Guia de Leitura

Utopia

21 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Utopia política: será, esta expressão, pleonástica?

O alicerce ideológico fundamental da utopia é bem representado pela figura mitológica de Prometeu – a ideia humanista da formação de si e, consequentemente, formação de seu entorno, de sua polis, sua sociedade, sua política.

As ficções e os comentários filosóficos aqui reunidos tem em comum partirem de críticas ao sistema econômico mercantil e suas decorrências sociais, morais, estéticas, propondo-lhe um espelhamento negativo.

“[…] assim, pouco a pouco, para onde quer que olhemos, tudo no mundo torna-se uma versão de certa figura primordial, uma manifestação daquele movimento em direção ao futuro e à identidade derradeira com um mundo transfigurado que é a Utopia, cuja presença vital, por trás de qualquer distorção, sob qualquer nível de repressão, pode ser sempre detectada, não importa quão fragilmente, pelos instrumentos e dispositivos da esperança” – Fredric Jameson, Marxismo e Forma Teorias dialéticas da literatura no séc XX [Hucitec, 1985].

 

 

Tommaso Campanella, "A cidade do sol"

Tommaso Campanella, “A cidade do sol” [disponível apenas em sebos]

Tommaso Campanella escreveu A cidade do sol em 1602, enquanto encontrava-se preso, em Nápoles. É sua mais conhecida obra política, na qual ele desenvolve a ideia de uma república ideal, baseada numa interpretação da filosofia da natureza de Bernardino Telésio, teocrática e ao mesmo tempo aristocraticamente comunista. Em 1607 um exemplar manuscrito da obra foi entregue a Caspar Schoppe, que a divulgou, realizando várias cópias, na Itália e na Alemanha.

O texto completo, “Appendice della politica detta La Città del Sole di fra’ Tommaso Campanella – Dialogo poetico”, ainda é inédito em português – a tradução está sendo desenvolvida por Carlos Eduardo Ornelas Berriel, professor de Teoria Literária da Unicamp. Em tempo: também é de Berriel a organização da “coleção Mundus Alter”, publicada pela editora da Unicamp, dedicada a traduções de utopias literárias que, diz o professor, são “essenciais para a compreensão do imaginário político moderno. […] Longe de servirem para o escapismo político, as utopias são, comumente, retratos irônicos, cáusticos e satíricos da época de seus autores”. A tradução publicada na coleção Os pensadores tem como texto de base a séria transcrição de Norberto Bobbio, feita em 1941, texto confiável e bem representativo, fundamentado na leitura de dez dos onze manuscritos então conhecidos.

A cidade do sol teria seu Estado regido por um príncipe sacerdote, o “Sol” – um “Vigário do Sol” ou Metafísico. A cidade é uma criação racional, hiper-ordenada, em que cada coisa tem seu lugar. Para manter sua ordem, o príncipe teria à sua disposição a ajuda de três sacerdotes e sábios, a Potência, a Sapiência e o Amor: o poder é a potência, o saber é a sabedoria, o querer é o amor que passou pela sabedoria – três virtudes fundamentais. A ordem e a hierarquia sociais, rígidas e eclesiais, tem toda sua organização inspirada na astrologia e devem servir à harmonia e êxito na produção coletiva.

Baseado na ideia de ordem e desígnio naturais, possivelmente de inspiração humanista e representada sobretudo pelas ideias filosóficas de Giordano Bruno – mas também de filósofos renascentistas como Marsílio Ficino, Pico de la Mirandola, Telesio e Patrizzi –, responsável pela existência coesa dos objetos – que não se deixam vencer pelo nada e a dispersão –, Campanella concebe sua Cidade de modo que nela todos aspirem ao “sol”, ou seja, ao centro do sistema.  A utopia camapanelliana é ordenada portanto por uma ideia de “religião”, no sentido de uma corrente intelectual que une todas as coisas, porém, como uma “Igreja da Natureza”, regida pelo “Sol”. De acordo com o comentário de Ernst Bloch: o pathos da ordem é o que constitui a unidade da utopia de Campanella. 

