Witold Gombrowicz escolheu para si o signo da imaturidade.
“Pois os Maduros sentem profunda aversão pela imaturidade, e nada lhes parece mais odioso do que um ser imaturo. (…) Então, como tudo isso vai terminar? Aonde chegarei seguindo por este caminho? Como se formou em mim (pensava eu) este fascínio pela imaturidade? Seria por eu viver num país repleto de indivíduos rudes, medíocres e efêmeros, que não se sentem bem num colarinho engomado, e onde, em vez da Melancolia e do Destino, são a Inabilidade e a Bisonhice que gemem pelos campos? Ou talvez eu vivesse numa época instável, que a cada instante inventava um novo lema e um novo mote, contorcendo o rosto da melhor forma possível – numa época transitória? …” (Ferdydurke, p. 30).
Escolha que resumiu uma síntese e uma análise da época moderna e o tornou emblemático da provocação artística, da superposição caótica da literatura a redemoinhar sobre si, obsessivamente defrontando-se com sua própria caricatura. A transformação, na verdade o aprisionamento, do narrador protagonista de Ferdydurke, o primeiro romance publicado pelo autor, em um corpo de adolescente, “em um bumbum” como ele diz, parece ser a articulação irônica da representação da própria representatividade, da possibilidade representativa em sua plena interioridade, despida da lógica temporal sensória do linear e cotidiano envelhecimento, resumindo a representação do que foi com o que é; uma lógica diferente de tempo, do non finito, nunca acabado, conformado na aspereza deformativa da formação que jamais se encerra. Nem se quer encerrar, pois seria abrir mão da liberdade em relação às escolas, aos modismos estilísticos, ao dito amadurecimento acadêmico ensimesmado e pronto a explicar as linguagens modernas e modernizantes. Numa modulação à chave de leitura deleuziana¹, é a elaboração da representação refletida no tempo, no presente que atualiza incessantemente o passado, este, portanto, sempre premente: o presente como constante contração do passado, não um momento que lhe é sucessivo. Presente e passado coexistem na representação e a própria representatividade condensa o tempo de maneira circular, a todo instante, concatenando-se no flagrante de uma realidade fragmentada. A síntese do tempo, na literatura de Gombrowicz, encontra-se com a busca de um eu literário, essência de um silogismo que retira as pedras de seus pilares, seus próprios meios artísticos.
“Na verdade, fomos conspiradores mesmo [Gombrowicz refere-se aqui a ele e a Bruno Schulz]. Estávamos absorvidos pelas experiências com um material explosivo chamado Forma. Mas a forma não no sentido comum, uma vez que se tratava de ‘criação da forma’, de sua ‘fabricação’ e de ‘criação de si mesmo através da criação da forma’. Não é fácil explicar tudo isso em poucas palavras, por isso, quem tiver interesse pode consultar nossos livros. Só quero dizer que, embora cada um de nós estivesse procedendo de modo diferente (porque enquanto eu quis chegar a mim mesmo, ou ao homem em geral, através da provocação da forma e de suas explosões dissonantes, ele entregava-se gratuitamente à alquimia, gratuitamente mesmo, como um ser marginal) tivemos uma característica comum. Diante da Forma ambos fomos completamente sós. Bruno um monge sem Deus… e eu, com minha humanidade orgulhosa que foi realmente “em si”, sem nenhuma sustentação, uma espécie de imperativo categórico clamado no vazio: seja você mesmo!” (Diários).
Essa provocação da forma, da forma literária do romance, da forma artística, ele faz com seu tom sarcástico, com seus enredos fantásticos, com a criação de palavras e expressões que ilustram suas impressões sobre o mundo e sobre as relações entre as pessoas, mas, sobretudo, com a transformação de suas personagens em ícones, da imaturidade, do conservadorismo, do desejo recalcado, da sordidez, da ignorância, da bestialidade ou da modernidade, por exemplo. Suas personagens são idéias, personificadas e colocadas em confronto em contextos sociais estandartizados, alucinadamente lúcidas, são idéias colocadas em relação. Relações descaradas, despudoradas, encarnadas em formas humanas. De acordo com as relações estabelecidas, as idéias e as formas assumem caráteres inusitados, completamente dependentes dos outros elementos e das outras idéias postas em torno. Seus desencadeamentos são bizarros, grotescos, sádicos; por isso, humanamente dramáticos e sinceros.
