Gyula Krúdy (1878 – 1933) é considerado por muitos escritores húngaros o maior prosador da Hungria. Apesar de ter obtido sucesso literário em vida – desde os vinte anos teve seus textos publicados e em 1930 recebeu o Baumgarten, o prêmio de literatura mais importante na Hungria na época – suas narrativas foram muito difundidas após sua morte, durante a Segunda Guerra Mundial, redescobertas porque resguardavam a intimidade da memória e do próprio espírito do povo húngaro: narrativas capazes de despertar a sociedade então entorpecida, invadida, destruída pela guerra, capazes de resgatar uma sensibilidade cultural que a um estrangeiro não é perceptível, porque falam diretamente com o que há de mais secreto e profundo na identidade de seu povo, no que há de próprio em suas simbologias, seus costumes, sua compreensão do mundo, ou nos detalhes de um semblante, de prato de sopa ou de uma vitrine. Como diz o tradutor Paulo Schiller, na apresentação da edição de O companheiro de viagem, publicada pela editora Cosacnaify, “Em tom melodioso, Krúdy falava de uma outra Hungria, atemporal, cujo território era a memória, ressuscitava um passado talvez inexistente em que realidade e sonho se entrelaçavam e confundiam”. A alusão a uma melodia musical segue a interpretação de Paulo Rónai, primeiro a traduzir contos de Krúdy no Brasil, segundo quem “a prosa de Krúdy é próxima da música”. Continue lendo
Arquivo do autor:Isabela Gaglianone
Noites de alface
Noites de alface é um livro construído de pequenos detalhes. Nesta poética concentra, por um lado, boa parte de sua carga dramática e, por outro, uma veracidade, ou ao menos uma plausibilidade e familiaridade que conquistam de cara o leitor. Toda rotina é desenvolvida sobre pequenas coisas, sobre microcosmos muito pessoais; o romance de Vanessa Bárbara é feliz ao capturar essa imperceptível mas irrevogável penetração dos detalhes no desenrolar diário da vida. O livro é como que feito de pequeninas narrativas articuladas, tão completas e tão amplas, tão ricas em minúcias que interferem-se no desenrolar do cotidiano do protagonista, envolvido assim no desdobramento irreversível de significados dos detalhes. Continue lendo
Os cinco paradoxos da modernidade
“Em vez dessas pseudo-reviravoltas ou dessa galeria de figuras exemplares, deveríamos fazer uma história paradoxal da tradição moderna, concebida como uma narrativa esburacada, uma crônica intermitente. Possivelmente a face oculta de cada modernidade seja justamente a mais importante: as aporias e as antinomias extraídas das narrativas ortodoxas.”
– Antoine Compagnon
A “tradição moderna” de que fala Antoine Compagnon seria absurda, pois seria uma tradição feita de rupturas: na medida em que cada geração rompe com o passado, a ruptura em si torna-se tradição. O autor inicia sua análise a partir de uma citação de Octavio Paz, segundo quem a “tradição moderna” é uma aporia, um impasse lógico, uma tradição voltada contra si mesma, que ao mesmo tempo afirma e nega a arte, que decreta, simultaneamente, sua vida e sua morte. A tradição moderna seria então tradição da negação, consequência do reconhecimento do novo como valor. Continue lendo
A Cela Enorme
e. e. cummings – em minúsculas, como ele assinava – é conhecido como um dos poetas mais extravagantes da modernidade. Além de poeta, também pintor, ensaísta e dramaturgo, no Brasil teve suas poesias principalmente divulgadas e traduzidas, de maneira brilhante, por Augusto de Campos, que o considera um dos principais inovadores da linguagem da poesia e da literatura no século XX. Pouco se diz que, além de poemas, escreveu dois romances, autobiográficos, um dos quais, A cela enorme, foi publicado pela editora da Universidade Federal do Paraná, com tradução feita por Luci Collin, professora e escritora. O autor nasceu em 1894 e morreu em 1962, portanto vivenciou as duas grandes guerras. A cela enorme é justamente seu relato de prisão em um campo de concentração na França durante a Primeira Guerra Mundial. O jovem cummings descreve os personagens exóticos que conhece durante os meses de cativeiro, além de oficiais, os prisioneiros e tipos mundanos, dentre os quais trinta compartilhavam com ele a cela que dá título ao livro. Um amigo do escritor havia manifestado ideias contrárias à guerra e por isso fora detido e, como cummings defendeu o amigo, foi junto. Continue lendo
Jogos de erosão emocional e memória
Um artista plástico que escreve literatura tem à mão a possibilidade de intercalar ambos os trabalhos. No livro Lívia e o cemitério africano, Alberto Martins criou uma composição de capítulos curtos que tanto se completam quanto se contrapõem bruscamente, criando, na passagem e no confronto entre eles, novas possibilidades de leitura e, entre eles, inseriu dezesseis páginas de xilogravuras, em momentos cruciais da narrativa, que desempenham a mesma função ambivalente. O livro foi lançado no final de junho; nele, retoma a prosa autobiográfica de A história dos ossos, seu primeiro romance, também publicado pela editora 34 e vencedor do segundo lugar no prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2006.
