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Prosa precisa

6 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Odilon Redon

O vento que arrasa, da argentina Selva Almada, vem sendo aclamado como a última grande revelação literária da América Latina.

O romance é ambientado no Chaco argentino e transcorre-se ao longo de somente um dia e meio na vida de Leni, uma moça de dezesseis anos, e de seu pai, um pastor que vive a percorrer o país em busca de sinais de Deus. Com problemas no carro, eles fazem uma parada na oficina mecânica do Gringo, onde conhecem o jovem Tapioca, rapaz que o pastor vê como uma alma iluminada e a quem, por isso, quer levar consigo na peregrinação.

Com tradução de Samuel Titan Jr., o livro acaba de ser lançado no Brasil pela CosacNaify. O volume conta com quarta capa de Beatriz Sarlo, para quem Selva Almada destaca-se no mapa da ficção por ser, não literatura urbana, nem sobre jovens, nem sobre marginais, mas uma literatura de província, regional frente às culturas globais, mas não uma literatura de costumes – ao contrário da literatura urbana que, diz Sarlo, tantas vezes é literatura de costumes sem ser regional. 

A narrativa, com a sucinta articulação de poucos elementos, é de uma beleza lírica realista. As quatro personagens e sua delicada história ambientada em uma paisagem hostil e deprimente tem algo de cinematográfico. O romance avança através de diálogos envolventes, precisos, humanos. A autora, sobre seu estilo minimalista, é tida como uma autora “não tipicamente feminina”, conforme disse em entrevista: “Não me interessam as histórias domésticas com dramas ou românticas. Gosto das histórias que avançam. E me dá mais curiosidade o mundo dos homens que o das mulheres. Isso se nota no romance, onde as mães estão ausentes. O que não quer dizer que em meus contos não apareçam mulheres, mas não são mulheres comuns nunca, são talvez mais masculinas. Pois esta é a visão que eu tenho das coisas, do mundo”.

Para Soledad Platero, em artigo sobre o romance escrito para o El País do Uruguay, “a expressão coloquial, a fala popular da zona na qual se desdobram suas histórias convive naturalmente com uma linguagem literária de enorme elegância e precisão”.

O livro é o primeiro romance da autora que já havia publicado diversos contos. Sua linguagem sensível, clara e econômica angariou imediatamente elogios do público e de boa parte da crítica.

 

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Trecho:

A última imagem que Leni guarda da mãe é através do para-brisa traseiro do carro. Leni está dentro, ajoelhada no banco, com os bracinhos e o queixo apoiados no encosto. Lá fora, o pai acaba de fechar o porta-malas com força, depois de tirar uma das malas e deixá-la no chão, ao lado da mãe. Ela está de braços cruzados e veste uma saia longa, como as que Leni usa, agora que está crescida. Atrás dos pais, sobre a rua de terra de um lugarejo qualquer, vai se levantando um céu rosado e cinzento de amanhecer. Leni está com sono e tem a boca pegajosa, com gosto de pasta de dente, pois saíram do hotel sem tomar café da manhã.

A mãe descruza os braços e passa uma das mãos sobre a testa. O Reverendo está falando com ela, mas, dentro do carro, Leni não consegue escutar o que ele está dizendo. Mexe muito as mãos. Levanta o indicador e o abaixa e aponta para a mãe, balança a cabeça e continua falando em voz baixa; pelo trejeito da boca parece que morde as palavras antes de soltá-las.

A mulher faz menção de ir até o carro, mas o Reverendo se interpõe e ela se congela em meio ao movimento. Estão brincando de estátua, pensa Leni, que sempre brinca disso, sempre em pátios diferentes e sempre com crianças diferentes, depois do sermão dominical. Com o braço estendido e a palma da mão aberta para a frente, o Reverendo, seu pai, caminha para trás e abre a porta do motorista. A mãe fica parada ali, junto à mala, e cobre o rosto com as mãos. Está chorando.

O automóvel se põe em marcha e logo arranca, levantando uma nuvem de poeira. Então a mãe corre uns metros atrás do carro, feito um desses cachorros abandonados na estrada durante as férias.

Isso aconteceu há quase dez anos. Leni não se lembra com exatidão do rosto da mãe. Lembra que era uma mulher alta, magra e elegante. Quando se olha no espelho, tem a impressão de que herdou seu porte. No começo, achava que era só um desejo de se parecer com ela. Mas agora que é mulher, mais de uma vez já pegou o pai olhando para ela com uma mistura de fascínio e desprezo, como quem olha para alguém que traz boas e más recordações, a um só tempo.

O Reverendo e Leni nunca falaram daquele episódio. Ela não sabe o nome do lugarejo onde deixaram a mãe, mas acha que, se voltassem a passar por aquela rua, saberia reconhecê-la no ato. Esses lugares não mudam muito ao longo dos anos. De todo modo, o Reverendo deve se lembrar muito bem do ponto preciso do mapa em que deixou a esposa e certamente o apagou para sempre dos seus itinerários.

