lançamentos

Trágico e irônico, cheio de subentendidos

4 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Filho e neto de pianistas apaixonados por música clássica, Jean Echenoz leva das partituras para a literatura o rigor preciosista. Seu último romance, 14, publicado pela editora 34 com tradução feita por Samuel Titan Jr., é um artefato de concisão perfeita, a apresentar um panorama da Primeira Guerra Mundial. Echenoz disse, em entrevista, escrever com imagens, dentro de um método visual que mistura imaginação e linguagem; a precisão dessas imagens, bem como dos ângulos pelos quais são apresentadas e desenvolvidas, é, neste livro, notável. O escritor, vencedor do Prêmio Goncourt de 1999 e um dos mais respeitados nomes da literatura francesa contemporânea, em 14 retrata, ao longo de quinze breves capítulos, a guerra a partir das histórias individuais de cinco amigos e uma mulher, que partem para o front sem imaginar o que poderiam esperar. A perspectiva da gente comum, que se viu entregue à própria sorte, sem saber se sobreviveriam à longa matança e se viriam a recomeçar suas vidas, um dia, é delineada por Echenoz em um estilo apurado, avesso a toda ênfase sentimental ou épica. A narrativa mostra a separação entre a euforia dos primeiros dias, em meio à qual acreditava-se que seria uma questão de dias até que a guerra acabasse, e o longo horror das trincheiras. O livro conquistou a crítica, foi um sucesso de vendas e é considerado uma obra-prima.

Em artigo escrito ao jornal El País, Miguel Mora cita Nathalie Crom, crítica literária francesa que, em análise ao livro, aponta que Echenoz não demora-se a descrever as trincheiras, o frio, os gases, os corpos despedaçados. Segundo ela, “sem aludir à violência nem ao espanto”, a novela “é fulgurante, precisa, grave; a guerra se converte em uma circunstância crucial, perturbadora, para o destino anunciado dos indivíduos a que decidisse pegar”. Nas palavras de Crom, a “melancolia, misturada com ironia, vivacidade e elegância, rechaça a ênfase trágica, mas a novela é impregnada por um pesar indizível, de um fatalismo enunciado a meia voz. Uma meditação sobre o destino do indivíduo, mas também o das gerações. Levada por um fraseado que alcança a perfeição. Controlado, agitador, soberbo”. Ela ainda destaca o gosto enciclopédico, o sentido flaubertiano da gramática e o ritmo, afirmando que a novela a faz lembrar por vezes o cinema mudo, por outras, um quadro cubista; seu âmago, para ela, é um “antimilitarismo detalhado, absoluto”.

Em 14, nunca se chora; ninguém grita; ninguém questiona o trágico destino do homem. Apenas avança-se no campo de batalha, como material bruto do horror da guerra.

_____________

Trecho:

Como o tempo se prestasse às mil maravilhas e como fosse sábado, dia em que suas funções lhe permitiam folgar, Anthime saiu depois do almoço para dar uma volta de bicicleta. Seus planos: aproveitar o sol franco de agosto, fazer algum exercício e respirar o ar do campo, talvez até ler um pouco, deitado sobre a relva, uma vez que prendera no quadro da bicicleta, por meio de um cabo elástico, um livro volumoso demais para a cestinha de arame. Depois de sair da cidade à roda solta e pedalar sem esforço por dez quilômetros planos, teve de se aprumar feito uma bailarina, balançando-se em pé da esquerda para a direita, começando a suar para valer tão logo surgiu uma colina. É verdade que não era uma colina alta, sabe-se bem que altura elas têm na Vendeia, era só um morro, mas saliente o bastante para que dali se pudesse desfrutar uma boa vista.

Tendo Anthime vencido a subida, uma ventania estrepitosa começou a soprar brutalmente e por pouco não lhe leva o boné e derruba a bicicleta -um sólido modelo Euntes, concebido por e para eclesiásticos, comprado de um vigário que dera para sofrer de gota. Movimentos de ar de amplitude tão viva, sonora e brusca assim são bem raros em pleno verão, ainda mais sob um sol tão forte, e Anthime teve de se apoiar num dos pés, o outro sempre sobre o pedal, a bicicleta ligeiramente inclinada, enquanto voltava a fixar o boné na cabeça, contra o vento ensurdecedor. Então contemplou a paisagem ao redor: aldeias espalhadas por todos os lados, campos e pastagens à vontade. Invisível, mas sempre lá, vinte quilômetros a oeste, arfava ainda o oceano, pelo qual ele já se aventurara quatro ou cinco vezes, mesmo que, não sabendo pescar direito, Anthime não tivesse sido muito útil aos companheiros -sua profissão de contador autorizando-o, de todo modo, a desempenhar o papel sempre bem-vindo de listar e contar os carapaus, merluzas, solhas, rodovalhos e outros linguados na volta ao cais.

Estávamos no primeiro dia de agosto, e Anthime correu os olhos pelo panorama: sozinho no alto da colina, viu um punhado de lugarejos, cinco ou seis conglomerados de casas baixas aglutinadas ao redor de um campanário, ligados por uma tênue rede viária pela qual circulavam não tanto os raríssimos automóveis mas sim as carroças atreladas a bois ou cavalos, transportando a colheita de grãos. Uma paisagem aprazível, sem dúvida, apesar de momentaneamente perturbada pela irrupção ventosa, fragorosa, nada habitual naquela estação, que obrigava Anthime a segurar a viseira do boné e ocupava todo o espaço sonoro. Não se ouvia nada além daquele ar em movimento; eram quatro horas da tarde.

