Publicado originalmente em 1986, Foe é uma das obras de construção mais complexa do escritor sul africano J.M. Coetzee, ganhador do prêmio Nobel. A Companhia das Letras acaba de lançá-lo no Brasil, sob tradução de José Rubens Siqueira.
No romance, já um clássico da literatura contemporânea, Coetzee reinventa a história de Robinson Crusoé. A grandiosa novela apresenta Susan Barton, que, no início do século XVIII, encontra-se um uma pequena embracação de apoio à deriva, após o navio em que viajava ter sido palco de um motim de marinheiros. Ela acaba por chegar a uma ilha deserta e encontra com um dos únicos habitantes do local, que lhe oferece abrigo. Trata-se de um homem chamado Cruso, acompanhado por seu seu escravo Sexta-feira.
Cruso é um sujeito irascível, preguiçoso e autoritário: perdeu interesse em fugir da ilha ou mesmo em rememorar os eventos que marcaram sua chegada àquele lugar. Sexta-feira, por sua vez, não pode falar: teve a língua cortada, não se sabe se por proprietários de escravos ou pelo próprio Cruso. Depois de um ano, eles são resgatados por um navio que rumava para a Inglaterra, mas apenas Susan e Sexta-feira sobrevivem à viagem a Bristol. Determinada a contar sua história, ela busca um famoso escritor de seu tempo, Daniel Foe, na esperança de que ele escreva um livro sobre sua experiência na ilha.
Mas com a morte de Cruso e a incapacidade de articulação de Sexta-feira, a tarefa se mostra mais difícil do que pensava. Vaidoso, Foe insiste em adaptar a narrativa a seus caprichos. Susan, por sua vez, tem de convencê-lo de que sua versão é melhor e luta para manter viva a memória de um passado do qual permanece como única testemunha – ou ao menos a única capaz de transformar aquela experiência em linguagem.
É interessante a figura feminina imersa no cenário original de Robinson Crusóe, o qual é completamente masculino. Mulheres, quando aparecem no romance original, são anonimatos aterrorizados, servas domésticas do Cabo Verde, ou a honesta viúva que, em Londres, cuida do dinheiro de Robinson Crusoé. Coetzee redime essa falha, conta a história de uma mulher e deixa-a a conduzir os termos sob os quais será narrada.
Em uma de suas entrevistas, incluída no volume Doubling the Point: Essays and Interviews [Ed. David Attwell. Cambridge, MA; London: Harvard University Press, 1992], J. M. Coetzee aponta que, “para Susan Barton, a questão que se põe é somente uma: o livro não é de Foe, é dela, mesmo que na condição de indicativo de sua procura por um inimigo [Foe] que a conte por ela” (p. 248).
O livro original de Robinson Crusoé, The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe, of York, Mariner, foi publicado por Daniel Defoe em 25 de abril de 1719. Foi o primeiro romance moderno, ou burguês, conforme analisa do crítico Ian Watt, em seu célebre A ascensão do romance [Companhia das Letras, 2010, tradução de Hildegard Feist]. Para Watt, no contexto histórico no qual o romance moderno teve sua ascensão, sobressaíam transformações econômicas e políticas, grosso modo, o capitalismo, o individualismo econômico. Como sintetiza a crítica Sandra Guardini Vasconcelos, no artigo “Ian Watt e a figuração do real (anotações de leitura)”, publicado na revista Literatura e Sociedade [2010, nº 170], o processo de Robinson Crusoé “de produção das condições mínimas de existência reproduz, conforme pontua Watt, as diferentes etapas da história humana – coleta, caça, pesca, pastoreio e agricultura – e introduz nessa ilha deserta a ‘racionalidade dos processos da vida econômica’. O empenho e a perseverança de Crusoe em conferir alguma ordem a seu cotidiano, administrar seu tempo, organizar sua existência e, sobretudo, virar as condições adversas a seu favor acabam por fazer dele ‘um triunfo da façanha e da iniciativa humanas’. O objetivo primordial do lucro, o utilitarismo, a comodificação das relações humanas – tudo justifica a expressão homo economicus que se atribuiu a ele. Epítome do empreendedor capitalista, encarnação do individualismo econômico, como quer que o descrevamos, Crusoe se transformou numa figura mítica, na medida em que simbolizou/simboliza alguns dos valores fundamentais de uma sociedade em mudança e de uma classe em ascensão, assumindo um papel central na construção do significado do individualismo moderno”.
