Arquivo da tag: Blanchot

Guia de Leitura

Livros que usam passagens ou personagens da Odisseia como argumento  

19 março, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada [i].

 

adorno e horkheimer

Adorno e Horkheimer, “Dialética do esclarecimento”

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer tomam a Odisseia como paradigma das buscas e errâncias humanas, uma vez que, grosso modo, a  figura de Ulisses é compreendida como prototípica do movimento mito-esclarecimento-mito, cuja problematização articula a crítica desenvolvida pelos dois filósofos ao longo do livro: eles descobrem, na história de Ulisses e de seu retorno a Ítaca, a primeira alegoria da constituição do sujeito. Assim, a Odisseia é interpretada, por um lado, como história da razão desencantada dos artifícios míticos; por outro lado, mostra como a emancipação do mito que leva à idade da razão é resultado de uma gênese violenta. Continue lendo

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lançamentos

Un coup de dés

17 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Mallarmé, por Gauguin.

O poema Um lance de dados, de Mallarmé, ganhou nova tradução, realizada por Álvaro Faleiros e publicada pela Ateliê Editorial. O tradutor procurou estabelecer um diálogo com a miríade de trabalhos dedicados ao poema, em especial a consagrada tradução feita anteriormente por Haroldo de Campos [Perspectiva, 1977], que apresentou de maneira especial Mallarmé ao público leitor brasileiro. A cuidadosa edição, bilíngue, conta com um texto de apresentação da proposta de tradução, escrito por Faleiros – seu percurso concentra-se no aspecto tipográfico do poema, o que desconsidera, em parte, áreas das subdivisões prismáticas que permeiam o texto. O volume traz também uma leitura crítica do poema realizada por Marcos Siscar, bem como o prefácio, que acompanha o poema desde sua primeira edição, introduzido por Mallarmé e seguido do pedido do autor para que, logo após sua “inútil leitura”, fosse pelos leitores esquecido. Paradoxalmente, o prefácio é um verdadeiro programa da “nova arte” poética inaugurado pelo poema. Nesse prefácio, Mallarmé avisa: a diferença “de caracteres de impressão entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita a importância de sua emissão oral”.

Um lance de dados, longo poema de versos livres e tipografia revolucionária, desempenhou um papel fundamental na evolução da literatura no século XX.

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matraca

Poesia delirante

8 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Gravura original de Hans Bellmer – Les Chant de Maldoror,1971.

Isidore Lucien Ducasse, sob o pesudônimo Conde de Lautréamont, tornou-se conhecido como um dos poetas mais instigantes do século XIX. Nascido em Montevidéu, “nas costas da América, na foz do La Plata”, como diz o Canto I da sua obra-prima Os Cantos de Maldoror, ao final da infância mudou-se com o pai para a França. Ali, desenvolveu uma poesia que, por André Breton, foi considerada um dos precursores do surrealismo, e que fascinou autores tão diversos como Malraux, Gide, Neruda e Ungaretti. Lautréamont, porém, morreu aos 24 anos, em 1870, desconhecido. Somente dezesste anos depois de sua morte começou a tornar-se o mito que é hoje em dia, graças a sua extraordinária ousadia e à criatividade completamente livre de seu texto. O filósofo Gaston Bachelard foi um dos primeiros a formular em um livro seu comentário à obra de Lautréamont, em 1939. Octavio Paz, por exemplo, com a linguagem de um Maldoror, disse: “A história da poesia moderna é a de um descomedimento. […] O astro negro de Lautréamont preside o destino de nossos maiores poetas”.

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matraca

O alcance da visada de Hermann Broch

21 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Hermann Broch

Grandioso lançamento deste mês, o livro Espírito e espírito de época – Ensaios sobre a cultura da modernidade [Geist und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne), reúne seis ensaios do austríaco Hermann Broch, um dos mais relevantes escritores do século XX.

Traduzidos por Marcelo Backes, os ensaios foram escritos entre os anos de 1933 e 1949 e versam sobre arte, mito e direitos humanos, contextualizados pela decadência dos valores, característica do fin-de-siècle – época marcada pelo fim do império dos Habsburgo –, cujo ápice foram os horrores do nazismo.

Unindo diversas frentes intelectuais, pensando a literatura em relação à filosofia, à história, à política, Broch, por exemplo, foi um dos primeiros intelectuais a reconhecer o trabalho de James Joyce, a respeito de quem escreveu o ensaio “James Joyce e o presente”, incluído neste volume.  Continue lendo

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Literatura

O fato linguístico, nu

13 dezembro, 2013 | Por Isabela Gaglianone

“Naquela quinta-feira de começante abril, meu sapiente amigo, mestre Martial Canterel, covidara-me, com alguns outros de seus íntimos, a visitar o imenso parque que rodeia sua bela vila de Montmorecy.

Locus Solus – a propriedade se chama assim – é um calmo refúgio onde Canterel gosta de levar adiante, com toda tranquilidade de espírito, seus múltiplos e fecundos trabalhos. Nesse lugar solitário, ele está protegido das agitações de Paris […]”.

Duchamp, frame de “Anemic cinema”

Acaba de ser lançado o livro Locus Solus, de Raymond Roussel, pela Cultura e Barbárie Editora. Pouco divulgada no Brasil, a obra do francês foi, entretanto, ponto de convergência de filósofos e críticos do século xx como suporte e inspiração para o desenvolvimento de questões ontológicas, epistemológicas e estéticas. Na literatura, a influência de Roussel estende-se do surrealismo ao “nouveau roman“. Conhecido por transformar as palavras em imagem, através de seus textos a linguagem separa-se de sua significação comum e atinge outros sentidos. Michel Foucault, no livro consagrado a Roussel – Raymond Roussel (a tradução em português, publicada em 1999 pela Forense Universitária, está indisponível) –, define que há uma linguagem circular nos textos rousselianos, nos quais ele exibe imagens e, em seguida, revela com precisão a história de cada uma delas, bem como seu funcionamento. De modo que há um ciclo, no qual a narrativa recupera a imagem inicial, que fora construída pela linguagem, e a explica. Para Foucault, a explicação repete o processo realizado pelas máquinas e o torna mais palpável e, os textos de Roussel, assim, podem ser considerados uma espécie de demonstração do poder da linguagem, através do qual máquinas e experimentos – existentes apenas através de palavras – tornam-se possíveis.