 

Michael Löwy e Robert Sayre, "Revolta e melancolia - O romantismo na contracorrente da modernidade"

Michael Löwy e Robert Sayre, “Revolta e melancolia – O romantismo na contracorrente da modernidade”

Fala-se também de uma utopia romântica – a tal ponto que Michael Löwy e Robert Sayre afirmam: “a utopia será romântica ou não será”. Os sociólogos, no livro Revolta e melancolia: O romantismo na contracorrente da modernidade, analisam a vertente revolucionária da tradição romântica. Eles mostram que o movimento se opõe, em todas as áreas (poesia, arte, política e filosofia), à civilização engendrada pela revolução industrial; a crítica romântica do mundo moderno, dolorosa e melancólica, aponta a perda de alguns valores humanos essenciais e é, em sua essência, utópica.

Os autores pensam a lógica romântica de maneira abrangente, como a saída entre “tradição e modernidade, retorno ao passado e aceitação do presente, reação obscurantista e progresso devastador, coletivismo autoritário e individualismo possessivo, irracionalismo e racionalidade burocrática”; o romantismo seria “a superação dialética dessas oposições em direção de uma nova cultura, uma nova unidade com a natureza, uma nova comunidade. Essas formas novas distinguem-se radicalmente das manifestações pré-capitalistas por integrarem determinados momentos essenciais da modernidade” e, sobretudo, “sem utopias deste tipo, o imaginário social seria limitado ao horizonte estreito do realmente existente e a vida humana a uma reprodução alargada do mesmo”.

No artigo “Do utopismo iluminista ao (anti)utopismo romântico: a crítica romântica da razão utópica”, publicado na ótima Revista Morus, Márcio Seligmann-Silva, professor da Unicamp, apresenta “a virada romântica”, que, no final do século XVIII, ocorreu na tradição da utopia. O professor, sem restringir-se “aos textos caracterizados dentro do gênero utopia stricto sensu, […] faz uma leitura da doutrina romântica do indivíduo moderno e mostra a crítica romântica da razão utópica”. Segundo ele, no “romantismo (com destaque para o primeiro romantismo alemão de Friedrich Schlegel e de Novalis e, posteriormente, para Baudelaire), a crítica do Iluminismo e do pensamento cientificista trouxe consigo uma crítica do modelo da utopia”. Um dos exemplos de Seligmann-Silva é a teoria da Modernidade de Schlegel, que “é uma teoria da construção do futuro via estetização da vida. Ele pensou o romance como uma “poesia universal progressiva”, “progressive Universalpoesie”, que une não apenas todos os gêneros, mas também a poesia a filosofia e a retórica. […] Reencontramos aqui tanto a temporalização da utopia, como também a sua estetização. […] Realizar a utopia significa poetizar o mundo. O lema que será pichado nas ruas pelo mundo afora em 1968, “a imaginação no poder”, é um herdeiro tardio desta tradição primeiro romântica”. Outro autor que embasa o argumento formulado por Seligmann-Silva é Novalis, que diz: “Antes tudo era aparição do espírito [Geisterscheinung]. Hoje vemos apenas repetição morta que nós não compreendemos. Falta o significado do hieróglifo. Vivemos ainda do fruto de épocas melhores. O mundo deve ser romantizado. Assim encontra-se novamente o sentido originário. Romantizar não é nada senão uma potenciação qualitativa. Nessa operação o si-mesmo mais baixo é identificado a um si-mesmo melhor. Assim como nós mesmos somos uma tal potenciação qualitativa. Essa operação ainda é totalmente desconhecida. Na medida em que eu atribuo ao comum um sentido mais elevado, ao usual uma aparência misteriosa, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito uma aparência de infinito eu o romantizo. – Para o mais elevado, desconhecido, místico, infinito a operação é o contrário, – eles são logaritmizados via conexão, – recebem uma expressão corriqueira”; passagem sobre a qual o professor comenta: “Romantizar significa, portanto, projetar a história em um mundo utópico: a saber, realizar essa utopia”.

 

Ernst Bloch, "O princípio esperança" [3 volumes]

Ernst Bloch, “O princípio esperança” [3 volumes]

Ernst Bloch revisitou o discurso utópico em O princípio esperança, sua obra magna, escrita entre 1938 e 1947. A própria existência, diz, é inquietante, coloca o espírito humano em um estado de “efervescência utópica”; a utopia faz parte da estrutura histórica do homem.