O que Gombrowicz chama de provocação da forma punge dessas inusitadas relações que surgem da combinação de elementos a princípio estranhos, coerentes por um sentido sensorial, por um encadeamento psicológico, por um gatilho filosófico disparado com comicidade ou ironia em disparates críticos, literaria, moral e politicamente. Como as cores que numa composição visual, ao serem postas lado a lado, interferem-se e mudam-se, mutuamente. Isso acontece com os elementos mobilizados dentro do romance, ao mesmo tempo que também interfere e modifica a própria forma do romance, cuja voz protagonista, a própria individualidade do escritor, toma proporções ideais, transforma-se em idéia, sempre deformada, um monstro que realiza sua diferença na repetição de si. É a auto representação das idéias, em movimento cômico ou grotesco, ainda assim psicologicamente realista à maneira de um ininterrupto solilóquio analítico. A imagem interior do movimento das idéias evade-se para o fantástico e realiza-se numa espécie de pathos da própria linguagem. O fantasioso e o real interpenetram-se, em mútuo contraponto, para satisfazer aos caprichos dos desejos, personificados, depositários da movimentação livre da composição da forma individual, em suas circunstâncias mais íntimas, naquilo que há de sensorial na sua semântica. Literatura, linguagem e indivíduo tornam-se assim máscaras de um mesmo movimento composicional, revelador da interioridade pura, constantemente novo pois sempre relacionado com aquilo que se põe à sua volta.
A composição, assim, revela-se uma decomposição satírica, que embate a forma com os estilos maneiristas e repete-se constantemente pela combinação de analogias sensualizadas. Os romances são compostos a partir de sua própria decomposição, ou seja, de sua separação em pequenas partes e, essas, em partes menores, unidas num sistema aparentemente caótico, mas que dialoga sobre si em si mesmo, formando um cosmos de novas combinações.
“Responderei que, em minha modesta opinião, todas as partes soltas do corpo, assim como palavras, formam uma adequada construção estético-artística. E provarei que minha construção, no que se refere à lógica e à precisão, nada deixa a desejar a qualquer outra, por mais lógica e precisa que esta seja. Vejam, a parte básica do corpo – o bom e domesticado bumbum – é a base de tudo e é através do bumbum que se iniciam todas as ações. E é do bumbum, qual do tronco de uma árvore, que emanam as ramificações das específicas partes do corpo, como os dedos dos pés, mãos, olhos, dentes, orelhas, e assim mesmo algumas partes transformam-se em outras, graças a mudanças sutis e refinadas. E o rosto humano (também conhecido como “fuça”) forma a copa da folhagem da árvore, cujas partes específicas emanam do tronco que emergiu do bumbum; desta forma, a fuça encerra o ciclo iniciado pelo bumbum. (…) E o que dirão vocês quando descobrirem as mais novas e mais profundas ligações das mais diversas partes, na passagem do dedo para os dentes, o significado místico das partes mais adoradas no sentido secreto de certas articulações e, por fim, tanto no conjunto de todas as partes quanto das partes de cada parte?” (Ferdydurke, p. 99)
A dissecação é menos explicativa do que sugestiva e o desmembramento que ela realiza permite uma liberdade narrativa que imprime sentidos ambíguos e ambivalentes, desdobrados em ironias sem fim. A composição das obras, inclusive dos Diários, feita dessa maneira imprevisível de combinações de partes e das partes dessas partes, decompondo-as ainda que mantendo um todo coerente em si, acaba por criar um efeito visceral, um tanto escatológico e mesmo grotesco. Essa dissecação, exploração anatômica do texto e de sua narrativa, encontra contraponto na sensorialidade das desdobradas associações físicas e sensuais, criando um movimento ritmado, na verdade sincopado, fugidio, furtivo e, assim, sarcástico. A sensualidade fragmentada então lembra a realização da abstração artística plástica, a transformação das formas na liberdade das linhas conferindo-lhes sentidos sugestivos e inesperados; provocativos. A determinação surge da indeterminação, o pensamento engendra as relações guiado pela fisicalidade premente na decomposição, à maneira burlesca de uma caricatura. Deleuze afirma:
“O fundo que emerge não está mais no fundo, mas adquire uma existência autônoma; a forma que se reflete nesse fundo não é mais uma forma, mas uma linha abstrata que atua diretamente sobre a alma. (…) trazer o fundo à superfície e dissolver a forma. (…) Odilon Redon procedia por meio do claro-escuro e da linha abstrata. Renunciando ao modelado, isto é, ao símbolo plástico da forma, a linha abstrata adquire toda a sua força e participa do fundo tanto mais violentamente quanto dele se distingue sem que ele se distinga dela. A que ponto os rostos se deformam num tal espelho”. (Deleuze, Diferença e repetição, p. 56)
E as obras de Redon da longa fase dos desenhos negros, especialmente os feitos com carvão, como “Visão”, “Olho-balão”, “Cabeça de mártir pousada sobre uma taça”, “A aranha que ri”², são desenhos que têm um caráter fantástico, sensorial e caricatural em que a forma liberta-se, à procura de si mesma, de modo semelhante – em seus impulsos egóicos, fragmentados e simbolistas, apesar que não em suas consequências, nem pessoais nem artísticas – ao que encontramos nos romances de Gombrowicz.
