Nos pampas, em meio ao calor sufocante de fevereiro, sob a latente pressão do regime militar, um acontecimento inusitado desperta a narrativa: vários cavalos são assassinados, sem motivos aparentes ou explicações plausíveis, os corpos dos animais são encontrados, vítimas impotentes de tiros à queima-roupa.
Em Ninguém nada nunca, o argentino Juan José Saer narra de maneira oblíqua, reconhecível, mas não realista. Traça uma reflexão literária contundente sobre o mal-estar do homem no mundo, que perpassa a tensão e o mistério dos enigmáticos, e sobretudo alegóricos, abates dos cavalos.
Numa tradução inventiva do real, avessa à pura representatividade, a prosa de Saer aumenta a perceptividade simbólica do mundo e conserva no vazio as incompreensões milenares, irradiando-as, porém, ao infinito.
Segundo Milton Hatoum, em ensaio crítico sobre a obra, o romance “está no centro da obra de Juan José Saer e representa, por sua ousadia estética e elaboração formal, um ponto de inflexão na narrativa latino-americana”. O escritor brasileiro analisa que, a despeito de possíveis paternalidades e influências literárias, “depois de muito tempo e de tantos livros, Juan José Saer era ele mesmo: um escritor deslocado, quase ilhado em seu exílio voluntário, esquivo e mesmo irredutível às pressões do mercado, mas perseguidor implacável de um estilo próprio e de um universo ficcional que justificam a razão mesma de escrever e publicar”.
Em resenha, o crítico Alfredo Monte, afirma que o romance é de leitura difícil: “Concentra-se num fim de semana, reitera obsessivamente as mesmas informações, alterna narração em primeira e terceira pessoas, e procura amalgamar a realidade social (há a atmosfera muito forte do regime militar) com a natureza (certos personagens são chamados por nomes de animais, como Gato Garay, seu irmão Pombo e o delegado-torturador Cavalo Leyva, o qual vem a ser assassinado de fato, após sê-lo, digamos, emblematicamente). Juan José Saer dissolve os sentimentos, percepções e relações humanas num processo incessante de descrição dos fenômenos naturais, como raras vezes se viu na literatura, de uma forma mais radical ainda do que Virginia Woolf em obras como As Ondas ou Ao Farol ou dos autores do noveau Roman francês (penso em Claude Simon)”.
Para o escritor Julián Fuks, em artigo publicado na revista Cult, “desde suas primeiras incursões literárias, em romances como Responso e Cicatrices, revelavam-se o domínio de linguagem e o ímpeto anticonvencional que se aliariam para alcançar o paroxismo ainda nessa fase incógnita, com o conto “La mayor” e os romances El limonero real e Ninguém nada nunca – entre os dez primeiros, o único publicado no Brasil”. Segundo a análise do brasileiro, utilizando “uma sintaxe cada vez mais intrincada e acurada em sua técnica, de um rol de imagens poéticas pelo que têm de ordinárias e concretas, o que Saer fez nessas obras foi afogar o leitor em uma extrema minúcia das descrições, no desmantelo de cada ação e de cada gesto. Era como se quisesse deter o tempo e captar o instante em seu caráter múltiplo e ínfimo, de modo que seus livros são o resultado desse embate constante contra a transitoriedade. Como seria de se esperar no império das leituras fáceis, sua obstinação foi relegada pelo mercado. Se Ninguém nada nunca pôde render a seu autor uma fama remota e discreta, entre aficionados e especialistas, foi mais por seu conteúdo político que refere de modo direto a ditadura argentina do que pelo radicalismo que o caracteriza”.
Em outro artigo, escrito ao jornal Rascunho, Fúks resume: “Dizer do que trata esse romance é começar a traí-lo: essencialmente, Ninguém nada nunca nunca diz nada sobre ninguém. É no vazio de sentido das pós-vanguardas, na descrença que se erigiu em relação a qualquer representatividade, que se insere essa obra fundamental do argentino Juan José Saer. […] Cedamos à traição: selecionam quatro dias no transcurso infinito do tempo, circunscrevem o espaço às margens de um rio num moroso povoado do norte argentino, e põem-se a minuciar a múltiplas vozes e vistas os pormenores materiais da existência. Uma existência sufocante em que tudo é tensão e iminência, sem que no entanto se saiba de quê. Com o mesmo espanto compartilhado, os leitores acompanham essa poética tão bela e tão própria, e esse espanto diante do inusitado e do improvável — muito mais do que a trama — é o que conduz o leitor até o desfecho, ou até a diluição final”.
A crítica literária argentina Beatriz Sarlo, em ensaio sobre a originalidade de Saer, publicado pelos Novos Estudos Cebrap, aponta: “A noite de Ninguém nada nunca, quando o carro dos seqüestradores chega à costa do Paraná, retorna em Glosa e também em A pesquisa [São Paulo: Companhia das Letras, 1999], de 1994. É evidente para todos os leitores de Saer que suas narrativas formam um ciclo, caracterizado por uma paisagem, um grupo de personagens, episódios que se esboçam num texto e muito depois (como diria Barthes) “prendem-se” em outro. Por trás da trama de seus romances,escritos ao longo de quase cinco décadas,o reverso mostra fios que desaparecem da superfície para reaparecer anos mais tarde,linhas que se acreditava esquecidas mas são recuperadas, personagens que se deslocam de um canto da cena para o centro ou retornam como figuras secundárias ou mencionadas por outros. Todos os personagens se conhecem, e a trama oculta do reverso, que os mantém unidos, se revela por fragmentos no tapete que se vai estendendo e que jamais saberemos até onde terá se estendido. A idéia de uma sociedade de personagens, Saer a compartilha com a literatura do século XIX e com Proust, mas também com os autores de romances policiais, alguns dos quais — Raymond Chandler, por exemplo — admirava”.
Para a crítica, Saer “não elude o problema da realidade. Se se dissesse que seus romances são filosóficos,haveria que esclarecer que o são mais à maneira de Robert Musil do que de Thomas Mann. Problemas filosóficos e estéticos e questões sobre a possibilidade da representação da realidade, antes que delineados ou transmitidos nos diálogos,aparecem como performance da narrativa. Na verdade, os personagens dialogam sobre essas questões de modo irrisório ou paródico”.
Traduzido por Bernardo Carvalho, Ninguém nada nunca foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1997. Encontra-se esgotado, disponível apenas em sebos.
Autor: Juan José Saer
Editora: Companhia das Letras
Preço mínimo: R$ 17,00 (231 págs.)
[disponível apenas em sebos]