Bloch defende que o espírito utópico, embora pareça a princípio alheio à realidade, resguarda uma profunda preocupação com o presente e desenvolve um pensamento essencialmente crítico, a partir do reconhecimento de problemas reais. Sua ressignificação positiva do conceito de utopia baseia-se no princípio ético-político da esperança, compreendida sob luz do marxismo. Sua concepção distingue o pensamento utópico abstrato, do concreto. Para Bloch, a vontade utópica concreta autêntica não é um almejar infinito, mas o oposto, aspiração ao meramente imediato, ao conteúdo não possuído do encontrar-se e do estar-aí [Dasein], preenchido de modo adequado à felicidade.

Sua análise indica uma base real para a eliminação dos elementos apenas abstratos da utopia: o socialismo é a práxis da utopia concreta, único meio para superar as profundas contradições do sistema capitalista.

Marx comentou os socialistas utópicos franceses e criticou suas insuficiências teórico-práticas, o que fez com que toda aquela corrente intelectual fosse descartada pelo marxismo ocidental ortodoxo. Coube apenas a Ernst Bloch a tarefa de reinterpretar a utopia em Marx e a de afirmar o seu caráter positivo. Ele reafirma os conteúdos emancipatórios das reflexões marxistas, ressignificando, a partir deles, a prática da noção de utopia: “o marxismo”, diz, “resgatou o núcleo racional da utopia e o da dialética da tendência, ainda de cunho idealista, trazendo-os para o concreto”. Bloch afirma, assim, que a esperança concreta só é realizada com a participação da classe trabalhadora, humanizando a própria sociedade. Não se trata de uma espera passiva, mas de uma esperança construída, em que é necessária a participação de todos os homens, engajados no processo revolucionário. A revolução é criada pela imaginação, animada pela esperança de um mundo melhor e mais justo, mas só é admitida se reificada pela prática. Em L’esprit de l’utopie [Gallimard, 1977], obra de 1918, Bloch dizia que “é penetrando no fenômeno da esperança do futuro que o mundo, no focus imaginarius, na parte mais escondida e inteligível de nossa subjetividade, faz sua aparição”. Em O princípio esperança, ele aponta o caminho concreto: “o marxismo foi o único que promoveu a teoria prática de um mundo melhor, não para esquecer o mundo presente, como era comum na maioria das utopias sociais abstratas, mas para transformá-lo em termos dialético-econômicos”.

 

Wilhelm Reich, "A revolução sexual" [disponível apenas em sebos]

Wilhelm Reich, “A revolução sexual” [disponível apenas em sebos]

A noção política não pode haver com plenitude sem a noção de indivíduo – que, por se por um lado, é um dos pressupostos da utopia, por outro, a partir do desenvolvimento da psicanálise, ganhou um dimensionamento epistemológico e sociológico.

A liberdade de desenvolvimento do indivíduo de acordo com suas plenas capacidades psíquicas e físicas embasa o pensamento utópico do freudiano Wilhelm Reich, considerado um utopista do sexo. Para ele, a causa dos males não se encontra na propriedade privada, mas na moral sexual repressiva. Sua utopia vai além da economia e entra no corpo e em seus prazeres.

Em seu livro A revolução sexual, Reich parte da teoria freudiana da neurose repressiva – fruto de um conflito entre a libido e sua instância moral repressiva, ou entre o SuperEgo e o Ego –, porém, definirá a neurose como resultado de uma perturbação, não da libido em geral, mas da libido genital. Somente a plena satisfação da libido pelo orgasmo poderia, segundo ele, assegurar o equilíbrio do indivíduo.

A repressão da sexualidade acarreta o represamento pulsional da libido, gerando angústia, o que, por sua vez, influencia diretamente o desempenho das capacidades de trabalho do indivíduo e seu equilíbrio emocional. A teoria de Reich implica numa resposta para o antagonismo freudiano entre o indivíduo e a sociedade, através da articulação da individualidade, construída pelo poder das relações sociais e culturais. Seu pensamento utópico prevê uma sociedade em que impera a liberdade individual enquanto liberdade, primeiramente, sexual. Segundo Sérgio Paulo Rouanet, em Teoria Crítica e psicanálise, essa “é também a saída do plano estrutural das fatalidades biológicas para o plano das contradições históricas, solúveis historicamente”.

