“[…] seu destino eram as letras”.
Sor Juana Inés de la Cruz ou As armadilhas da fé, de Octavio Paz, acaba de ser lançado no Brasil, em co-edição entre a Editora Ubu e o Fondo de Cultura Económica, com tradução de Wladir Dupont.
Trata-se de um ensaio volumoso, profundo e de difícil classificação: o texto de Paz amalgama biografia, história, antropologia e crítica literária para abarcar a relevância da figura de Sor Juana Inés de la Cruz (1648-1695), considerada a primeira escritora de língua espanhola na América. Através da figura desta interessante e forte mulher, Paz delineia uma fase da história do México, então sociedade católica da Nova Espanha, na segunda metade do século XVII.
O vice-reinado católico da Nova Espanha, constituído no século XVI, avançava do sul dos Estados Unidos até a Mesoamérica, excluindo-se apenas a capitania geral da Guatemala, e, ao lado do vice-reinado estabelecido no Peru, atuou como uma das fontes primordiais de transferência de riquezas para a metrópole espanhola durante quase trezentos anos. É no seio deste contexto que Paz vê a grandeza de Sor Juana, uma das mais extraordinárias personagens da cultura da América, vanguardista e corajosa: uma freira poeta em um mundo encoberto pelo barroco espanhol e pelo sacrifício dos povos indígenas, por dogmas sobrepostos a tradições; sincrético e injusto.
Como a própria descrição do livro divulgada pelas editoras pontua, retratar esta personagem histórica “não deixa de ser uma homenagem especial às milhares de mulheres que tiveram que calar sua voz nas sociedades espanhola, portuguesa e americana de influência ibérica”.
José Geraldo Couto inicia a resenha publicada no jornal Folha de São Paulo em outubro de 1998, com a retórica irônica a uma possível pergunta quanto à relevância da obra: “Um livro sobre uma freira mexicana do século 17 parece ser a última coisa em que o leitor brasileiro de hoje está interessado. Mas ‘Sóror Juana Inés de la Cruz’, de Octavio Paz, é justamente isso – e poucos livros serão tão interessantes, enriquecedores e envolventes como este”. Segundo Couto, as particularidades “da formação do México iluminam fortemente as da nossa própria formação. O patriarcalismo parasitário, o catolicismo retrógrado, o militarismo, o centralismo, o desprezo pelos direitos civis são algumas das heranças comuns entre os dois povos. A proeza de Octavio Paz, porém, é mostrar como as contradições da complexa civilização mexicana se manifestam num corpo (sóror Juana) e numa voz (sua obra poética)”. A poesia de Juana Inés, prossegue Couto, “forçou os limites da liberdade de expressão de sua época, sobretudo pelos temas delicados que abordou, como o amor entre duas mulheres e a paixão pelo conhecimento ‘profano’. Embora não descarte a psicanálise como instrumento de estudo, Paz rejeita o simplismo das abordagens que ‘explicam’ Juana Inés como mero caso de lesbianismo ou de conflito com o padrasto. O que o ensaísta busca, com um prodígio de erudição e clareza, não é reduzir a poeta a um caso explicado, mas sim preservar toda a sua contraditória e pulsante riqueza. Ao desvendar progressivamente sua personagem, mas mantendo-lhe uma sombra de mistério, Paz escreveu um livro fascinante, que pode ser lido como um romance”.
Juana Inés era uma uma jovem inteligente, bonita e benquista na corte do vice-rei da Nova Espanha e decidiu entrar para a vida religiosa pois, amante do saber, sabia ser aquele o único lugar em que as mulheres poderiam ter acesso a livros e estudos. No entanto, largou precocemente as letras e passou a dedicar-se exclusivamente ao serviço religioso, fato que Paz compreende como uma rendição diante das majoritárias forças obscurantistas do catolicismo dominante.
