Literatura

De delgadas raízes

28 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“Era preciso fechar a janela: a chuva estava batendo no peitoril e espirrando no soalho e nas poltronas. Com um som fresco, escorregadio, enormes espectros de prata corriam pelo jardim, através da folhagem, pela areia alaranjada. A calha tremia e engasgava. Você estava tocando Bach. A tampa laqueada do piano erguida, debaixo dela uma lira, e os martelinhos batiam nas cordas. A toalha de brocado, amassada em dobras ásperas, tinha escorregado um pouco da cauda, derrubando uma partitura aberta no chão. De quando em quando, em meio ao frenesi da fuga, seu anel batia na tecla enquanto, incessante, magnífica, a chuva de junho atacava as vidraças.  E você, sem parar de tocar, a cabeça ligeiramente inclinada, exclamava, no ritmo da música: ‘A chuva, a chuva… Eu vou afogar a chuva…’ […]”.

 

São 68 Contos reunidos, que Vladimir Nabokov escreveu entre os anos 1920 e 1950, a maioria deles traduzidos pela primeira vez para o português, por José Rubens Siqueira. Reunidos cronologicamente, esses contos revelam a engenhosidade do estilo de Nabokov, veia por onde correram sua criatividade inventiva e uma ironia sagaz, destiladas pelo passar dos anos. 

Como analisou Gustavo Melo Czekster, em resenha do livro, ao acompanhar “o percurso criativo de Nabokov, percebe-se uma evolução nítida dos primeiros contos até os últimos. Os temas deixaram de ser o estranhamento de um russo vivendo no ambiente ocidental e ganharam intensidade e vibração. A evolução da forma, a progressiva diminuição dos textos em busca das palavras corretas para exprimir o sentimento exato, o posicionamento do narrador, tudo demonstra o crescimento interno de um escritor em busca da saciedade das suas vozes criativas. Nos primeiros contos, fica nítido que Nabokov tentava ser um escritor; nos derradeiros, resta claro que, mais do que um simples autor, ele se esforçava para ser humano e, assim, atingir as almas de todos os seus leitores. […] mesmo nos seus piores momentos, a prosa de Nabokov refulge e jamais perde o rumo. Os seus contos mais simples figurariam com honra no livro de qualquer escritor. As descrições vívidas dos sentimentos experimentados pelas personagens encantam pela sua simplicidade e, ao mesmo tempo, pela forma quase poética com que são construídas”.

Vladímir Vladímirovitch Nabókov (1899-1977) nasceu em São Petersburgo, onde viveu até 1917, ano em que a conjuntura revolucionária que derrubou o Czar Nicolau II fez com que sua família emigrasse, após ter perdido todos os bens durante a revolta. Partiram primeiro em direção à Crimeia, mais tarde para Inglaterra e, em 1923, fixaram residência por mais de uma década em Berlim. No primeiro período de exílio, ainda sob o pseudônimo Vladímir Sírin, Nabókov destacou-se como escritor. Também seria ilustre por seu trabalho como tradutor, professor, crítico literário e por sua pesquisa enquanto lepidopterologista (especialista em borboletas).

Sua prosa nos contos, como analisou Graziela Schneider obedece a “procedimentos linguísticos e estilísticos” que são “revelados no ritmo, por vezes alucinante em frases longas que irrompem de um fôlego só, por vezes tomado por orações curtas e fulminantes, nos efeitos pictóricos e sonoros e nas guinadas de discursos: do indireto para o direto, do exterior para o interior das personagens”.

Seus contos vão das fábulas apaixonadas a relatos melancólicos sobre a tragicidade da sobrevivência sem recursos em Berlim; vão de histórias cômicas a impactantes recordações da infância.

 

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Naquele dia feliz em que a chuva castigava e você tocava tão inesperadamente bem, veio a resolução de alguma coisa nebulosa que tinha surgido imperceptivelmente entre nós depois de nossas primeiras semanas de amor. Eu me dei conta de que você não tinha poder sobre mim, de que não era você apenas a minha amante, mas a terra inteira. Era como se a minha alma tivesse estendido incontáveis sensores e eu vivesse dentro de tudo, percebendo simultaneamente as cataratas do Niágara ribombando muito além do oceano e as longas gotas douradas farfalhando e estralejando na alameda. Olhei a casca brilhante das bétulas e de repente senti que, em vez de braços, eu possuía ramos inclinados cobertos de pequenas folhas molhadas e, em vez de pernas, mil delgadas raízes, retorcendo-se para dentro da terra, embebendo-se nela. Eu queria assim me transfundir em toda a natureza, experimentar como era ser um velho cogumelo boleto com sua parte inferior esponjosa, ou uma libélula, ou a esfera solar. Estava tão feliz que de repente explodi em riso, beijei você na clavícula, na nuca. Eu até recitaria um poema, mas você detestava poesia.

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CONTOS REUNIDOS

Autor: Vladimir Nabókov
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 66,47 (832 págs.)

 

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