“[…] chegados aos nossos portos os navios de Guiné, devem ser examinados a respeito dos escravos que trouxerem, e os que se achar serem tomados, como o deviam ser, isto é, com averiguação e certeza de serem legitimamente cativados, devem ficar, como tais, no domínio de seus donos; e pelo contrário, os que se achar serem tomados como não o deviam ser, isto é, sem certeza e averiguação de que fossem legitimamente cativos, devem, como ingênuos, ser havidos por livres.”
– Manoel Ribeiro Rocha.
A Editora Unesp acaba de republicar a obra Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, do padre jesuíta Manoel Ribeiro Rocha, originalmente publicada em 1758. Manoel Ribeiro Rocha, lusitano radicado em Salvador, procura uma “maneira cristã de tratar os escravos”, desde sua compra até sua libertação. Tentava, com a obra, encontrar um caminho conciliatório entre prática ignominiosa da escravidão, sustentáculo da economia colonial, e a pacificação da consciência daqueles que comercializavam e mantinham os cativos.
Dividido em oito partes, o livro abarca a forma geral de tratar os cativos da compra à libertação: desde a aplicação de castigos e correção e até instrução e educação para tarefas. Para justificar a “via média” na questão escravista da colônia – a despeito das crueldades da negociação e da manutenção de escravos, o modelo escravagista se afirmava como pilar da economia colonial -, Manuel Ribeiro Rocha se apoiou nos escritos bíblicos, em teóricos da Igreja, como Agostinho e Tomás de Aquino, e em outros pensadores seculares. Seu texto e sua erudição foram elogiados pelos padres do Santo Ofício, a Inquisição, responsáveis por dar o parecer de liberação do texto.
Discute-se se seu discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil, chega a representar um abolicionismo “avant la lettre”. Manoel Ribeiro Rocha é um dos religiosos que, mais do que eliminar a escravidão, pretendiam apenas, torná-la mais suave, para garantir, desta forma, a eficiência da economia colonial. Ele propõe a suavização do cativeiro, seguido de uma pedagogia evangelizadora para a obediência e a submissão. Também sugere uma libertação tardia, que coincidisse com os últimos anos da vida do escravo, mas obtida mediante pagamento do escravo [uma liberdade comprada e contraditória].
Para ele, por exemplo: “O castigo não se deve ministrar com cólera e furor, senão com brandura e caridade”. O texto de Ribeiro Rocha inscreve-se de maneira exemplar na questão das relações entre a religião católica, o direito e a escravidão, que encontrou um caminho para demonstrar a legalidade e o caráter cristão do cativeiro de africanos e descendentes, desde que alicerçado na noção de resgate do etíope.
Segundo o historiador português Jorge Fonseca, no artigo “A historiografia sobre os escravos em Portugal”, publicado na Revista Cultura, o papel destacado que Portugal, “por razões históricas e geográficas, assumiu no tráfico de escravos africanos para as colónias europeias da América valeu-lhe a acusação, no contexto da difusão das ideias abolicionistas, de ter sido responsável pelo início do tráfico atlântico, o que em grande parte correspondia à verdade. Tal acusação era motivada pela demora do país em aceitar a abolição, tanto por razões económicas como culturais, mas ofendia o brio nacional, sobretudo por provir de países que tinham, tanto ou mais que Portugal, beneficiado da escravatura e do tráfico e que, se o não tinham iniciado, fora por falta de condições para o fazer e não por superioridade moral. Esse sentimento de culpa, de o país ter estado na vanguarda da escravatura moderna, associado ao de ser vítima de acusações consideradas excessivas, vindas de quem vinham, levou vários intelectuais portugueses a rebaterem aquela acusação através de textos em que, pela demonstração da antiguidade e universalidade da escravidão, a responsabilidade portuguesa ficasse, senão anulada, pelo menos atenuada. Deu-se assim início à publicação das primeiras tentativas de história da escravatura em Portugal. Embora colocando a tónica na escravidão universal e na história do tráfico, estes textos aludiam também, quase sempre, à realidade social portuguesa e à importância que nela tiveram os escravos”.
Dentre tais publicações, o livro de Manoel Ribeiro Rocha foi fortemente influenciado pelas idéias daqueles religiosos letrados que o antecederam, seguindo sua tentativa de conciliar a escravidão com o cristianismo e, ainda, apontando para a possibilidade da libertação dos escravos. Seu texto foi escrito em um momento social que permitia uma nova leitura acerca da escravidão dos negros a partir de uma nova realidade jurídica. Segundo a historiadora Ana Palmira Bittencourt S. Casimiro, conforme expõe no artigo “Uma nova pedagogia religiosa no Brasil colonial: O etíope resgatado”, porém, trata-se de uma possibilidade de libertação “cheia de condições, uma vez que, depois de ‘RESGATADO’ (da corda) ou aprisionado (em caso de guerra justa), o cativo seria ‘EMPENHADO’ (comprado), ‘CORRIGIDO’, ‘INSTRUÍDO’ e, finalmente, ‘LIBERTADO’, pelo dono, como deve agir um bom cristão. Segundo Rocha, o escravo deveria pagar o montante financeiro que o senhor teria desembolsado com seu resgate, empenho, correção e instrução. Só então, depois de vinte, vinte e cinco ou trinta anos de cativeiro e de trabalho produtivo é que o escravo deveria ser, finalmente, ‘libertado’”.