As xilogravuras de Alberto Martins são fortes, densas, expressivas. Não recebem uma classificação formal precisa, estão entre o abstrato e certo figurativismo. Nelas, há peso e movimentos, distribuídos de maneira autônoma, desterritorializada, por vezes ancorados a demorarem-se, outras, a passarem, em travessias breves ou longas. Continue lendo
Sobre a preguiça e o ócio
O herói da nossa gente já dizia, “ai, que preguiça!”. Transformado em livro, o ciclo de conferências Elogio à preguiça, organizado por Adauto Novaes, propõe uma reflexão sobre a preguiça e o ócio, criativos, lembrando o que dissera Albert Camus: “São os ociosos que transformam o mundo porque os outros não têm tempo algum”. As palestras propuseram-se a pensar a vida e as aventuras da preguiça, e a mostrar que sua história sempre foi mal contada. Sugerem reflexões sobre a condenação da preguiça, pelo mundo do trabalho mecânico, e sobre a importância do ócio no desenvolvimento do trabalho intelectual e artístico. Visões filosóficas, políticas, poéticas.
Segundo Adauto Novaes, “o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso: quem se deixa levar por devaneios”. Pórem, “apesar da oposição, preguiça e trabalho guardam um misterioso parentesco, quase simétrico e especular”. E conforme Adauto cita Paul Valéry, “é preciso ser distraído para viver”. Continue lendo
A Poética de Regina Silveira
Concorrendo ao Prêmio Jabuti deste ano, na categoria de artes e fotografia, o livro O outro lado da imagem e outros textos: A Poética de Regina Silveira, reúne nove ensaios escritos pelo poeta e crítico de arte espanhol Adolfo Montejo Navas, sobre a obra da artista plástica gaúcha. O livro busca uma reflexão poética que escape à crítica definitiva, por isso seu título. O trabalho de Regina Silveira é conhecido sobretudo por suas explorações da perspectiva e das sombras, usando diferentes materiais e meios, como fotografias, pinturas, gravuras, objetos, vídeos, instalações, projeções. Seus jogos de sombras exageradas, projetadas, criando perspectivas distorcidas e lúdicas, não conhecem limites de quinas e sobem rodapés. A obra de Regina Silveira lida com a distorção dos códigos de representação e, com a projeção das sombras, faz um comentário irônico das relações sociais e estruturas de poder – seu pensamento artístico é também filosófico e político. Um trabalho, além de artisticamente instigante, fundamentado em reflexões sobre a natureza ilusionista de imagens e espaços. Continue lendo
Uma sofrida saga de abandono
Uma prosa bonita e o entroncamento de diferentes solidões harmonizam-se na singularidade poética do livro A orquestra da chuva, do suíço Hansjörg Schertenleib. Diferentes tipos de solidão, tratadas de diferentes formas por diferentes pessoas constroem o enredo sereno, intimista e amargurado. O protagonista, um escritor suíço, mudara-se para a Irlanda com sua mulher, porém, lá, ela o deixou; completamente melancólico, imerso em uma dupla solidão, enquanto estrangeiro e recém divorciado, ele encontra uma mulher cerca de vinte anos mais velha que vive só e que resolve contar-lhe sua história para que ele a transformasse em um livro. As solidões encontram-se, num diálogo orquestrado sobre duas vozes e dois tempos: a narrativa passa a alternar momentos do presente com a narrativa da vida passada dessa personagem, que torna-se, então, uma segunda protagonista. A diferença de estilos dos dois protagonistas ao narrar suas experiências mantem-se ao longo do livro, fortalecendo a ideia de diálogo musical, num arranjo que entrelaça o contraponto na progressiva mudança na percepção do primeiro personagem sobre si e seu próprio presente. Continue lendo