Coetzee tem uma prosa que o estudioso de literatura de expressão inglesa, Fernando de Lima Paulo, em artigo define como não facilmente digerível, limpa de humor ou ironia, prosa na qual, diz o crítico, “o autor parece reescrever à exaustão cada frase, aparando arestas, tirando excessos; uma prosa que parecer minar, ao longo de sua construção, a própria razão de ser; uma prosa que se percebe em guarda contra si mesma, que expõe as dificuldades atinentes ao uso da linguagem, mas que, longe de perder-se na contemplação do próprio umbigo, dirige-se também a temas caros à existência humana, essa existência excruciada pelo peso da história. A verdade ante a impossibilidade de sua representação, a justiça ante a impotência por sua não concretização, o sofrimento ante a banalidade da violência transformam o texto coetzeeano em algo, além de extremamente lúcido acerca do ato de escrever, não conformista em relação a essa visão pós-moderna mais ‘ortodoxa’, irônica e descrente das visões humanistas suscitadas por preocupações éticas”. Segundo o crítico, parte do livro dedica-se a evidenciar a impraticabilidade do discurso histórico como verdade: “Susan, ao insistir num relato factual, que inclua a história da mutilação de Sexta-Feira e, portanto, reflita seu desejo de autoria, caminha, por assim dizer, para um impasse: como dizer a verdade para si e sobre si mesma sem cair no auto-engano? Uma representação fiel da realidade, bem ao sabor de uma narrativa histórica é, sem dúvida, uma prática que jamais vai calar as digressões possíveis e infinitas, já que, por trás de uma verdade exposta, ocorre sempre um silêncio intangível, irrepresentável, mas sempre presente, subversivo. Em Foe, Sexta-Feira representa esse mistério de maneira hábil. Susan tenta partilhar sua experiência de náufraga e, em seu relato, dar-se conta desse enigma, ou melhor, desse ‘buraco narrativo’, essa história que ‘tão teimosamente mantém seu silêncio. A sombra’, como explica Foe, ‘cuja falta [Susan] sente estar lá: é a perda da língua de Sexta-Feira’”. Para ele, o romance, “como uma revisão, leva então a cabo a subversão de um texto canônico (aqui visto como fundador, superior, paradigma), desarticulando-o de dentro para fora ao mostrar que sua pretensão de verdade cai por terra ao ser posta em contraste com a realidade da mulher expropriada e do indígena emudecido”.
De acordo com Coetzee, o romance não é o melhor texto de Defoe. Conforme cita Fernando de Lima Paulo, Defoe apresenta, nas palavras do sul-africano, “uma composição apressada e uma falta de revisão”, “sua moral é confusa”, “a última parte do livro, bem como as primeiras aventuras de Crusoé, poderiam ter sido melhor elaboradas por qualquer escritor mais hábil”. Ainda assim, sob a pena de Defoe, Robinson Crusoé acabou por transformar-se, ao longo dos três séculos seguintes à sua publicação, “provavelmente na cristalização mais forte da cultura ocidental no que diz respeito à sobrevivência do indivíduo, aos fundamentos da civilização e na dialética do explorador-explorado”.
Sabe-se, ainda, que o sufixo “De”, do sobrenome de Defoe, foi criado, por questões comerciais para aparentar uma ascendência flamenga ao escritor, nunca confirmada. Seu sobrenome, de fato, era Foe – palavra que, em inglês, significa também adversário, antagonista, desafeto, inimigo.
Traiçoeiro, elegante e inesperadamente lírico, Foe é uma obra soberba.
Autor: J.M. Coetzee
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 27,93 (144 págs.)