história

As verdades já são imaginações

8 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

“Longe de se opor à verdade, a ficção não é mais do que um seu subproduto: basta-nos abrir a Ilíada para entrarmos na ficção, como se diz, e perdermos o norte; a única diferença é que a seguir não acreditamos nela. Há sociedades em que uma vez o livro fechado, se continua a acreditar e outras em que se deixa de acreditar”.

Sandro Botticelli, "Palas e o Centauro", c. 1482.

Sandro Botticelli, “Palas e o Centauro”, c. 1482.

O que é o mito? É história alterada? É história aumentada? Uma mitomania coletiva? Uma alegoria? O que era o mito para os gregos? O sentimento da verdade é muito amplo (abrange facilmente o mito), “verdade” quer dizer muitas coisas e pode até abranger a literatura de ficção. Estas são algumas das questões que norteiam o belo e erudito livro do historiador e arqueólogo francês Paul Veyne, Os gregos acreditavam em seus mitos? – Ensaio sobre a imaginação constituinte.

“A partir do exemplo da crença dos gregos em seus mitos”, diz o historiador, “eu me propus então estudar a pluralidade das modalidades de crença: crer na palavra dada, crer por experiência, etc. Por duas vezes, este estudo me projetou um pouco mais longe. Foi necessário reconhecer que em vez de falarmos de crenças, devíamos simplesmente falar de verdades”. Como colocou o escritor Gilles Lapouge, em resenha escrita para o jornal Le Monde, nesse sentido, a verdade “não é mais real que os mitos. Ela é a filha do tempo. Os homens a inventaram como inventam a História. E a verdade de agora é tão alucinada quanto todas as verdades que a precederam”.

Para Paul Veyne, não há uma oposição entre o mito e o logos, “é preciso apenas ‘depurar o mito pela razão’” e, isso, necessariamente de maneira anacrônica. É preciso depurá-lo, não contrapô-lo à razão, pois “conhecer por ouvir dizer” é também forma de conhecimento: conhecer pelo mito. “Para os gregos não existe o problema do mito; existe apenas o problema dos elementos inverossímeis contidos no mito”. No decorrer dos séculos, a tradição mítica transmite um núcleo autêntico que “cercou-se de lendas; apenas as lendas causam dificuldade, não o núcleo”. Uma tradição mítica, para os gregos, é verdadeira “apesar” do maravilhoso. É impossível que um mito seja completamente mítico.

A indagação que dá título ao livro, portanto, tem tanto sua justificativa quanto sua resposta na reflexão acerca da crença, que constitui para si o verdadeiro – que, por sua vez, pode ser facilmente considerado falso em diferentes configurações sociais. Entre a realidade e a ficção, a diferença é subjetiva. Portanto, os gregos, estes filhos da Razão, este povo de filósofos e geômetras, teriam eles verdadeiramente acreditado nos Ciclopes, ou no Minotauro? Segundo Veyne, o ceticismo dos mais doutos alternava-se com uma credulidade crítica e ambas as atitudes conviviam com a credulidade ingênua popular, que não era culturalmente desvalorizada: “Essa conviência pacífica de crenças contraditórias teve um efeito sociologicamente curioso: cada indivíduo interiorizava a contradição e pensava coisas inconciliáveis a respeito do mito, ao menos para um lógico; o indivíduo não sofria com suas contradições, muito pelo contrário: cada uma servia a um objetivo diferente”. Como aponta Christian Jacob, em resenha publicada na Revue de l’histoire des religions, em 1985, para Paul Veyne, interessa menos a natureza intrínseca do mito e da mitologia que as modalidades de suas recepções, a gama de reações que eles podem suscitar, da adesão ingênua ao ceticismo crítico; interessa-lhe sobretudo o mecanismo de adesão relacionado a uma tradição histórica ou mítica. Veyne propõe um exame crítico que extrapola a esfera da natureza e do poder dos mitos, inscrevendo-se em uma reflexão abrangente sobre a crença e a verdade; adequamos nossa crença às nossas palavras e, por isso, podemos, como o historiador aponta, acreditar inclusive em coisas contraditórias – basta reconhecer a pluralidade dos programas de verdade: “a verdade é a experiência mais histórica que há”, diz Veyne; ela é forjada pelos homens, e não existe independentemente.

A história nasce como tradição, como uma narrativa incontestável. Um exemplo extraído dos inúmeros historiadores antigos citados ao longo do livro, que transcreviam a própria tradição oral,  ilustra o argumento sobre a importante historicidade daquilo “que se diz”, cujo fundo de verdade é reconhecido pelos gregos, pois eram, segundo Veyne, movidos por dois dogmas, a saber, que ninguém pode mentir a princípio ou do começo ao fim, porque o conhecimento é um espelho; e que o espelho se confunde com o que ele reflete: “‘De minha parte’, escreve Heródoto, ‘meu dever é dizer o que me disseram, e não acreditar em tudo, e o que acabo de declarar vale para o resto da minha obra’”. Veyne conta que sobre determinada questão acerca da ancestralidade mítica de Perseu “Heródoto relata duas versões, não acredita muito na segunda, mas ‘fala dela mesmo assim, já que falam dela’”; portanto, “o que dizem já tem uma espécie de verdade”.