“Não tenho intenção de revelar os desvãos da intimidade de Sóror Juana; quero simplesmente me aproximar de sua vida e obra com a esperança de compreendê-las em sua contraditória complexidade. Acrescento que essa compreensão só pode ser uma aproximação, um vislumbre. O objeto da biografia é transformar o personagem longínquo num amigo mais ou menos íntimo”, escreve Paz.
Para Tereza Cristófani Barreto, professora de literatura hispano-americana da USP, conforme analisou em resenha, também publicada no jornal Folha de São Paulo, em novembro de 1999, “Sóror Juana, mulher de letras, vai tomando corpo na obra de Paz como um palimpsesto. Ela se delineia como uma sucessão de leituras superpostas, até que Octavio Paz nos brinda com a sua própria leitura – a sua própria Sóror Juana. Assim, da mesma forma como ocorre ao seu mais importante escrito em prosa, a ‘Resposta a Sor Filotea’, Sóror Juana vai oferecendo-se a diferentes leituras conforme a época em que estas são realizadas, até que esse Flaubert do México contemporâneo a transforme em sua personagem: ‘Sor Juana soy yo’”.
Segundo Barreto, através desta significativa, quase metalinguística, aproximação, a obra também ilumina algumas facetas próprias de Paz: “Enquanto oferece um ‘vislumbre’ dessa mulher que desafiou as normas vigentes na Nova Espanha do século 17 – fossem elas de caráter familiar, social ou mesmo religioso, a fim de poder realizar um projeto de vida totalmente voltado para a palavra em seu sentido mais profundo, o ‘logos’, e em suas mais profundas implicações históricas, políticas, culturais, éticas, científicas, filosóficas -, ‘As Armadilhas da Fé’ vai iluminando, pouco a pouco e de maneira enviesada, outra figura: seu autor. Mediante frases bem-humoradas e às vezes mordazes, Octavio Paz comenta seu próprio tempo e, nesse delicado bordado em que o presente vai sendo desenhado sobre o passado mexicano, deixa emergir, do tecido no qual urde o perfil de Sóror Juana, sua própria figura de intelectual combativo. Isso confere outros tons ao livro, nem sempre previsíveis, mas indiscutivelmente provocativos”.
Juana Inés teve, em vida, perseguidores, dentre os quais o jesuíta Nuñes de Miranda e, um dos mais ferrenhos, o arcebispo da Cidade do México, Aguiar y Seijas – que, Octavio Paz conta, era misógino a ponto de declarar que se uma mulher adentrasse sua casa, trocaria o piso. Juana tentou travar resistência contra ele através de um texto, uma de suas raras reflexões teológicas, em que critica um sermão do padre Antônio Vieira. Segundo Paz, o objeto da crítica foi escolhido pela autora sobretudo por um motivo: “A teologia era a máscara da política”, pontua o poeta. Antônio Vieira era amigo de Aguiar y Seijas, a quem Juana atacava por consequência. Severamente inquirida, no entanto, perdeu de maneira infame a batalha; temendo a excomunhão e a Inquisição, entregou aos dignitários eclesiásticos sua biblioteca e sua coleção de instrumentos musicais, assim como foi obrigada a fazer uma confissão final, “rubricada com seu sangue”. A partir de então, levou uma vida de isolamento e penitência.
