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Da sobrevivência dos deuses

6 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

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Nos anos em que viveu em Paris, Heinrich Heine escreveu uma série de trabalhos sobre a mitologia pagã, através dos quais rastreou os vestígios da sobrevivência dos deuses antigos na história do ocidente. Um desses trabalhos é a sequência de narrativas Os Deuses no Exílio, que elucubra sobre o destino das divindades antigas depois do surgimento do cristianismo.

Heine apropriou-se de diversos materiais históricos, narrativas e mitos, lendas recolhidas pelos irmãos Grimm ou sagas populares suecas – destas, três encontram-se traduzidas neste volume e uma dão ideia do modo como a mitografia heiniana reelabora as fábulas antigas: utiliza criativamente suas fontes, reinventando-as.

São pequenas narrativas, das quais há duas versões, uma em alemão e outra em francês. A edição brasileira, publicada pela editoras Iluminuras, traz ambas traduzidas. O livro, para tanto, traz traduções de Hildegard Herbold, Marta Kawano, Márcio Suzuki, Rubens Rodrigues Torres Filho e Samuel Titan Jr., selecionadas e organizadas por Marta Kawano e Márcio Suzuki. Mariana Ianelli, em resenha publicada no jornal Rascunho, contenxtualiza: “Publicado primeiramente em francês, em abril de 1853, três anos antes do fim da vida e do exílio de Heine em Paris, esse texto causou alvoroço no meio literário não somente da França, mas também da Alemanha, onde chegou a circular clandestinamente, sob censura, em versões não autorizadas pelo autor”. De acordo com Ianelli, na “versão francesa do texto, Heine começa contando a história de um certo bacharel Henri Kitzler, envolvido no megalômano projeto de uma Magnificência do cristianismo, um manuscrito, no fim, atirado ao fogo, como “oferenda expiatória” aos antigos deuses mortos pelo triunfo da cruz. Com essa narrativa introdutória, o autor passa a olhar para os templos arruinados, “fortalezas de Satã” aos olhos dos cristãos, e o que o poeta vê, na derrocada dos costumes pagãos, é o espírito alegre do helenismo ser banido pela vitória de “nazarenos melancólicos”. Se em tempos primitivos os deuses foram expulsos do Olimpo pelos Titãs, obrigados a se refugiar na terra sob a forma animal, o cristianismo seria o novo gigante a rechaçar os deuses da terra, levando-os a mais uma metamorfose, agora sob a forma humana. Baco, irreconhecível debaixo do capuz de um monge tirolês, encarna aí perfeitamente a defesa do mito “na pele de carneiro da humildade”, retomando o poema de Heine”. Ianelli ainda pontua, concluindo: “Sobre a atividade mitográfica de Heine, aliás, que abrange desde canções populares a livros eruditos, é precioso o estudo de Márcio Suzuki, intitulado A anatomia comparada em literatura, expressão usada pelo próprio poeta em Os deuses no exílio. Confirma-se, com este ensaio, que o rastreamento de elementos mitológicos, exercido com argúcia por Heine, denota um trabalho que de longe transcende o de um pesquisador, pois seu desafio é reavivar na palavra o poder dos mitos e dar à escrita “uma fertilidade helênica”, como diz Suzuki, que “se contrapõe à linguagem esquálida e impotente dos ‘nazarenos’”. Pensando, portanto, na literatura como reduto dessa força mágica, seria interessante sondar, hoje, com olhos heinianos, sob quais formas literárias os deuses ainda sobrevivem”.

Muitos são os autores que se inspiraram em Os Deuses no Exílio. Théophile Gautier, por exemplo, escreveu uma continuação, intitulada Sylvain, e Eça de Queiroz, que conhecia o texto pela versão francesa, reavivou o tema do desterro das divindades pagãs em trechos de suas Prosas Bárbaras e o ironizou na Correspondência de Fradique Mendes. Jorge Luis Borges, na “crônica” Rognarök, conta a sua versão do destino que coube aos deuses: “Tudo começou pela suspeita (talvez exagerada) de que os Deuses não sabiam falar. Séculos de vida fugitiva e feral tinham atrofiado neles o humano; a lua do Islã e a cruz de Roma tinham sido implacáveis com esses prófugos. Testas muito baixas, dentaduras amarelas, bigodes ralos de mulato ou de chinês e belfos bestiais mostravam como degenerara a estirpe olímpica. Os seus atributos não correspondiam a uma pobreza decorosa e decente, mas ao luxo maligno das casas de jogos e dos lupanares do Bajo. Numa botoeira sangrava um cravo; num saco justo adivinhava-se o vulto de uma adaga. Bruscamente sentimos que jogavam a sua última cartada, que eram manhosos, ignorantes e cruéis como velhos animais de presa e que, se nos deixássemos tomar pelo medo ou pela pena, acabariam por nos destruir. Tiramos os pesados revólveres (de súbito apareceram revólveres no sonho) e alegremente demos morte aos Deuses”.

