato, o autor constrói ao longo do livro uma imagem do precariado como uma classe alienada, ansiosa, insegura, infantilizada, oportunista, cínica, passiva e detentora de um estado psíquico nebuloso. Não é de se estranhar, portanto, que, do ponto de vista político, o precariado seja considerado uma presa fácil dos apelos neopopulistas, e potencialmente hostil ao regime democrático”.
É possível analisar a precarização do trabalho a partir da percepção a respeito de uma racionalidade, global e totalizante, em que o controle das subjetividades é eficaz “dentro de um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a ameaça do desemprego está no horizonte de todo assalariado”, como colocam os cientistas sociais Christian Laval e Pierre Dardot, em A nova razão do mundo – Ensaios sobre a sociedade neoliberal. A partir da efetivação do controle das subjetividades, graças à ameaçadora flexibilização do trabalho, é possível a difusão do trabalho precário, à sombra de rótulos como “empreendedorismo”. Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma proposta econômica, mas também uma moral, baseada na apreensão do sofrimento como nova fronteira do “capital humano”. Existe, desta forma, algo que compromete o próprio ser enquanto capital humano, imbuído de um “espírito empresarial”, de modo que a própria existência passa a se comportar como uma empresa – não se trata de ter uma empresa, nem de trabalhar nela, mas de existir sob o mandato de tornar a si mesmo e a própria relação consigo mesmo em capital financeiro.
De acordo com os autores, o “sujeito neoliberal é produzido pelo dispositivo ‘desempenho/gozo’. Inúmeros trabalhos enfatizam o caráter paradoxal da situação subjetiva. Os sociólogos multiplicam os ‘oximoros’ para tentar dizer do que se trata: ‘autonomia controlada’, ‘comprometimento coagido’. No entanto, todas essas expressões pressupõem um sujeito exterior e anterior à relação específica de poder que o constitui precisamente como sujeito governado. […]
O novo sujeito não é mais apenas o do circuito produção/poupança/consumo, típico de um período consumado do capitalismo. O antigo modelo industrial associava –não sem tensão– o ascetismo puritano do trabalho, a satisfação do consumo e a esperança de um gozo tranquilo dos bens acumulados. Os sacrifícios aceitos no trabalho (a ‘desutilidade’) eram comparados com os bens que poderiam ser adquiridos graças à renda (a ‘utilidade’).
Como lembramos antes, Daniel Bell mostrou a tensão cada vez mais forte entre essa tendência ascética e esse hedonismo do consumo, uma tensão que, segundo ele, chegou ao ápice nos anos 1960. Ele entreviu, sem ter ainda condições de observar, a resolução dessa tensão num dispositivo que ia identificar o desempenho ao gozo e cujo princípio é o do ‘excesso’ e da ‘autossuperação’. Não se trata mais de fazer o que se sabe fazer e consumir o que é necessário, numa espécie de equilíbrio entre desutilidade e utilidade. Exige-se do novo sujeito que produza ‘sempre mais’ e goze ‘sempre mais’ e, desse modo, conecte-se diretamente com um ‘mais-de-gozar’ que se tornou sistêmico. A própria vida, em todos os seus aspectos, torna-se objeto dos dispositivos de desempenho e gozo.
Esse é o duplo sentido de um discurso gerencial que faz do bom desempenho um dever e de um discurso publicitário que faz do gozo um imperativo. Ressaltar apenas a tensão entre ambos seria esquecer tudo o que estabelece certa equivalência entre o dever do bom desempenho e o dever do gozo, seria subestimar o imperativo do ‘sempre mais’ que visa a intensificar a eficácia de cada sujeito em todos os domínios: escolar e profissional, mas também relacional, sexual etc. ‘We are the champions’ [Nós somos os campeões] –esse é o hino do novo sujeito empresarial. Da letra da música, que a sua maneira anuncia o novo curso subjetivo, devemos guardar sobretudo esta advertência: ‘No time for losers’ [Não há tempo para perdedores]. A novidade é justamente que o ‘loser’ é o homem comum, aquele que perde por essência.
A máquina econômica, mais do que nunca, não pode funcionar em equilíbrio e, menos ainda, com perda. Ela tem de mirar um ‘além’, um ‘mais’, que Marx identificou como ‘mais-valor’. Até então, essa exigência própria do regime de acumulação do capital não havia desdobrado todos os seus efeitos. Isso aconteceu quando o comprometimento subjetivo foi tal que a procura desse ‘além de si mesmo’ tornou-se a condição de funcionamento tanto dos sujeitos como das empresas. Daí o interesse da identificação do sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extração de um ‘mais-de-gozar’, tirado de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de viver, é que faz funcionar o novo sujeito e o novo sistema de concorrência.
Em última análise, subjetivação ‘contábil’ e subjetivação ‘financeira’ definem uma subjetivação pelo excesso de si em si ou, ainda, pela superação indefinida de si. Consequentemente, aparece uma figura inédita da subjetivação. Não uma ‘trans-subjetivação’, o que implicaria mirar um além de si mesmo que consagraria um rompimento consigo mesmo e uma renúncia de si mesmo. Tampouco uma ‘autossubjetivação’ pela qual se procuraria alcançar uma relação ética consigo mesmo, independentemente de qualquer outra finalidade, de tipo político ou econômico.