Nas palavras de Ribeiro Rocha a liberdade deveria ser concedida aos escravos mediante ‘as seguintes condições: “[…] quando extinta já de todo a causa do penhor, e retenção em que haviam ficado, pelo benefício da redenção forem completamente restituídos à sua primitiva, e natural liberdade com que nasceram. Estes fins podem ser de quatro modos: Primeiro, quando o cativo pagar a seu possuidor a dinheiro o preço total, ou parcial da sua redenção, na forma explicada na segunda parte desse Discurso; Segundo, quando o cativo houver servido os anos, que bastarem para compensar o mesmo preço, como também ali deixamos expendido; Terceiro, quando falecendo o possuidor do cativo, lhe fizer quita do tempo, que ainda lhe faltar, e o deixar desobrigado; Quarto, e último, quando o cativo, antes de findar o tempo da sua servidão, falecer da vida presente”.
De acordo com Ana Palmira Bittencourt S. Casimiro, respeitadas as especificidades das obras de religiosos católicos sobre a crueldade da escravidão, “observa-se um núcleo comum, ou seja, o desenrolar de idéias que eram apregoadas desde o século XVII, por Vieira e outros religiosos, de que se deveriam minorar as crueldades com os escravos. […] Popularizadas, essas idéias vão ressurgir novamente em meados do século XVIII, já ressignificadas pelo contexto iluminista, na obra do padre diocesano Manoel Ribeiro Rocha”. Segundo a historiadora, as fontes usadas pelos religiosos “são comuns àquela época e fundamentais no pensamento da Igreja, da qual esses autores eram porta-vozes autorizados. Logo, os argumentos usados não refletem somente as opiniões pessoais dos religiosos, mas, a posição ideológica de setores da Igreja, inclusive, daqueles que redigiriam as Constituições. Ademais, fica evidenciada a existência de uma forma de pensamento, vivo e cambiante da Igreja em relação à escravidão colonial”.
Além da erudição teológica, todo o texto de Manoel Ribeiro Rocha, como era corrente entre os juristas até sua época, estruturava-se na argumentação jurídica, conforme indica Arno Wehling, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no artigo “Uma solução setecentista ousada e inovadora para a escravidão no Brasil”. Segundo Wehling, mesmo na “oração consagratória” à Virgem Maria, o encaminhamento religioso conclui, nas palavras de Ribeiro Rocha, “no uso e possessão dos miseráveis cativos, nos conformemos com os ditames da justiça, que nele se expendem suavizados (quanto foi possível e adaptável) com as modificações da prudência e equidade. E que em todas as mais ocorrências tomemos sempre pelas vias médias, que são as vossas veredas”. Para Arno Wehling, “não poderia haver, num tema tão delicado como o da afirmação da ilegitimidade da escravidão e do modo de libertar o escravo, exemplo de tão hábil combinação entre a base teológica e o discurso jurídico, como a defender previamente o autor de qualquer retaliação por suas teses jurídicas. Afinal, ele afirmava três categorias – justiça, prudência, equidade – que não só faziam parte da teoria e da prática de qualquer operador jurídico inspirado nas concepções gregas e romanas, como era o caso dos cristãos; também eram elas nada menos que três das quatro virtudes cardeais afirmadas pelo cristianismo (justiça, prudência, temperança – a sophrosyne grega, que no plano jurídico corresponde à equidade –, às quais se acrescia a fortaleza). A indicação das vias médias, quase pedagogicamente repetida, aponta exatamente para o exercício da equidade, correspondente jurídico do “termo médio” da temperança aristotélica – que Ribeiro Rocha, ainda uma vez muito habilmente, não cita neste ponto, preferindo apoiar-se numa autoridade ainda mais incontestável – o Livro dos Provérbios do Antigo Testamento: ‘eu ando pelos caminhos da justiça, no meio das sendas do direito’ (Pr 8, 20)”.
A edição foi cuidadosamente preparada, introduzida e comentada por Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira.
De acordo com Ricardo Alexandre Ferreira, essa reedição crítica é relevante para o avanço na compreensão “dos caminhos trilhados pelos contemporâneos no tratamento cotidiano das complexas relações existentes entre a legislação, o direito, a escravidão e as regras morais no Brasil ao longo do período colonial”.
ETÍOPE RESGATADO, EMPENHADO, SUSTENTADO, CORRIGIDO, INSTRUÍDO E LIBERTADO
Autor: Manoel Ribeiro Rocha
Editora: Unesp
Preço: R$ 27,30 (223 págs.)