A formação de si equilibra-se na formação da própria literatura. A zombaria reside na tautologia que implica necessariamente um no outro para Gombrowicz. É a provocação da forma literária, solipsista e insólita, nos enredos fantásticos que versam sobre as possibilidades combinatórias entre analogias inusitadas, escatológicas, grotescas, sádicas, nas frases fluídas, com sequências de palavras que juntas só fazem sentido naqueles contextos específicos dos romances, muitas sequenciadas sem intervalos de vírgulas, num ritmo então alucinante, é essa provocação incessante a responsável pela formação do eu lírico, sarcasticamente autobiográfico. A literatura de Gombrowicz parece personagem de si mesma. Ao mesmo tempo, ali concentra-se o drama da existência humana, da individualidade no seio do coletivo e do histórico; drama que só ao ser ridicularizado resguarda sua verdade. Zombando da formação de si, Gombrowicz alça-a a uma verdade individual e filosófica, ilumina-a em seu caráter ontológico. A busca de si torna-se condição para a liberdade intelectual. Em um contexto diferente, o crítico de arte Giulio Carlo Argan afirmou:
“Acima da exatidão técnica, da qual nossos contemporâneos fazem um culto fetichista, existe uma exatidão moral, que eles normalmente ignoram: uma exatidão no realizar não tanto a própria função quanto o próprio dever, porque há um dever, e é o meu querer ser alguma coisa de diferente daquilo que de fato sou, meu querer fazer-me com a mesma precisão com que a técnica mecânica faz um objeto. Esse querer ser é ainda um momento do meu ser, e precisamente aquele da minha individualidade ou personalidade, já que para os outros sou aquilo que sou, e aquele eu eidético, aquele meu querer ser, aquela minha intenção de ser de outro modo é a única parte de mim que me pertence exclusivamente” (Argan, “Salvezza e caduta nell’arte moderna”).
A busca do eu, contraposto ao nós, tanto no sentido artístico quanto no individual, permeia a literatura de Gombrowicz, numa espécie de cartesianismo absurdo, o artista encontra-se em seu próprio interior e assim a busca de si e a busca de si na arte tornam-se uma só; o eu resultante torna-se eidético, porque abarca o homem moderno, em busca de sua individualidade enquanto vaga pelos mitos e sombras dos monumentos intelectuais erigidos pela história.
A arte é assim problematizada pelo escárnio, pela zombaria, pelo humor, inscritos no absurdo. Sua ironia pontiaguda e certa rabugice pessimista são unidas em prol de uma crítica cômica, tanto da literatura e da crítica especializada quanto das relações humanas, psicológicas ou sociais, explorando os paradoxos, tirando proveito das contradições.
