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Ressaca tropical

18 janeiro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Fotografia da exposição “Ressaca Tropical”, de Jonathas Andrade

Ressaca tropical é a apresentação em forma de livro da exposição homônima do artista alagoano Jonathas de Andrade. A edição, publicada pela Editora Ubu, foi graficamente preparada pela designer Elaine Ramos.

O artista encontrou um caderno anônimo no lixo, um diário que em que o narrador fala sobre amores e conflitos com o trabalho e em que tece reflexões íntimas a respeito de seu cotidiano, entre os anos de 1973 a 1979, em Recife. Andrade editou trechos do diário, compondo-o por entre fotografias de vistas aéreas do Recife em preto e branco da coleção do fotógrafo Alcir Lacerda, fotos em negativo colorido de um acervo amador, imagens de arquivo da Fundação Joaquim Nabuco e fotografias de prédios modernistas dilapidados feitas pelo próprio Andrade em 2008.

As imagens formam uma narrativa da história de Recife na década de 1960: os diferentes ângulos da cidade nas décadas de 50 e 70, edifícios modernistas semiabandonados registrados entre 2008 e 2009, contrapõem-se a cenas cotidianas da praia, marcadas por pungentes tropicalidade e desejo.

Ao serem apresentados de forma conjunta, e sem uma hierarquia entre passado e presente, as fotografias ultrapassam seu caráter puramente documental para compor um arquivo fictício da cidade, evocando um tempo indefinido. O forte teor sexual é produzido sobretudo pela narrativa do diário e, através dele, um dos objetivos centrais de Ressaca tropical é discutir o legado modernista na América Latina, contrapondo ruína, desejo e natureza a construção, modernismo e progresso.

A instalação que deu origem ao livro foi montada em 2009 na Galeria Vermelho, em São Paulo e participou também das mostras 7ª Bienal do Mercosul [2009], 12ª Bienal de Istambul [2011] e 2ª Trienal do New Museum – the Ungovernables [2012], além de ter sido adquirida como parte do acervo permanente da Tate Collection, em Londres.

O crítico Silas Martí, em artigo crítico sobre a instalação, publicado no caderno Ilustrada do jornal Folha de S.Paulo, analisa: “Quando a especulação imobiliária passou a varrer do mapa as construções modernistas de Recife, Jonathas de Andrade enxergou nas frestas da destruição uma chave de leitura do tempo. […] Essa análise da falha de projetos grandiosos, à sombra da presença humana, passional e afetiva, é o mote central da obra desse artista. É um discurso sedutor num momento em que a arte começa a rever o legado dos anos de chumbo. Não como protesto, mas como análise das falências estéticas de uma era, a dissecação do que sobrou de tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi”. Martí cita o artista, que diz: “Hoje e ontem se colavam, achatando esses tempos históricos. […] Estou tentando tatear a história que me precede”. De acordo com o crítico, Andrade “mostra, no fundo, uma denúncia da volatilidade da memória. Alia um tempo concreto a uma temporalidade abstrata, lastreada em pulsões humanas, como se injetasse carnalidade nos traços e contornos mais estéreis da arquitetura”. A instalação, pontua, “intercala imagens de ruínas modernas em Recife e trechos de um diário encontrado no lixo. Idas ao cinema, bebedeiras e um tanto de sexo sublinham construções vazias, elefantes brancos”. Para o artista, a obra, diz, ainda no referido artigo: “É uma espécie de baú que eu abro. Foi um jeito pessoal de resolver o que tendia para a nostalgia”. Porém: “Não é como se quisesse só um sabor do perigo daquela época. É um amadurecimento dessa visão nostálgica”.

O livro encontrado acabou tornando-se um mote para fazer uma “fotografia de pretexto”, evocando, como disse Kiki Mazzuccheli, “um tempo indefinido e pós-utópico”.