A teoria da genitalidade de Reich implica a psicanálise aliada à crítica social, o que antecipa certos elementos que depois integraram sua teoria da ideologia.

No indivíduo em que a genitalidade é assumida, o SuperEgo, responsável pela transmissão ideológica, perde sua capacidade punitiva. Nesta utopia genital, “o conflito edipiano é resolvido de forma não repressiva, o SuperEgo se debilita, e não consegue exercer eficazmente sua função de introjetar no psiquismo os valores morais inibidores.

 

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Thomas More, “Utopia”

O livro Utopia, de Thomas More, inaugurou o gênero que leva seu nome. Segundo o professor Carlos Eduardo Berriel, a obra “constitui uma metáfora sobre a Inglaterra real de seu tempo. A Utopia é na verdade uma Inglaterra virtual, ou alternativa, um modo de seu futuro Grão Chanceler demonstrar como poderia ser o país se adotasse um modo de ser diferente daquele adotado pela irrupção traumática do capitalismo mercantil, que destruía violentamente as bases anteriormente assentadas. […] Assim, a utopia nasce e se mantém como um gênero literário que soma, em uma obra de ficção, elementos da política, da economia, dos relatos de viagem, sob uma visada ética. A utopia pode ser metáfora, ironia, alegoria ou discurso moral. Numa fórmula, a utopia é sempre datada, pois inevitavelmente discute problemas do tempo de seu autor”. A ficção de Thomas More, analisa o professor, representa “um ponto de chegada do Humanismo quattrocentesco, e talvez seu limite: a concepção, construída pela práxis social, de que o homem poderia tomar para si, para suas mãos, seu próprio destino. Diversamente da concepção predominante no medievo, a existência individual e o viver associado são vistos pelo Humanismo como históricos – humanos – e, portanto plásticos, moldáveis por uma teleologia que, embora sempre existente, chegava então à uma efêmera emancipação.

Na ilha de More, bem como nas subsequentes utopias clássicas, não há propriedade privada, portanto, também não existem as noções de riqueza e pobreza. De acordo com Berriel, entretanto, este fato “não deve ser visto como um prenúncio do socialismo, embora este movimento, muitas vezes, o considere uma forma de ancestralidade. Já na República de Platão há o comunismo de bens, e mesmo o cristianismo primitivo é fortemente considerado pelos autores utópicos”.

No ideal político que A utopia traça, a sociedade é igualitária, não há miséria material, tampouco preguiça, exploração ou injustiça. More assim descreve: “O solo da Utopia não é igualmente fértil em toda a extensão da ilha, nem o clima igualmente salubre; mas defendem-se tão bem, à custa de sobriedade, contra as intempéries, e melhoram tão industriosamente o terreno, que não se vê, em parte alguma, rebanhos tão abundantes, melhores colheitas nem maior vitalidade nos homens. Estes são na Utopia, bem menos sujeitos a doenças do que no nosso mundo.” 

 

 

O pensamento utópico não é fantasioso de maneira escapista; ainda que tangencialmente, seu caráter político, compondo reflexões satíricas e metafóricas, sugere formas possíveis de uma ideal existência comum humana, uma sociedade onde todos estarão bem. Essa, inclusive, é a crítica que faz à utopia o crítico Isaiah Berlin, que, em Limites da Utopia: Capítulos da História das Idéias, questiona a pressuposição da própria ideia de bem absoluto, que ele analisa através do estudo das formas de racionalismo e anti-racionalismo que têm norteado a cultura ocidental.

Como pontua Carlos Eduardo Berriel, novamente citando o professor, “historicamente, e dentro de seu estatuto literário, as utopias sempre puderam ajudar a compreensão dos quadros culturais, sociais e políticos que as geraram. Se a utopia tiver uma função social hoje, será a mesma de sempre: criar uma imagem do mundo a partir das opções históricas postas pela realidade”.

 

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