“Digam-me o que acham: na opinião de vocês, um leitor não assimila apenas partes e, assim mesmo, parcialmente? Ele lê uma parte ou um pedacinho e depois interrompe para, momentos depois, ler outro pedaço, e não é raro ele começar pelo meio ou pelo final para se mover para trás (…). E mesmo se tivesse lido a totalidade – vocês acham que ele abarcaria o todo numa só olhada e saberia apreciar a harmonia das partes sem ter um especialista ao seu lado para explicar isso a ele? E é para isso que um escritor passa anos se sacrificando, cortando ali, emendando acolá, recortando e colando, o suor cobrindo sua fronte – para que um especialista tenha que dizer ao leitor que a construção está correta? Mas sigamos em frente, ainda mais longe, ao campo da experiência cotidiana! Não é possível que o toque do telefone ou uma mosca qualquer possam distrair o leitor da leitura exatamente no momento em que todas as partes individuais se juntam na unidade da solução dramática? Ou se, naquele momento entrasse, digamos, o seu irmão e lhe dissesse alguma coisa? Os nobres esforços do autor se perdem por causa de uma mosca, de um irmão ou de um telefone! Oh, moscas desgraçadas!” (Ferdydurke, p. 100).
Seus textos são carnais, reais. O sensorial e o absurdo são unidos ao grotesco e ao fantástico, reverberando no cômico e no irônico, na caricatura de si.
“– Berg.
Ele disse aquilo calma e polidamente, com muito cuidado.
Eu disse, não menos polida e claramente:
– Berg.
Olhou para mim de relance, abaixou as pálpebrs. Ficamos ambos sentados calados, saboreando a palavra ‘berg’ como se ela fosse um réptil subterrâneo, daqueles que nunca saem à luz do dia… e eis que ele estava aqui e agora, diante de todos. Observavam-no, suponho… De repente, tive a impressão de que tudo estava se movendo para a frente, como um dilúvio, uma avalanche, uma marcha com bandeiras desfraldadas, que golpe definitivo fora deferido, um empurrão indicando o caminho! Paf! Marchar! Em frente! Movimento! Ação! Se fosse apenas ele quem tivesse dito ‘berg’, não teria nenhuma importância. Mas eu também dissera ‘berg’. E o meu berg, unindo-se ao berg dele (confidencial, privado), tirava o seu berg daquela condição confidencial. Não se tratava mais de uma inocente palavra pronunciada por um excêntrico. Era algo que existia de fato! Diante de nós, aqui. E de repente aquilo dominava, pressionava, se sobrepunha…” (Cosmos, p. 173).
O que significam essas associações a princípio aleatórias e doentias ao longo dos romances de Gombrowicz? O caos das arbitrariedades ordenado de maneira humamanente profunda. É a proximidade máxima da realidade humana, que os discursos internos, as associações psíquicas, as perversões assumidas fortalecem, pois são o que de mais real um homem pode ter; lidando com isso que cada homem pode buscar a si mesmo e aplicar o provérbio polonês, “Swój do swego po swoje [Cada um busca o que é seu à sua maneira]”; a contemplação de si mesmo enviezada, pelo que se descobre a si contemplando as associações, alheias, mas interiorizadas. Seqüências e combinações ligadas em universos próprios, que se fundem sem o saberem. Apesar de considerar-se completamente oposto a Borges, o prefácio da História universal da infâmia cabe, nesse sentido, a Gombrowicz:
“Eu diria que barroco é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou procura esgotar) suas possibilidades e que lida com sua própria caricatura. (…) eu diria que é barroca a etapa final de toda arte, quando esta exibe e dilapida seus meios. O barroquismo é intelectual e Bernard Shaw declarou que toda atividade intelectual é humorística. Este humorismo é involuntário na obra de Baltazar Gracián; voluntário ou consentido, na obra de John Donne” (Borges, prólogo à edição de 1954, História universal da infâmia).