De certa forma, trata-se de uma ‘ultrassubjetivação’, cujo objetivo não é um estado último e estável de ‘posse de si’, mas um além de si sempre repelido e, além do mais, constitucionalmente ordenado, em seu próprio regime, segundo a lógica da empresa e, para além, segundo o ‘cosmo’ do mercado mundial.
Dardot e Laval acabam de lançar no Brasil, também pela Boitempo, o livro Comum. Ensaios sobre a revolução no século XXI, no qual dão sequência a reflexões desenvolvidas em A nova razão do mundo, em termos de renovação da crítica social e proposta de alternativa política ao neoliberalismo. Em Comum, os autores pontuam que os discursos neoliberais políticos e sociais “se contradizem, quando não são violentamente desmentidos pelos atos. A inconsequência da mídia e das autoridades políticas, nesse aspecto, é impressionante: consegue-se elogiar a competição pela manhã, deplorar o desemprego e a pobreza à tarde e pedir a liberalização do mercado de trabalho à noite. Mas, por trás dessas contradições e dessa inconsequência, que petrificam o espírito enquanto liquefazem a vontade, existe uma racionalidade, uma nova razão do mundo’ […]. Nós insistimos e confirmamos: a razão neoliberal não parou de se impor, não só porque ainda não encontrou forças contrárias suficientes, mas também porque a maneira como ela se impõe ainda não foi bem entendida. O confinamento disciplinar no esquema da concorrência universalizada é a principal alavanca da transformação das sociedades e dos Estados, para o máximo lucro de uma oligarquia muito pequena em número, mas extremamente poderosa, que consegue drenar a seu favor os ganhos oriundos da competição”.
Segundo os autores, o estudo do caráter sistêmico da racionalidade neoliberal permite analisar a corrosão interna da própria dimensão pública e democrática dos Estados nacionais, à direita e à esquerda no espectro político. O sistema neoliberal opera uma desativação do jogo democrático, introduz formas sem precedentes de sujeição que constituem, para os que a contestam, um desafio político e intelectual inédito. Para os sociólogos, “o comum é a nova razão política que deve substituir a razão neoliberal”.
Giovanni Alves, professor de Ciências Sociais na UNESP, no livro Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório, lançado pela Boitempo em 2011, lança um olhar crítico sobre o mundo do trabalho, em especial sobre um tema crucial na reestruturação produtiva do século XXI: a subjetividade do homem que trabalha. Resultado de uma densa análise sobre as engrenagens de envolvimento e sujeição do trabalhador, no espaço de trabalho, e sobre os processos de produção, o livro revela as influências de uma nova modalidade no mercado: a “empresa enxuta” ou “flexível”.
De acordo com Giovanni Alves, na “era do capitalismo manipulatório”, ocorre, em substituição à coisificação da produção maquinal, típica do taylorismo-fordismo e que formou a chamada sociedade do automóvel durante o século XX, o surgimento de uma nova lógica de controle e organização do trabalho, designada pelo autor como a “captura” da subjetividade. Nesse contexto, Alves aponta um intenso movimento de valores da empresa para a vida social, e vice-versa, de maneira que um impregne-se ao outro. Essa nova estrutura produtiva, baseada no toyotismo, combina ampliação do maquinário técnico-científico-informacional, intensa exploração do trabalho e aumento da informalidade e perda de direitos, à apropriação ainda mais efetiva do intelecto do trabalho, presentificando-se na realidade do trabalhador. Como aponta Ricardo Antunes, orientador do estudo, “as ‘células produtivas’, o ‘trabalho em equipe’, os círculos de controle de qualidade, as polivalências e as multifuncionalidades, as metas e as competências, os ‘colaboradores’, os ‘consultores’, os ‘parceiros’ são denominações infernais cuja substância se encontra na razão inversa de sua nomenclatura”.