Ontologia, política e poesia
Para o filósofo Giorgio Agamben uma verdadeira revolução não procura apenas mudar o mundo, mas, primordialmente, mudar a experiência do tempo. A própria revolução é por ele compreendida como uma interrupção da cronologia por um tempo diferente, ao qual Walter Benjamin chamava kairós, ou tempo messiânico, assim como compreendido por Paulo, o apóstolo – de quem Benjamin teria sido leitor atento, conforme Agamben defende em Il tempo che resta (2000). Uma revolução seria, necessariamente, uma revolução messiânica: “Messiânico não é o fim dos tempos, mas a relação de cada instante, de cada kairós, com o fim dos tempos e com a eternidade”.
As manifestações absurdas da vida
Os sonhos teus vão acabar contigo – o título parece pairar em prenúncio, pois seu escritor, o escritor do absurdo, foi um dos cruéis exemplos do destino dos artistas na ditadura stalinista: culpado por divergir, estética e filosoficamente, do que, a partir de 1932, convencionou-se chamar “realismo socialista”, Daniil Kharms, poeta, dramaturgo, considerado um dos mais autênticos e talentosos escritores da vanguarda russa, morreu, abandonado numa prisão psiquiátrica a ponto de definhar de fome e ter o corpo devorado por ratos.
O livro Os sonhos teus vão acabar contigo, traduzido diretamente do russo por Aurora Fornoni Bernardini, Daniela Mountian e Moissei Mountian e publicado neste mês de setembro pela editora Kalinka, é uma coletânea de textos de prosa, poesia e teatro do autor. A mistura de gêneros – construída como uma “polifonia formal” – é característica comum dos autores da vanguarda russa, mas, na escrita de Daniil, ela é peculiarizada por uma comicidade e um caráter abusrdo, completamente originais. Continue lendo
Descrição do mundo
Autora do recém-lançado Opisanie świata, Verônica Stigger tem gostos especiais: estudiosa de arte contemporânea, defendeu uma tese a respeito da relação entre arte, mito e modernidade, pensando sobretudo as obras de Marcel Duchamp, Kurt Schwitters, Piet Mondrian e do russo K. Malevitch; em seu pós-doutorado, debruçou-se sobre os trabalhos dos artistas brasileiros Flávio de Carvalho e Maria Martins, entre outros. Talvez a proximidade com a arte contemporânea, seu estranhamento e suas inversões metalinguísticas, tenham analogia com a desenvoltura dos textos de Verônica enquanto capazes de suscitar um esvaziamento das questões estéticas, provocado pelos entroncamentos de absurdismos cotidianizados, cujos sentidos são políticos e morais dentro da esfera artística em que estão inseridos enquanto obras.
Há algo de uma indigesta sinceridade em sua prosa que ultrapassa o absurdo dos seus enredos – e justamente por ultrapassá-lo, confere-lhe um (absurdo) caráter de necessário. Algo do cotidiano vaguear do lúdico no real, estranhamento mágico da fuga ideológica e um pouco apática à naturalização tragicômica da violência.
