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A prosa precisa de Bábel

14 janeiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Kandisnky, “Der Blaue Reiter”

A Editora 34 acaba de lançar No campo da honra e outros contos, do russo Isaac Bábel, com tradução de Nivaldo dos Santos e prefácio de Boris Schnaiderman.

O volume reúne 32 contos, a maior parte em sua primeira tradução direta para o português. São textos produzidos ao longo de toda a carreira literária de Bábel, provas de seu estilo sintético, essencial, inigualável. Aqui o leitor pode ter acesso tanto ao seu primeiro conto, publicado em 1913, quanto ao último, “O julgamento”, publicado em 1938. A seleção contempla todos os temas caros à produção literária de Bábel, os relatos da infância vivida na Moldavanka, o bairro judeu de Odessa, as histórias de sua juventude aventureira, os contos surpreendentes sobre a guerra.

O chamado ciclo “No campo de honra” foi inciado por Bábel no início de 1920, quando publicou, na revista político-literária Lava, um conjunto de quatro contos, inspirados na obra de Gaston Vidal sobre a 1ª Guerra Mundial.

A prosa de Bábel é considerada a mais intensa e original da Rússia pós-revolucionária. A publicação do volume de contos O exército de cavalaria tornou-o um escritor mundialmente conhecido.

O autor, a despeito do prestígio que tinha junto às autoridades soviéticas, não ficou a salvo da perseguição stalinista e, preso em 1939 sob a acusação de “atividades antissoviéticas e espionagem”, foi fuzilado em janeiro do ano seguinte.

Seus contos são violentos, imediatos, bruscos, precisos. Sua escrita é dotada de uma imaginação exuberante, distribuída de maneira justa ao longo de cada frase. Como definiu Jorge Luis Borges, em sua prosa “a música do estilo contrasta com a quase inefável brutalidade de certas cenas”.

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Leia um dos contos de Bábel, com tradução de Nivaldo dos Santos, publicada pelo jornal Folha de São Paulo:

 

O desertor

O capitão Gémier era um homem superior e também um filósofo. No campo de batalha não conhecia vacilações, na vida cotidiana sabia perdoar pequenas ofensas. Diz muito de um homem o fato de não se ofender com pequenas coisas. Ele amava a França com um afeto que devorava seu coração, por isso seu ódio aos bárbaros que profanavam sua velha pátria era inextinguível, implacável, duradouro como a vida.

Que mais dizer sobre Gémier? Ele amava sua mulher, fez de seus filhos bons cidadãos, era um francês patriota, erudito, parisiense e amante das coisas belas.

E eis que em uma manhã de primavera, radiante e rosada, comunicaram ao capitão Gémier que entre as linhas francesas e as inimigas fora detido um soldado desarmado. A intenção de desertar era evidente, a culpa inegável. Levaram o soldado sob escolta.

– É você, Beaugé?

– Sou eu, capitão – respondeu o soldado, prestando continência.

– Você aproveitou a aurora para tomar ar fresco?

Silêncio.

– C’est bien. Deixem-nos.

A escolta retirou-se. Gérmier trancou a porta à chave. O soldado tinha vinte anos.

– Você sabe o que o espera, não? Voyons, explique-se.

Beaugé não ocultou nada. Ele disse que estava farto da guerra.

– Estou farto da guerra, mon capitaine! Granadas me impedem de dormir pela sexta noite…

A guerra lhe era repugnante. Ele não ia trair, ia entregar-se. Em uma palavra, aquele pequeno Beaugé foi inesperadamente eloquente. Disse que tinha apenas vinte anos, mon Dieu, c’est naturel, qualquer um comete erros nessa idade. Ele tinha mãe, noiva, des bons amis. Ele tinha toda a vida pela frente, aquele Beaugé de vinte anos, e corrigirá sua falta perante a França.

– Capitão, o que dirá minha mãe quando souber que me fuzilaram como o último miserável?

O soldado caiu de joelhos.

– Você não me comoverá, Beaugé! – respondeu o capitão. – Os soldados o viram. Cinco soldados assim como você, e a companhia está infectada. C’est la défaite. Cela jamais. Você morrerá, Beaugé, mas eu salvarei sua honra. No Quartel-General não será conhecida sua desonra. À sua mãe informarão que você caiu no campo de batalha. Vamos.

O soldado seguiu atrás do superior. Quando eles chegaram ao bosque o capitão parou, sacou o revólver e estendeu-o a Beaugé.

– Eis o modo de fugir ao tribunal. Mate-se, Beaugé! Eu voltarei em cinco minutos. Tudo deve estar terminado.

Gémier retirou-se. Nem um único som quebrou o silêncio do bosque. O oficial voltou. Beaugé o esperava encurvado.

– Eu não consigo, capitão – murmurou o soldado. – Faltam-me forças.

E iniciou-se aquela mesma ladainha: a mãe, a noiva, os amigos, a vida adiante…

– Eu lhe dou mais cinco minutos, Beaugé! Não me obrigue a andar sem necessidade.

Quando o capitão voltou, o soldado soluçava estirado no chão. Seus dedos, deitados sobre o revólver, moviam-se frouxamente.

Então Gémier levantou o soldado e disse, olhando-o nos olhos, com uma voz suave e cordial:

– Meu amigo Beaugé, talvez você não saiba como se faz isso.

Sem se apressar, ele tirou o revólver das mãos úmidas do jovem, afastou-se três passos e atravessou-lhe o crânio com um tiro.

Esse acontecimento foi relatado no livro de Gaston Vidal. E realmente, o soldado chamava-se Beaugé. É verdade que eu dei o nome Gémier ao capitão sem ter certeza absoluta. O conto de Vidal é dedicado a um certo Firmen Gémier, “em sinal de profunda consideração”. Penso que a dedicatória é suficiente. Decerto o capitão chamava-se Gémier. E depois, Vidal declara que o capitão era realmente um patriota, soldado, bom pai e um homem que sabia perdoar as pequenas ofensas. E isto não é pouco para um homem: saber perdoar as pequenas ofensas.

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NO CAMPO DA HONRA E OUTROS CONTOS

Autor: Isaac Bábel
Editora: 34
Preço: R$ 32,20 (264 págs.)

 

 

 

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