De acordo com Beatriz Paredes Rangel, embaixadora do México no Brasil, conforme pontua no artigo “O encontro entre Sóror Juana Inés de Cruz e Octavio Paz e sua repercussão em Las Trampas de la Fe (As armadilhas da fé)”: “[…] Ao transitar nos hirsutos caminhos da psicanálise, como outros o fizeram antes dele, Paz postula uma interpretação masculinizante da imagem e da obra de sóror Juana. No decorrer do caminho, interpreta a relação visceral de Juana com a biblioteca de seu avô como uma sublimação da sexualidade masculina. Em suas próprias palavras, essa biblioteca, resulta ser ‘um tesouro não menos valioso que a sexualidade viril’. Curiosamente, sóror Juana passa desse universo fechado (e aparentemente assexuado) ao rebuliço da corte para regressar a outro âmbito de clausura: o convento e a cela. Diante dessa leitura, Antonio Alatorre responde, com grande perspicácia: ‘sóror Juana teve o sonho de ser homem. Só que, nesse sonho, homem não significava indivíduo de sexo masculino, mas sim indivíduo do gênero Homo sapiens. ‘Homem’, não em contraposição a ‘mulher’, mas sim em contraposição a ‘animal’.’ É impossível minimizar a importância da interpretação de Paz. Ao enfatizar as características masculinas de sóror Juana, ele colocou as bases de uma análise feminista ou de gênero – como dizemos hoje -, tanto na obra e vida da monja como em seu livro Las trampas de la fe”. É bonita a conclusão do artigo de Rangel, pois permite “que ambos os poetas falem com sua própria voz. Afirma Paz, referindo-se à sóror Juana: ‘sua obra nos disse algo, mas para entender esse algo devemos nos dar conta que é um dizer rodeado de silêncio: o que se pode dizer: A zona daquilo que não se pode dizer está determinada pela presença invisível dos leitores terríveis. A leitura de sóror Juana deve fazer frente ao silêncio que rodeia suas palavras’”.
A Ubu disponibiliza um trecho para visualização.
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.Trecho.
“[…] Outros a veem como uma realidade independente, autônoma. Partem de uma ideia que me parece justa: a obra tem características próprias, irredutíveis à vida do autor. É lícito ver nos poemas de Sor Juana Inés de la Cruz certas peculiaridades que, embora sejam até de origem psicológica, constituem variedades dos estilos predominantes em sua época. A soma dessas variantes e peculiaridades faz da sua uma obra única, irrepetível e autossuficiente. Contudo, embora nos pareça única – e ainda que de fato o seja –, é evidente que a poesia de Sor Juana está relacionada a um grupo de obras, umas contemporâneas e outras vindas do passado, da Bíblia e dos Pais da Igreja, até Góngora e Calderón. Elas constituem uma tradição e por isso surgem aos olhos do escritor como modelos a serem imitados ou rivais a serem igualados. O estudo da obra de Sor Juana imediatamente nos coloca em relação com outras, e estas com o ambiente intelectual e artístico de seu tempo, ou seja, com tudo aquilo que constitui o que se chama ‘o espírito de uma época’. O espírito e algo mais forte que o espírito: o gosto. Entre a vida e a obra encontramos um terceiro termo: a sociedade, a história. Sor Juana é uma individualidade poderosa e sua obra possui inegável singularidade; ao mesmo tempo, a mulher e seus poemas, a freira e a intelectual se inserem numa sociedade: a Nova Espanha do final do século XVII.
Não pretendo explicar a literatura por meio da história. O valor das interpretações sociológicas e históricas das obras de arte é sem dúvida limitado. Por outro lado, seria absurdo fechar os olhos diante desta verdade elementar: a poesia é um produto social, histórico. Ignorar a relação entre sociedade e poesia seria um erro tão grave como ignorar a relação entre a vida do escritor e sua obra. Mas Freud já nos preveniu: a psicanálise não pode explicar inteiramente a criação artística; e da mesma forma que existem na arte e na poesia elementos irredutíveis à explicação psicológica e biográfica, existem elementos irredutíveis à explicação histórica e sociológica. Então, em que sentido me parece válida a tentativa de inserir a dupla singularidade de Sor Juana, a de sua vida e a de sua obra, na história de seu mundo: a sociedade aristocrática da Cidade do México na segunda metade do século XVII? Estamos diante de realidades complementares: vida e obra se desenvolvem numa dada sociedade e, assim, são inteligíveis apenas no âmbito da história dessa sociedade; por sua vez, essa história não seria a história que é sem a vida e o legado de Sor Juana. Não basta dizer que a obra de Sor Juana é um produto da história; é preciso acrescentar que a história também é um produto dessa obra. […]”
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SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ OU AS ARMADILHAS DA FÉ
Autor: Octavio Paz
Editora: Ubu
Preço: R$ 76,30 (608 págs.)