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte II.

12 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

A ironia de Robert Musil chegaria a ser desconcertante, não fosse sua elegância, a sutileza com que simplesmente permeia as situações do romance. A ironia não é escancarada em palavras ou expressões, reside antes no simples espelhamento de diferentes relações entre diferentes personagens, à maneira de uma fuga musical. Essa ironia é o que faz satírico O homem sem qualidades. Filosoficamente satírico, inclusive, pois põe em questão a moral frente à impessoalidade do homem moderno, enquanto homem de pensamento, imerso numa complexa dinâmica de possibilidades e impossibilidades. Movimentos de paixão e razão, utopias de resguardo inescrutável. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte I.

6 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

no princípio

Filosofia então teve início
na tentativa de liquidação
do universo (arranjo,
adereço, cosmético): promessa
de fluidez sem caroço
e coisa e Tales.

Meditações mediterrâneas. Hidráulica
arcaica. Absoluto
dissoluto.

A primeira
imprecisão é a que fica?

Rubens Rodrigues Torres Filho

 

MUSIL, O homem sem qualidades

(Nova Fronteira, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth)

O homem sem qualidades é logo apresentado a seu leitor. Sua principal qualidade é não ter nenhuma, pois ele é desprovido do dito senso de realidade e possui, em seu lugar, um senso de possibilidade:

Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que     também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (…) não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. (…) podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades” (pp. 34-36).

Se concordarmos com Maurice Blanchot, veremos o tema do livro inscrito em seu título e o tal ‘senso de possibilidade’, assim exposto nas primeiras páginas do monumental romance, como sua chave fundamental de leitura.

A expressão ‘homem sem qualidades’, embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter o sentido imediato, e de deixar perder-se a idéia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial, diz Musil em suas notas, é que ele não tem nada de particular.”
(Blanchot, O livro por vir).

O homem em questão, portanto, seria não exatamente sem qualidades, mas sem peculiaridades. “Nada, precisamente nada!”, “eis a espécie que nossa época produziu”, é o que diz sobre ele o antigo amigo que lhe confere a alcunha. Tudo, para este homem sem peculiaridades, o que acontece e também o que não acontece, equivale-se como variações plausíveis, genuínas possibilidades. Por isso ele não consegue decidir-se, nem mesmo por um caráter. Por isso talvez também Musil não tenha conseguido jamais terminar seu romance. Pois o romance é inacabado, mas metaforicamente também o é seu protagonista, impreciso, em seu mundo restrito a infinitas e incontornáveis potencialidades.

Num incerto salto tigrino que corre o risco de nos levar tão somente a um anacronismo berrante, fazem coro palavras de nosso contemporâneo escritor espanhol Javier Marías no seu romance Coração tão branco:

(…) o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. (…) O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada.
(Marías, Coração tão branco).

Para ele, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido entrelaçam-se, tem a mesma concretude, apesar serem definitivos e desembocarem na retumbante pergunta, “e agora?”. Para o homem sem qualidades, o que não existiu não deixa de existir como potência e resguarda-se em divagações ou investigações filosóficas, especialmente morais, que se desdobram em suas ações e opiniões. Também o que aconteceu poderia ter acontecido de outra maneira. Os fatos estão sempre prestes a inverterem-se de acordo com as relações estabelecidas, dentro dos maleáveis limites da pura possibilidade. Mesmo realidade e utopia mesclam-se indefinidamente. A verdade perde seu estatuto ontológico e desmorona-se em fragmentos possíveis.

O tema desenvolve-se no personagem e vice-versa. Os dois complexos temáticos que dividem o livro e sobre os quais modula sua tonalidade acabam sem peculiaridades que os explique ou resolva. Tanto quanto o homem sem qualidades, são pura plausibilidade. É por isso que Blanchot pode referir-se ao protagonista como uma representação do homem moderno: impessoal, abstrato, imerso na “neutralidade das grandes existências coletivas”, a quem as sequências de possibilidades são ilimitadas e que, “por vocação e por tormento, [tem] de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”. Ulrich – nosso protagonista ganha um nome após ter sido apresentado como um “homem sem qualidades”, mas jamais um sobrenome – é uma abstração. Uma abstração intelectual, cuja humanidade é dramática, pois desenrolada principalmente no incesto nunca concretizado; mesmo sua relação consigo mesmo tem que ser projetada num outro, quase gêmeo, a única possibilidade de amar a si mesmo é através de um espelho.

A condicionalidade é perpétua e irresoluta. Ao contrário do que ocorre no conto “Na galeria”, que Kafka inicia com uma partícula condicional “se”, numa frase que é todo um parágrafo. Ela guarda uma possibilidade que é somente sonhada, o que diz o segundo parágrafo, espelhado: a realidade, que faz chorar. A possibilidade, alí, é quimérica, ao passo que a realidade, concreta, imutável e frustrante. O conto é marcado por quatro tempos: “se”, “– talvez”, no primeiro parágrafo, e, no segundo, “mas [uma vez que não é assim]” e “– uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundado na marcha final como num sonho pesado, ele chora sem o saber”. Em Musil não há desilusão, pois ele está imerso na imprecisão de sua própria impossibilidade.

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