Daquela manhã em diante, o Reverendo Pearson passou a se apresentar como um pastor viúvo com uma filha pequena para criar. Um homem nessa condição gera automaticamente confiança e simpatia. Um homem a quem Deus arrebatou a esposa na flor da juventude, deixando-o sozinho com uma criança pequena, e que mesmo assim segue em frente, firme na fé, inflamado pela chama do amor a Cristo –um homem assim é um homem bom, um homem a quem se deve escutar atentamente.

Tapioca também não lembra muita coisa da mãe. Quando ela o abandonou, ele teve de se acostumar ao novo lar. O que mais lhe chamou a atenção foi aquele montão de carros velhos. O cemitério de carros e os cachorros serviram de consolo durante as primeiras semanas, enquanto ele se conformava com a ideia. Passava o dia inteiro metido no meio das carcaças: brincava de dirigir aqueles automóveis e sempre tinha três ou quatro cachorros de copilotos. O Gringo deixava. Foi se aproximando aos pouquinhos, como se o menino fosse um bichinho do mato que ele precisasse amansar. Começou contando a história de cada um daqueles carros que, um dia, tinham transitado por ruas e até por estradas sem fim. Muitos não tinham ido só até Rosario, como a mãe dele, mas sim até Buenos Aires e a Patagônia. Brauer foi buscar uma pilha de mapas viários do Automóvel Clube, e à noite, depois de jantar, mostrava os pontos por onde, segundo ele, os carros tinham andado. Com o dedo grosso, manchado de graxa e nicotina, ia seguindo as linhas e explicava que a cor de cada traço marcava a importância da estrada em questão. Às vezes o dedo de Brauer trocava bruscamente de rumo, saía da estrada principal para tomar um caminho mal insinuado, uma linha mais fina que um cílio, que terminava num pontinho. O Gringo dizia que o motorista do carro tinha passado a noite naquele lugar e que agora também era hora de ir dormir.

Outras vezes, a ponta do dedo do mecânico passava aos pulinhos por uma linha pontilhada, uma ponte erguida sobre um rio. Tapioca não sabia nem o que era um rio, nem o que era uma ponte, e então Brauer explicava tudo.

E, outras vezes, o dedo se movia sinuoso, vagaroso, por um caminho na montanha. Certa vez, o dedo chegou até o fim do mapa e o Gringo falou do frio, de um frio que jamais chegariam a conhecer no Chaco, um frio que deixava tudo branco. Ali, no inverno, a estrada ficava coberta de gelo e o gelo fazia os pneus patinarem e causava os acidentes fatais. Tapioca sentia medo de um lugar desses e pensou que era uma sorte estarem bem na parte de cima do mapa e não ali onde terminava o mundo.

O Gringo Brauer comprava os carros da polícia da província. Tinha um contato lá dentro. Eram vendidos como ferro-velho. Em geral, eram carros confiscados em acidentes ou incêndios. De vez em quando, entrava um roubado. Nesse caso, o Gringo cuidava da mecânica; a polícia limpava os papéis, trocava a matrícula evendia aos ciganos. Pagavam a Brauer pelo trabalho, mais um tanto pela colaboração.

Intercalando as histórias dos mapas, o Gringo contava o momento em que o carro deixara de pertencer a seu dono para vir terminar ali com eles. Recriava acidentes, e Tapioca escutava tudo com os olhos graúdos e atentos. No começo, os ocupantes do automóvel sempre saíam ilesos; o carro, destroçado, mas as pessoas, sãs e salvas. Depois, o Gringo achou que estava na hora de familiarizar o garoto com a morte, de modo que a partir daí todas as histórias tiveram um arremate definitivo e sanguinolento. Nas primeiras vezes, Tapioca teve pesadelos. A mãe, o próprio Brauer ou as poucas pessoas que conhecia morriam presas entre os ferros retorcidos, os corpos voavam dos bancos, atravessando o para-brisa ou se carbonizando no veículo em chamas, prisioneiros de portas emperradas. Acabou se acostumando, e já não voltou a sonhar com as cenas que o Gringo narrava.

A culpa não é dos carros, Brauer dizia sempre, a culpa é de quem dirige.

Quando a mãe o abandonou, Tapioca tinha completado o terceiro ano. Sabia ler, escrever e fazer contas. O Gringo também não tinha terminado a escola, e por isso não lhe pareceu necessário que o menino fosse adiante. A escola mais próxima ficava a várias léguas, e seria uma complicação levá-lo e trazê-lo todos os dias. A educação formal que tivera até os oito anos já bastava. Dali em diante, decidiu Brauer, Tapioca tinha que aprender sobre a natureza e o trabalho.

Essas duas coisas não seriam ciências, mas fariam do garoto uma pessoa de bem.

 

[Trecho divulgado pelo caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, em 10/05/2015]

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O VENTO QUE ARRASA

Autor: Selva Almada
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 20,93 (128 págs.)

 

 

 

 

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