Sobre a edição da Ubu, Rony Maltz, em artigo publicado pela revista Zum, elogia: “é um livro contido por fora, que não chama a atenção de quem passa o olho pela prateleira de Fotografia das livrarias. A capa e as guardas são cinzentas, sem imagens; finas rajadas diagonais, em alto relevo pelo tratamento em verniz, convidam a uma aproximação pelo tato. Ao abrir, o miolo se multiplica feito massa folheada, com páginas avulsas e pequenos livretos inseridos entre cada par, misturando textos e fotografias de texturas e épocas diversas, construindo uma narrativa por estratos. […] A montagem do livro é engenhosa, mas sistemática: logo somos absorvidos pelo ritmo de rotina que se estabelece do início ao fim”. Segundo o crítico, as “fotos de arquivos são indícios de uma cidade que não existe mais, transformada pelas reformas urbanísticas e por outras forças imprevistas – obras do acaso, que sempre entra pelas frestas –, como uma grande enchente tropical. Se as tomadas gerais em preto e branco põem em evidência a topografia do espaço urbano, revelando a arquitetura da cidade, as fotografias coloridas nos aproximam dos personagens, em geral jovens felizes congelados em momentos fugazes”. Maltz comenta e analisa:

“‘Estou sob tensão sexual… Uma tremenda ansiedade’, anota o diário em sua última entrada, de 11 de Setembro de 1977 – mas poderia ser o subtítulo do livro. Os trechos reproduzidos registram pelo menos 40 encontros românticos em cerca de quatro anos. A frase “início de romance com…” aparece ao menos dez vezes, com pequenas variantes. Maria Luiza, Sandra, Simone, Litinha, Neide, Gilda, Tita, Rosa Maria, Sidney, Dave, Marta, Euclides, Cecilia, Osvaldo, Ana Maria, duas Marlenes – são alguns dos parceiros citados. A maioria surge uma vez e nunca mais. A sucessão de recomeços tem o efeito cumulativo de pôr em cheque qualquer ilusão em mudanças duradouras; criam um círculo vicioso em que ‘tudo muda para permanecer como está’”. De acordo com a interpretação de Maltz, a “edição não cronológica dos textos contribui para esse efeito, muitas vezes apresentando novidades com prazo de validade expirado: novos romances cujo fim já estava anunciado páginas atrás. De forma análoga, fotografias de andaimes, escombros, acidentes e corpos jovens queimados de sol se sucedem de forma mais ou menos inconsequente. O tempo e o quadro fotográfico nivelam diferentes feições e versões do passado, pondo em curto-circuito a ‘marcha do progresso’. As obras de hoje são as ruínas da página seguinte; a cidade nunca está pronta”.

Seguindo ainda a análise de Maltz, a “ressaca” do título parece já sugerir o passado que torna ao presente. Segundo ele: “O reconhecimento da cidade como ruína (literal ou metafórica) é a ‘chave-mestra’ da obra, a lente que põe em foco simultaneamente todas as camadas narrativas. Para aproveitarmos melhor essa premissa, contudo, convém abandonar a ideia de arquivos como relíquias, documentos do passado embalsamados no tempo. Vistos como contemporâneos nossos, essas imagens e textos podem provocar mais do que anseios nostálgicos. ‘Quase tudo está destruído, mas resta algo. O importante é como nosso olhar põe esse algo em movimento’, sugere o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman em Imagens apesar de tudo. Ele compara as imagens antigas aos escombros: ‘Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender’”.

Jonathas Andrade desenvolve trabalhos artísticos com instalações, vídeos e fotopesquisas. Sobre seu processo artístico, afirma: “A arte me permite experiências que seriam impossíveis enquanto somente pesquisador ou cientista social. […] Parto de urgências e desconfortos cotidianos, de certa forma até pessoais, que ganham dimensão social através da experiência artística”.

O artista foi finalista do prêmio PIPA (Brasil, 2011) e recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça (Brasil 2011, 2012, 2013), o Future Generation Art Prize – Special Prize Winner na Ucrânia (Ucrânia, 2012) e o Prix de la Francophonie – 12ª Biennale de Lyon (França, 2013), entre outros.

 

 

RESSACA TROPICAL

Autor: Jonathas Andrade
Editora: Ubu
Preço: R$ 60,80 (200 págs.)

 

 

 

 

 

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