“Literatura de antes da literatura, nem verdadeira nem fictícia, porque externa ao mundo empírico, porém mais nobre que ele; o mito tem outra particularidade: como indica o nome, ele é uma narrativa, mas uma narrativa anônima, que podemos recolher e repetir, mas da qual não podemos ser o autor. […] Antes de ser fantasiado de história, o mito era outra coisa: consistia não em comunicar o que vimos, mas em repetir o que ‘se dizia’ dos deuses e dos heróis. Como um mito era finalmente reconhecido? O exegeta falava desse mundo superior apresentando seu próprio discurso como um discurso indireto: ‘dizem que…’, ‘a Musa canta que…’, ‘um logos diz que…’; o locutor direto nunca aparecia, porque a própria Musa apenas ‘redizia’, recordava esse discurso que era pai dele próprio”. Paul Veyne nota que “Virgilio pede à Musa que lhe ‘repita’ e garanta o que ‘dizem’ a respeito de Eneias, e não que lhe ‘recorde’ alguma coisa que ele tenha esquecido ou ignore. Poderíamos pensar que é por isso que as Musas são filhas da Memória”.

Tudo o que “se dizia”, falava por si só (já que a única coisa que fazemos é repetí-lo, como diz o historiador). A palavra é simples espelho, o mito é palavra e é histórico, e a reflexão histórica não permite reivindicar o verdadeiro. O mito não é verdadeiro nem falso, no entanto, diz a verdade no sentido em que é “espelho alegórico das verdades eternas que são as nossas. A menos que seja o espelho ligeiramente deformador dos acontecimentos passados; esses acontecimentos, serão semelhantes aos acontecimentos políticos de hoje (o mito é histórico), ou então serão a origem das individualidades políticas de hoje (o mito é etiológico). Reduzindo o mito à história ou a aitia, os gregos foram levados a debater o começo do mundo de um pouco mais de dois milênios antes deles; houve primeiro um prólogo mítico, ao qual se sucedeu o passado histórico do povo grego, que durou cerca de dois mil anos. […] Todavia, certos pensadores gregos consideravam que o mundo, com a fauna animal, humana e divina que comporta, era muito mais antigo ou até que existia desde a eternidade. Como reduzir essa imensa extensão às nossas razões? A solução desses pensadores foi acreditar numa verdade das coisas e do homem; o devir do mundo é um perpétuo recomeço, pois tudo é destruído por catástrofes periódicas, e a idade mítica é apenas o último desses períodos: é o que Platão ensina no Livro III das Leis; ao longo de cada um desses ciclos, as mesmas realidades e as mesmas invenções ressurgem, como uma rolha que a natureza das coisas faz voltar incessantemente à superfície das águas mais agitadas”.

Leandro Fernandes Dantas, em sua dissertação de mestrado, defendida em 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, intitulada “Programas de verdade, ‘mundos de crença’: o verdadeiro segundo Paul Veyne”, aponta para o uso do termo “programas de verdade” por Paul Veyne, termo que refere-se à organização de série de elementos, dados, atividades em uma unidade coerente: “temos a existência de verdades heterogêneas, singulares, e que mesmo sendo diferentes, podem ser observadas e comparadas, e com isso serem encontradas semelhanças. E é por esse motivo que vemos Veyne observar lado a lado programas de verdade de tipos diferentes. O vemos falar conjuntamente de Madame Bovary, Einstein e da guerra de Troia, por exemplo; para dizer que, em meio a diferentes regimes, encontramos similitudes”. Dantas cita Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, que em seu livro Escolher a montanha: os curiosos percursos de Paul Veyne [Humanitas, 2005], comenta: “É por isso que suas pesquisas se desenham como subidas e descidas que avaliam diferenças, pesam distinções […] seus textos sempre nos põem em contato com um pensamento atento às singularidades”; trata-se de um historiador que “inquieta-se com as crenças, a religião, a moral, a partir do que têm em comum com a política e a filosofia: são ‘regimes de verdade’”.

Existe um fundo de realidade em toda lenda. Nada é verdadeiro nem falso; o valor da verdade é redundante. Sim, os gregos acreditavam em seus mitos e, diz Paul Veyne, “o propósito deste livro era muito simples. Apenas pela leitura do título, alguém com um mínimo de cultura histórica já teria respondido: ‘Mas é claro que eles acreditavam nos mitos deles!’. Nós quisemos simplesmente fazer de maneira que o que era evidente por ‘eles’ seja também por nós e extrair as implicações dessa verdade primeira”.

 

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.Trecho.

 

“[…] mas, se a palavra é um espelho, a dificuldade é compreensível: como um espelho poderia refletir um objeto que não está lá? Refletir o que não é equivale a não refletir; inversamente, se o espelho reflete um objeto, esse objeto existe, portanto, o mito não poderia falar de nada. Conclusão: temos certeza de antemão de que o mito mais ingênuo terá um fundo de verdade, e se nos interrogarmos, com Paléfato, sobre a origem dos erros que descobrirmos nos mitos, constataremos que esses erros são simples acidentes de reprodução: o original era autêntico, mas, quando foi refletido, uma palavra foi tomada por outra, uma coisa foi tomada por uma palavra etc.
Refletir o nada é não refletir, refletir a névoa será, de modo semelhante, refletir confusamente: quando o objeto é turvo, o espelho também é. Os degraus do saber serão, portanto, paralelos aos do ser; todo o platonismo está aí. […]”

 

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OS GREGOS ACREDITAVAM EM SEUS MITOS?

Autor: Paul Veyne
Editora: Unesp
Preço: R$ 28,00 (208 págs.)

 

 

 

 

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