Gombrowicz é satírico e, nisso, barroco, no sentido aqui dado por Borges. Cada passo que sua literatura dá é filosoficamente consciente. Nos romances, inlcusive o distanciamento do olhar de estranhamento do viajante é um subterfúgio literariamente auto-referente, irônico, provocador. Alheio ao ambiente, ele vê as relações e as pessoas do cenário ao qual chega com o distanciamento crítico necessário para compreendê-los com a exterioridade que os reduz a partes de um todo, como membros isolados, flagrados nas miudezas das finitudes teleológicas de suas ações, nas motivações psicológicas que os entrelaçam ou repelem. Gombrowicz afirmou ter parodiado os contos filosóficos e principalmente a surpresa satirizante do Micrômegas de Voltaire quando chega à Terra, nesse sentido, aqui reverbera. O estranhamento extraterrestre do pequeno gigante – micro, megas – voltaireano desdobra-se, nos romances Ferdydurke e Cosmos, no deslocamento físico das personagens protagonistas, sobretudo no olhar distanciado – e por isso, privilegiado – da imaturidade, da adolescência; pequenos adultos, que têm a imaturidade um tanto a seu favor, ainda que no primeiro romance, à revelia do protagonista. O narrador viajante e imaturo tem a dupla vantagem do estranhamento e a dupla necessidade de embater-se, inclusive sensorialmente, com o novo que lhe aparece. Novamente o tema caro a Gombrowicz, a imaturidade, desconfortável, desajeitada e, por isso, terreno seguro para a liberdade de sua literatura. Sua forma literária, constantemente provocada, é sempre imatura, sempre posta em ação, em movimento de busca. “Eu tinha que mostrar-me ‘em ação’, no meu intento de impor-me ao leitor de um certo modo, em meu desejo de criar-me enquanto todos olhavam. ‘Assim é que eu gostaria de parecer para vocês’ e não ‘assim é que eu sou” (Diários).
Notas:
1. “Cada presente contrai um nível do todo, mas este nível é já de descontração ou de contração. Isto é: o signo do presente é uma passagem ao limite, uma contração máxima que vem sancionar a escolha de um nível qualquer. (…) E o que dizemos de uma vida, podemos dizer de várias. Sendo, cada uma, um presente que passa, uma vida pode retomar uma outra em outro nível (…). Cada um escolhe a sua altura ou seu tom, talvez suas palavras, mas a melodia é a mesma e há um mesmo trá-lá-lá sob todas as palavras, em todos os tons possíveis e em todas as alturas” (DELEUZE, Diferença e repetição, p. 129). A personagem de Cosmos que cantarola “trá-lá-lá” à mesa é um tipo humano, psicologicamente real e perturbador. Há nas obras de Gombrowicz também personagens que são tipos artísticos, tipos literários. O hermetismo confesso do autor desvenda-se na paradoxal convivência de sua refinada consciência filosófica com o imediatamente humano, naquilo que tem de mais basicamente sensorial, mesmo fisiológico, ou no terrivelmente selvagem da intimidade psíquica compartilhada. O hermetismo não está exatamente no paradoxo, mas na naturalidade com que este se desdobra e se articula sobre si mesmo, ironia retumbante. Há uma passagem dos Diários em que ele diz: “Existem duas formas de humanismo, básica e diametralmente opostas: uma que poderíamos chamar de ‘religiosa’, que põe o homem de joelhos diante da obra cultural da humanidade, e outra, ‘leiga’, que trata de recuperar a soberania do homem diante de seus deuses e musas. O abuso de qualquer uma dessas formas deve necessariamente provocar uma reação (…)” (GOMBROWICZ, Diários, tradução de Samuel Titan Jr, in: Revista Serrote, n°. 12, novembro de 2012. São Paulo, IMS).
2. Desenhos sobre os quais o próprio Redon escreveu: “Por volta de 1875 tudo me acontece sob o lápis, sob o carvão. (…) Essa matéria vulgar, que não tem qualquer beleza em si mesma, facilitava as minhas buscas do claro-escuro e do invisível. O carvão não permite ser agradável, ele é grave. Não se pode tirar partido dele a não ser com o próprio sentimento” (Redon, p. 43).
Referências:
GOMBROWICZ, Witold. Cosmos. São Paulo, Companhia das letras, 2007.
____________________. Ferdydurke. São Paulo, Companhia das letras, 2006
____________________. Diários. (A primeira citação foi feita a partir do apêndice à tradução brasileira de SCHULZ, Bruno. Ficção completa. S.Paulo, Cosacnaify, 2012, cf. “Depoimento”, W. GOMBROWICZ; A última citação foi feita a partir da tradução brasileira do prefácio de Susan Sontag a Ferdydurke).
DELEUZE. Diferença e repetição. São Paulo, Editora Graal, 2006.
GIBSON, Michael. Odilon Redon. Lisboa, Taschen, 1995.
BORGES, Jorge L. Historia Universal da infamia. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.