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A interação entre produção e dispêndio

5 dezembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Goya, gravura da série “Caprichos”

Bataille, em A parte maldita – Precedida de “A noção de dispêndio”, desenvolve noções-chave dentro de seu pensamento, tais como os conceitos de dispêndio, excesso, sacrifício, luxo e sagrado. Como conta o autor, o livro foi resultado de dezoito anos de pesquisa e reflexão; dividido em cinco partes, constituiu-se como um ensaio de economia geral, uma tentativa de representar o mundo em termos gerais, distanciando-se da explicitação da economia isolada que foca suas análises na relação entre produção, lucro e acumulação. O resultado é uma reflexão sobre o modo de representação do mundo em relação ao problema do destino da energia que circula na superfície terrestre, segundo Bataille, o modo dispendioso. Na noção de dispêndio, sua análise econômica encontra seu veio argumentativo principal.

“A parte maldita”, escrito em 1949, é um desenvolvimento do ensaio “A noção de dispêndio”, publicado de 1933. Em conjunto, ambos tratam, através da economia política, de estabelecer bases sólidas para que Bataille pudesse pensar, em 1957, o conceito de erotismo como chave de leitura da totalidade inacabada humana. O “dispêndio improdutivo” aparece aqui como fundamento da investigação humana. A noção de inutilidade que acarreta, gerada pelo gasto, pela perda de dinheiro ou de energia, é profundamente ligado à noção de erotismo posteriormente desenvolvida pela autor.

Segundo o psicanalista Wesley Peres, em resenha publicada na revista Cult, “Bataille divide a atividade humana em dois campos; o gasto improdutivo, mais tarde um equivalente do erotismo, localiza-se no segundo campo. O primeiro, o do “uso do mínimo necessário”, destinado à “conservação da vida e ao prosseguimento da atividade produtiva”, é o campo que se confunde com a noção de utilidade clássica, segundo a qual a vida tem por finalidade o prazer, mas um prazer moderado: o prazer excessivo seria patológico, devendo se submeter, por um lado, à aquisição, produção e conservação dos bens e, por outro, à reprodução e conservação das vidas humanas – o que para Bataille seria a redução da vida humana à condição mais lamentável. O segundo campo da atividade humana, oposto ao primeiro, é o dos gastos inúteis, das finalidades sem fins, ou daquilo que encontra um fim em si. O autor francês oferece uma lista de exemplos: “o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos suntuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital)”. Peres prossegue: “[…] a parte maldita é constituída de uma parte teórica (que ocupa quase metade do livro) e de quatro partes constituídas da articulação entre teoria e “dados históricos”. Como esclarece o autor, o livro pretende abordar questões gerais de economia de modo sumário, pois haveria um segundo volume, que desenvolveria as questões sumariadas neste. Todavia, no lugar deste segundo volume, Bataille escreveu, justamente, O erotismo, confirmando a impressão de sua incursão por uma economia ao avesso, uma que aponta a produção e a acumulação como secundárias com relação ao desperdício”.

Em resenha publicada no jornal O Globo, o crítico Karl Erik Schøllhammer diz: “Em sua projeção original, Bataille propunha algo mais ambicioso: uma teoria geral da “parte maldita” que abarcasse a economia e a ecologia simbólica (“A consumação”), a metafísica e o erotismo (“A história do erotismo”) e, finalmente, a subjetividade para além do sujeito (“A soberania”). Ou como ele mesmo caracteriza: “Um livro que ninguém espera, que não responde a nenhuma pergunta formulada, que o autor não teria escrito se tivesse seguido sua lição ao pé da letra, eis a excentricidade que hoje proponho ao leitor. Isso incita de imediato a desconfiança”. O projeto de Bataille se sustentava na premissa de uma distinção fundamental entre a economia política restrita e uma “economia geral”, cujo escopo abarca a totalidade da vida e, até mesmo, da energia do universo. Se a economia política de Adam Smith e Karl Marx se fundamenta na acumulação de riqueza; na perspectiva de uma “economia geral” o fundamento é a necessidade do dispêndio, uma ideia extravagante inspirada no “Ensaio sobre a dádiva” (1924), do antropólogo Marcel Mauss. Segundo Mauss, que estudava narrativas antropológicas e descrições das trocas em sociedades primitivas, os sacrifícios de riqueza eram desafios simbólicos, sempre ligados ao necessário dispêndio e à destruição de riqueza em lugar de sua preservação”.

Bataille reconhece a relevância da utilização produtiva da energia e das riquezas, porém ressalta que o turbulento movimento dispendioso faz parte da natureza humana. Segundo ele, o “movimento geral de exsudação (de dilapidação) da matéria viva o anima, e ele não poderia interrompê-lo; até mesmo, no ponto mais elevado, sua soberania no mundo vivo o identifica a esse movimento; ela o consagra, de modo privilegiado, à operação gloriosa, ao consumo inútil”. Pensando, portanto, sobre os modos como o homem lida com as riquezas, depara com o dispêndio como algo incontornável: “O sentimento de uma maldição está ligado a essa dupla alteração do movimento que a consumação das riquezas exige de nós […]. No momento em que o acréscimo das riquezas é maior do que nunca, ele acaba de adquirir a nossos olhos o sentido de parte maldita que, de qualquer forma, sempre teve”.

Trata-se de uma ácida inversão da moral econômica dominante. O reconhecimento do excesso e a transgressão do mito da alocação racional dos recursos permitem o reconhecimento de uma ordem que afeta todo o campo simbólico, com soluções comuns à psicanálise, à antropologia e à economia.
A cuidadosa edição conta com a tradução de Júlio Castañon Guimarães. A Autêntica disponibiliza um trecho para visualização.

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“De fato, do modo mais universal, isoladamente ou em grupo, os homens se encontram constantemente empenhados em processos de dispêndio. A variação das formas não acarreta nenhuma alteração das características fundamentais desses processos cujo princípio é a perda. Uma certa excitação, cuja soma é mantida no correr das alternativas a uma estiagem sensivelmente constante, anima as coletividades e as pessoas. Em sua forma acentuada, os estados de excitação, que são comparáveis a estados tóxicos, podem ser definidos como impulsos ilógicos e irresistíveis à rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente”.

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A PARTE MALDITA

Autor: Georges Bataille
Editora: Autêntica
Preço: R$ 39,00 (168 págs.)

 

 

 

 

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