Passeando os olhos distraidamente de um lugarejo a outro, Anthime reparou num fenômeno que desconhecia. No alto de cada um dos campanários, de uma vez e a um só tempo, começou um movimento, um movimento minúsculo mas regular: o vaivém de um quadrado negro e de um quadrado branco, sucedendo-se a cada três segundos, disparando como luzes alternadas, um pulso binário que lembrava a válvula automática de certas máquinas da fábrica. Anthime contemplou, sem compreender, aqueles movimentos mecânicos, que de longe mais pareciam cliques ou piscadelas de desconhecidos.

Depois, de repente, detendo-se tão subitamente quanto começara, o rugido envolvente da ventania deu lugar ao barulho que até então encobrira: eram os sinos que, pondo-se a badalar no alto dos campanários, soavam em uníssono, num frenesi grave, ameaçador, pesado, no qual, apesar da pouca experiência, por não ter idade para ter seguido muitos enterros, Anthime reconheceu por instinto o som do dobre -que só raramente se ouve e cuja imagem lhe chegara antes do som.

O dobre, em vista do estado presente do mundo, só podia significar a mobilização. Como todo mundo, Anthime meio esperava por ela, mesmo sem pôr muita fé, mas jamais teria imaginado que cairia num sábado. Sem reagir de pronto, ficou pelo menos um minuto a escutar os sinos que balançavam solenemente e então, endireitando a bicicleta e pondo o outro pé no pedal, deixou-se deslizar encosta abaixo antes de tomar o rumo de casa. Um sacolejo mais brusco, e, sem que Anthime notasse, o livro volumoso caiu do quadro, abriu-se durante a queda e foi parar à beira da estrada, sozinho para todo o sempre, repousando de bruços sobre um capítulo intitulado “Aures Habet, et non Audiet”.

Tão logo entrou na cidade, Anthime começou a ver as pessoas saindo de casa e formando grupos antes de convergir para a praça Royale. Os homens pareciam nervosos, febris, acalorados, viravam-se para se interpelar uns aos outros, faziam gestos desajeitados e mais ou menos seguros de si. Anthime foi deixar a bicicleta em casa antes de se juntar ao movimento geral, que agora confluía de todas as artérias rumo à praça, onde se agitava uma multidão sorridente, brandindo bandeiras e garrafas, gesticulando e se comprimindo, mal deixando espaço para as carroças que já iam transportando os primeiros grupos. Todo mundo parecia bem contente com a mobilização: debates inflamados, gargalhadas desmedidas, hinos e fanfarras, exclamações patrióticas estriadas de relinchos.

Do outro lado da praça, junto a uma loja de tecidos finos na esquina da rua Crébillon, para lá da turba animada, rubra de fervor e suor, Anthime distinguiu a silhueta de Charles, cujo olhar tentou capturar a distância. Não conseguindo, tentou abrir caminho entre as pessoas. Mantendo-se à margem do acontecimento, trajando, como no escritório da fábrica, um terno que culminava numa fina gravata clara, Charles lançava um olhar impassível sobre o tumulto, a máquina fotográfica modelo Rêve Idéal, dos fabricantes Girard & Boitte, pendurada no pescoço, como de hábito. Avançando em sua direção, Anthime teve de fazer o esforço de se empertigar e relaxar ao mesmo tempo, tarefa antinômica mas necessária, a fim de vencer o constrangimento acanhado que a presença de Charles, quisesse ou não, despertava nele. O outro mal o encarou, desviando os olhos para o anel de sinete que Anthime levava no dedo mínimo.

Veja só, disse Charles, essa é nova. E na mão direita. Em geral se usa na esquerda. Eu sei, reconheceu Anthime, mas não é por nada, é porque eu sinto uma dor no punho. Ah, sei, condescendeu Charles, mas não atrapalha na hora de cumprimentar as pessoas? Não cumprimento tanta gente, precisou Anthime, é mais por causa dessa dor no punho direito, melhora um pouco. É meio pesado, mas funciona. Uma coisa magnética. Magnética, Charles repetiu num átomo de sorriso, expirando outro átomo pelo nariz, sacudindo a cabeça, dando de ombros e desviando o olhar, os cinco movimentos num único segundo -e Anthime se sentiu novamente humilhado.

E então, Anthime tentou encadear, apontando com o polegar para um grupo que agitava cartazes, o que acha disso? Era inevitável, respondeu Charles, fechando um de seus olhos frios para colar o outro ao visor da máquina, mas é coisa de quinze dias, no máximo. Disso, Anthime permitiu-se objetar, eu não tenho tanta certeza. Pois bem, disse Charles, amanhã nós veremos.

[Trecho divulgado pelo caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo]

_____________

 

14

Autor: Jean Echenoz
Editora: 34
Preço: R$ 23,80 (136 págs.)

 

 

 

 

[Nota: O título de nosso texto é alusão a entrevista em que Jean Echenoz fala sobre Flaubert e, comentando a última frase do conto “Herodíade”, do livro Três contos – Comme elle était très lourde, ils la portaient alternativement (“Como era muito pesada, carregavam-na alternadamente”, na tradução brasileira [CosacNaify, 2004], feita por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr.) –, diz que “é uma frase seca, mas também generosa; visual, quase cinematográfica; é uma frase trágica e cômica, cheia de subentendidos”.]

 

Send to Kindle

Comentários