“Era preciso fechar a janela: a chuva estava batendo no peitoril e espirrando no soalho e nas poltronas. Com um som fresco, escorregadio, enormes espectros de prata corriam pelo jardim, através da folhagem, pela areia alaranjada. A calha tremia e engasgava. Você estava tocando Bach. A tampa laqueada do piano erguida, debaixo dela uma lira, e os martelinhos batiam nas cordas. A toalha de brocado, amassada em dobras ásperas, tinha escorregado um pouco da cauda, derrubando uma partitura aberta no chão. De quando em quando, em meio ao frenesi da fuga, seu anel batia na tecla enquanto, incessante, magnífica, a chuva de junho atacava as vidraças. E você, sem parar de tocar, a cabeça ligeiramente inclinada, exclamava, no ritmo da música: ‘A chuva, a chuva… Eu vou afogar a chuva…’ […]”.
São 68 Contos reunidos, que Vladimir Nabokov escreveu entre os anos 1920 e 1950, a maioria deles traduzidos pela primeira vez para o português, por José Rubens Siqueira. Reunidos cronologicamente, esses contos revelam a engenhosidade do estilo de Nabokov, veia por onde correram sua criatividade inventiva e uma ironia sagaz, destiladas pelo passar dos anos. Continue lendo