O autor insere-se na discussão sobre o uso do conceito “precariado”, divergindo das análises de Ruy Braga e de Guy Standig. No artigo “A educação do precariado”, publicado no blog da Boitempo, Alves pontua: “O termo ‘precariado’ possui significados bastante controversos. Por um lado, Ruy Braga em seu novo livro A política do precariado (Boitempo, 2012) considera o precariado como sendo o ‘proletariado precarizado’. Por outro lado, Guy Standing no livro The precariat (Bloomsbury, 2010) não considera o precariado como proletariado, mas sim uma nova classe – ‘the new dangerous class’. Eu tenho utilizado o conceito de ‘precariado’ com uma significação sociológica bem específica. Primeiro, ele não constitui uma nova classe social, mas sim uma nova camada da classe social do proletariado. No século XXI, o proletariado como ‘classe’ social amplia-se e diversifica-se, cada vez mais, no plano sociológico. Na medida em que se desenvolve o modo de produção capitalista e dissemina-se a lógica do trabalho abstrato pela vida social, universaliza-se a condição de proletariedade. Depois, o precariado não pode ser meramente identificado como ‘proletariado precarizado’ pois considerá-lo assim, significa perder a especificidade da categoria social de precariado. Na verdade, precariado diz respeito a uma nova camada da classe social do proletariado constituída especificamente por jovens-adultos altamente escolarizados imersos em relações de trabalho e emprego precário. Portanto, o conceito de precariado implica o cruzamento das determinações de ordem geracional, educacional e salarial”. De acordo com Alves, “o próprio ‘precariado’, em si e para si, é expressão de classe do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social descartabilizadas pelas relações sociais de produção capitalista. Neste caso, aplica-se o que István Mészáros caracterizou como ‘produção destrutiva’ e a taxa de utilização decrescente do valor de uso. O precariado é expressão do sistema social da produção do desperdício generalizado: desperdiça-se a futuridade de jovens altamente escolarizados, penhorando-se suas perspectivas de carreira e mobilidade social”. Para o autor, portanto, o conceito do precariado deve ser aplicado à camada média do proletariado urbano constituída por jovens-adultos altamente escolarizados com inserção precária nas relações de trabalho e vida social. Trata-se, para ele, de uma camada social da classe do proletariado, não de uma nova classe social. Ao se considerar o precariado como “nova classe social perigosa”, o autor pontua em outro artigo, intitulado “O que é o precariado?” e também publicado no blog da Boitempo, “oculta-se a importância das alianças políticas no interior da classe do proletariado como tarefa crucial da alternativa radical capaz de enfrentar o neofascismo em ascensão. Isolar a camada social do precariado no plano categorial seria condená-lo à ineficácia política efetiva, tornando-o, deste modo, mero sujeito receptor das políticas da economia solidária. Na verdade, a política radical deve deixar claro, como pressuposto necessário, a importância crucial da unidade política e programática da classe do proletariado clivado de segmentações sociais que impedem sua eficácia histórica no plano da práxis política”.
Alves, em Trabalho e subjetividade, investiga a novidade dos conceitos e críticas relacionados à psicologia das pulsões no trabalho e ao sistema de controle do metabolismo social, que articula em si e para si, de modo contraditório, mente e corpo do homem que trabalha. Muito utilizada por István Mészáros, depois de Marx, a noção de metabolismo social é ponto de partida teórico do autor, para articular os elementos que explicam as novas conformações da reestruturação produtiva do capital no século XXI. Para isso, Alvez propõe categorias teóricas novas, como sociometabolismo da barbárie, cooperação complexa, Quarta Revolução Tecnológica, valores-fetiche, expectativas e utopias de mercado, inconsciente estendido e compressão psicocorporal, salientando as implicações corporais da desefetivação do trabalho vivo no capitalismo flexível, com a disseminação da doença universal do estresse.
Para o economista Marcio Pochmann, a contribuição fundamental da obra de Alves é colocar-se como contraponto na literatura especializada, ainda muito comprometida com a oferta de visões amenas das configurações atuais: “O conhecimento dessa realidade constitui inexorável parcela no desejo de sua transformação, sobretudo se acreditamos que outro mundo ainda é possível”.
Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos, em maio de 2016, Alves aponta que, especificamente no Brasil, “depois de dez anos de governos neodesenvolvimentistas, com a economia brasileira crescendo e resultados positivos nos indicadores sociais do mercado de trabalho — taxa de desemprego e índice de formalização salarial —, assistimos hoje a uma regressão social de largo espectro”. Segundo ele, a precarização do trabalho “nas condições da crise do capitalismo brasileiro na última metade da década de 2010 se apresenta constituída de modo global pela ampliação da nova precariedade salarial e pela precarização das condições de existência social do trabalho vivo. Em síntese, deve-se aprofundar no Brasil aquilo que denominamos de degradação da pessoa humana-que-trabalha. […] Entretanto, a precarização do trabalho implica também a disseminação do trabalho flexível por meio das remunerações flexíveis vinculadas a metas de produção. Cada vez mais, as organizações púbicas ou privadas vinculam a forma-salário a metas de produtividade, contribuindo para o estresse da pessoa-que-trabalha. A precarização do trabalho se expressa também na jornada de trabalho flexível onde a pessoa-que-trabalha reduz seu tempo de vida a tempo de trabalho. Os locais de trabalho reestruturados, tanto no setor privado como no setor público, incorporam novos métodos de gestão de raiz toyotista acoplados às novas tecnologias informacionais que intensificam o trabalho”. O Brasil, para o autor, “é hoje um território privilegiado para observarmos a barbárie social que caracteriza o capitalismo global no século XXI”, sobretudo graças à terceirização, ampla e irrestrita, e ao fato da desemprego ter adquirido um caráter destrutivo, uma vez que somos totalmente carentes de proteção social. Com a reforma trabalhista brasileira, diz o sociólogo, “a nova precariedade salarial deve adquirir um patamar superior, pois deve aumentar os contratos salariais precários. A terceirização no setor privado deve ocorrer não apenas nas atividades-meio, mas também nas atividades-fim”.
Giovanni Alves é autor também do livro O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo [Boitempo, 2000], atualmente esgotado.
_____________
“Somos todos precários”, afirma Guy Standing.
______________