A edição brasileira traz ainda, em tradução feita por Rubens Rodrigues Torres Filho, o poema Os deuses da Grécia, escrito por Heine quase trinta anos antes, em que aparecem, personagens um tanto fantasmagóricos – Zeus destronado, Juno impotente, Afrodite envelhecida –, que despertam no poeta a compaixão e que o levam a defender os deuses vencidos na luta contra os deuses novos: “dominantes e tristes deuses,/ a malícia na pele de carneiro da humildade”. Defesa que ressurge em Os deuses no exílio.

Heine nasceu na Alemanha, em 1797. Poeta, ensaísta, novelista e dramaturgo, foi considerado por Nietzsche “um artista da língua alemã”, foi um dos grandes nomes do romantismo alemão. Sua obra estende-se da poesia lírica à filosofia e influenciou inúmeros autores, como Brecht e Dostoiévski. Em 1831, emigrou para a França, por razões políticas e ali foi prestigiado por literatos e artistas, que o acolheram no período do exílio, que se estendeu por mais de duas décadas de exílio. Faleceu em Paris, em 1856.

Marcelo Coelho, em análise escrita ao jornal Folha de São Paulo, Heine “traz uma brisa de humor e fantasia” ao tema da religião. Segundo Coelho, o livro é composto por uma “prosa levíssima, em que se trançam lendas medievais, comentários contemporâneos e personagens extravagantes” e “a”teoria” do poeta, ao mesmo tempo cômica e melancólica”, o crítico assim brevemente expôs: “Os antigos deuses da Grécia, na verdade, existiram de fato. Vivem escondidos até hoje, nos mais variados disfarces e nas mais humildes ocupações. Ao lado de uma cabra velhíssima e de uma águia depenada, Júpiter se arrasta caçando coelhos numa ilhota do mar do Norte. Marte, o deus da guerra, foi visto servindo como lansquenete nas tropas de um general alemão. Outro deus grego, ao que se conta, anualmente aparecia vestido de monge a um barqueiro tirolês. Pagava para usar a balsa do bom homem, durante a noite, devolvendo-a ao amanhecer. O barqueiro um dia se ocultou na embarcação, para ver o que acontecia. Aportam a uma ilha onde homens de pés de cabra e mulheres enlouquecidas se entregam à orgia. “Caro leitor”, escreve Heinrich Heine, “ia me esquecendo de que você fez seus estudos e é perfeitamente instruído, de modo que, desde as primeiras linhas, compreendeu tratar-se aqui de um bacanal, de uma festa de Dioniso”. Mas o barqueiro, que nada sabia de cultura clássica, foi denunciar a imoralidade no convento mais próximo. O abade dá uma risada, manda-o tratar da vida; era o próprio Baco quem se disfarçava sob o hábito monacal. No meio dessas narrativas, que Heine encontrou em coletâneas do folclore germânico, aparecem personagens amalucados, com quem o narrador conversa”. Segundo Coelho, “o próprio significado da obra parece variar, num efeito furta-cor, segundo o ângulo com que a lemos. Seria, aparentemente, uma condenação da moral cristã, ou mais exatamente, da moral vitoriana. Os pobres deuses gregos, símbolos de uma época mais bela e poética, foram varridos pela dura doutrina dos padres da igreja”. Assim, o artigo finaliza, com ironia: “O capricho das crenças humanas, que Heine ironiza, reproduz também as variações da opinião pública e, em especial, os vaivéns da política francesa na época em que ele viveu. Mutabilidade que não deixa de se refletir na forma literária do autor – ele próprio um exilado político. Dizem que se Deus não existe, tudo é permitido. Mas acreditar em Deus dá a muita gente a permissão para tudo também. Sempre há lugar para os demônios – enquanto Heine assiste divinamente, do seu exílio, ao espetáculo”.

 

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Trecho

 

Netuno continuou sendo, portanto, o soberano do reino das águas, assim como Plutão, apesar de satanizado, permaneceu o príncipe do mundo subterrâneo. Eles tiveram melhor sorte do que seu irmão Júpiter, o terceiro filho de Saturno, que chegou ao poder no céu depois da queda do pai e, como rei do mundo, exerceu despreocupadamente seu alegre governo ambrosíaco no Olimpo, com o cintilante séquito de risonhos deuses, deusas e ninfas de honra. Quando sobreveio a funesta catástrofe, quando foi proclamado o regime da cruz, o regime do sofrimento, também o grande Cronida emigrou, sumindo no tumulto provocado pela invasão dos bárbaros.

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OS DEUSES NO EXÍLIO

Autor: Heinrich Heine
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 26,60 (168 págs.)

 

 

 

 

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