Interconexões entre história e filosofia
No livro Ontologia histórica o filósofo canadense Ian Hacking, partindo da arqueologia do saber de Foucault, desenvolve um raciocínio contundente a uma compreensão do mundo contemporâneo que une, na mesma raiz, fenômenos distintos como abuso infantil e posterior desenvolvimento emocional, traumas de doenças mentais transitórias, o papel da linguagem, da verdade e da razão na apreensão da realidade. Através do conceito de ontologia história, o autor sugere novos modos para que a filosofia possa utilizar a história e, em especial, como ele próprio faz uso da obra arqueológica inicial de Foucault, que, segundo diz, “é uma fonte quase infinita de inspiração”.
Traduzido do inglês por Leila Mendes e publicado no Brasil pela editora da universidade Unisinos, o livro é uma reunião de palestras, artigos e ensaios escritos entre 1973 e 1999. O texto do primeiro capítulo, cujo título dá nome ao livro, foi escrito por ocasião de uma palestra que Ian Hacking foi convidado a proferir, no Departamento de História da Ciência na Universidade de Harvard, a respeito de interconexões entre história e filosofia. Continue lendo
A libertação de Creta
Interessante lançamento deste segundo semestre, outra tradução direta do grego do escritor Nikos Kazantzákis, O capitão Mihális (liberdade ou morte), pela editora Grua, em tradução de Silvia Ricardino. A editora já havia publicado Vida e proezas de Aléxis Zorbás, primeira tradução diretamente do grego do autor no Brasil, feita por Marisa Ribeiro Donatiello e Silvia Ricardino; a história deste livro tornou-se mundialmente conhecida após sua adaptação para o cinema, no filme “Zorba, o grego”, de 1946. Nikos Kazantzákis é considerado um dos maiores escritores do século XX. Apesar de não ter ganho o Prêmio Nobel – foi indicado por Thomas Mann e Albert Schweitzer e perdeu-o, por um voto, para Albert Camus – ganhou, porém, o Prêmio Internacional da Paz, em 1956.
Nikos Kazantzákis nasceu em 1883 na ilha de Creta, ainda sob domínio turco, e morreu na Alemanha em outubro de 1957. Escreveu sua obra tanto em francês como no dialeto grego demótico, linguagem coloquial da classe trabalhadora de Creta. Continue lendo
Poetas do Repente
Uma viola e a predisposição à rima, preferencialmente simpática, quase sempre jocosa, às vezes absurda, ou humanamente dramática, têm, na cultura popular brasileira, um dos pontos culminantes nos espontâneos poemas musicados conhecidos como repentes. O improviso, incrivelmente rápido, cabe ao cantador, poeta e repentista – a cantoria, no ritmo da viola, é harmonizada de acordo com a cadência do verso. O nome vem do repentino, do de repente.
Há pouco material literário sobre os repentes, porém uma publicação ótima: Poetas do repente, publicado pela editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco (órgão do Ministério da Educação); um livro acompanhado por quatro documentários em DVD e trilha sonora em CD, em edição bilíngue – português e inglês.
A poética contemporânea de Antonio Cicero
Político, poético, o trabalho de Antonio Cicero, infinito jogo de espelhos, vem se construindo de maneira ambivalente e coerente. Seu mais recente livro, Porventura, publicado pela editora Record e indicado como finalista ao prêmio Jabuti deste ano, é uma coletânea de poemas escritos desde 2002 e traz muito deste seu caráter intelectual multifacetado.
Antonio Cicero é conhecido também como filósofo, em 1995 publicou o livro de ensaios O Mundo desde o Fim, um questionamento sobre o moderno e a modernidade, que propõe uma concepção de cogito ultracartesiano. Em 2012, a editora Civilização Brasileira publicou seu mais recente livro de ensaios, Poesia e filosofia. Outra de suas facetas, porém, é a parceria com músicos populares brasileiros como João Bosco, Marina Lima (sua irmã) e Lulu Santos. Também foi longa sua parceria com o poeta e letrista Waly Salomão. Pode-se dizer de maneira geral que no trabalho deste poeta filosófico o limite entre o popular e o erudito é constantemente transposto.