Arquivos da categoria: Crítica Literária

Artigos, resenhas e análises críticas de obras literárias.

Literatura

MARÍAS, Coração tão branco

16 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

livro Coracao tão branco, de Javier Marias

“Era simplesmente instalar-se na convicção ou
na superstição de que não existe o que se diz.”

O título Coração tão branco do livro do espanhol Javier Marías é uma alusão a um verso de Shakespeare, um diálogo em Macbeth:

My hands are of your colour, but I shame to wear a heart so white
[Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco].

A alusão desenvolve-se em breve comentário num dos decorreres do fluxo de consciência do protagonista narrador, um tradutor. Ele percorre mentalmente este e alguns versos circundantes, reconstruindo a cena e a história, interpretando-os, revirando os sentidos por trás de suas palavras, à maneira de um cacoete profissional, por impulso de pensar suas possíveis traduções. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte II.

12 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

A ironia de Robert Musil chegaria a ser desconcertante, não fosse sua elegância, a sutileza com que simplesmente permeia as situações do romance. A ironia não é escancarada em palavras ou expressões, reside antes no simples espelhamento de diferentes relações entre diferentes personagens, à maneira de uma fuga musical. Essa ironia é o que faz satírico O homem sem qualidades. Filosoficamente satírico, inclusive, pois põe em questão a moral frente à impessoalidade do homem moderno, enquanto homem de pensamento, imerso numa complexa dinâmica de possibilidades e impossibilidades. Movimentos de paixão e razão, utopias de resguardo inescrutável. Continue lendo

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Crítica Literária

Musil, o homem de possibilidades .parte I.

6 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

no princípio

Filosofia então teve início
na tentativa de liquidação
do universo (arranjo,
adereço, cosmético): promessa
de fluidez sem caroço
e coisa e Tales.

Meditações mediterrâneas. Hidráulica
arcaica. Absoluto
dissoluto.

A primeira
imprecisão é a que fica?

Rubens Rodrigues Torres Filho

 

MUSIL, O homem sem qualidades

(Nova Fronteira, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth)

O homem sem qualidades é logo apresentado a seu leitor. Sua principal qualidade é não ter nenhuma, pois ele é desprovido do dito senso de realidade e possui, em seu lugar, um senso de possibilidade:

Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade de pensar tudo aquilo que     também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é. (…) não raro fazem parecer falso aquilo que as pessoas admiram, e parecer permitido o que proíbem, ou ainda fazem as duas coisas parecerem indiferentes. (…) podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades” (pp. 34-36).

Se concordarmos com Maurice Blanchot, veremos o tema do livro inscrito em seu título e o tal ‘senso de possibilidade’, assim exposto nas primeiras páginas do monumental romance, como sua chave fundamental de leitura.

A expressão ‘homem sem qualidades’, embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter o sentido imediato, e de deixar perder-se a idéia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial, diz Musil em suas notas, é que ele não tem nada de particular.”
(Blanchot, O livro por vir).

O homem em questão, portanto, seria não exatamente sem qualidades, mas sem peculiaridades. “Nada, precisamente nada!”, “eis a espécie que nossa época produziu”, é o que diz sobre ele o antigo amigo que lhe confere a alcunha. Tudo, para este homem sem peculiaridades, o que acontece e também o que não acontece, equivale-se como variações plausíveis, genuínas possibilidades. Por isso ele não consegue decidir-se, nem mesmo por um caráter. Por isso talvez também Musil não tenha conseguido jamais terminar seu romance. Pois o romance é inacabado, mas metaforicamente também o é seu protagonista, impreciso, em seu mundo restrito a infinitas e incontornáveis potencialidades.

Num incerto salto tigrino que corre o risco de nos levar tão somente a um anacronismo berrante, fazem coro palavras de nosso contemporâneo escritor espanhol Javier Marías no seu romance Coração tão branco:

(…) o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. (…) O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada.
(Marías, Coração tão branco).

Para ele, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido entrelaçam-se, tem a mesma concretude, apesar serem definitivos e desembocarem na retumbante pergunta, “e agora?”. Para o homem sem qualidades, o que não existiu não deixa de existir como potência e resguarda-se em divagações ou investigações filosóficas, especialmente morais, que se desdobram em suas ações e opiniões. Também o que aconteceu poderia ter acontecido de outra maneira. Os fatos estão sempre prestes a inverterem-se de acordo com as relações estabelecidas, dentro dos maleáveis limites da pura possibilidade. Mesmo realidade e utopia mesclam-se indefinidamente. A verdade perde seu estatuto ontológico e desmorona-se em fragmentos possíveis.

O tema desenvolve-se no personagem e vice-versa. Os dois complexos temáticos que dividem o livro e sobre os quais modula sua tonalidade acabam sem peculiaridades que os explique ou resolva. Tanto quanto o homem sem qualidades, são pura plausibilidade. É por isso que Blanchot pode referir-se ao protagonista como uma representação do homem moderno: impessoal, abstrato, imerso na “neutralidade das grandes existências coletivas”, a quem as sequências de possibilidades são ilimitadas e que, “por vocação e por tormento, [tem] de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”. Ulrich – nosso protagonista ganha um nome após ter sido apresentado como um “homem sem qualidades”, mas jamais um sobrenome – é uma abstração. Uma abstração intelectual, cuja humanidade é dramática, pois desenrolada principalmente no incesto nunca concretizado; mesmo sua relação consigo mesmo tem que ser projetada num outro, quase gêmeo, a única possibilidade de amar a si mesmo é através de um espelho.

A condicionalidade é perpétua e irresoluta. Ao contrário do que ocorre no conto “Na galeria”, que Kafka inicia com uma partícula condicional “se”, numa frase que é todo um parágrafo. Ela guarda uma possibilidade que é somente sonhada, o que diz o segundo parágrafo, espelhado: a realidade, que faz chorar. A possibilidade, alí, é quimérica, ao passo que a realidade, concreta, imutável e frustrante. O conto é marcado por quatro tempos: “se”, “– talvez”, no primeiro parágrafo, e, no segundo, “mas [uma vez que não é assim]” e “– uma vez que é assim, o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundado na marcha final como num sonho pesado, ele chora sem o saber”. Em Musil não há desilusão, pois ele está imerso na imprecisão de sua própria impossibilidade.

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Crítica Literária

Musil e Dostoiévski – Modulações

1 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

Não que se diga de um homem sem qualidades que seja de todo um idiota. Mas em uma sociedade imperial ou czarista, muito se diz a respeito das personalidades mais excêntricas. Pois as altas rodas dessas sociedades costumam maldizer personagens que as observam com perspicácia, ainda que tais personagens mantenham certo alheamento social. Vivendo nessas sociedades, o idiota é ridicularizado por sua ingenuidade; o homem sem qualidades por seu sarcasmo pessimista. Ambos são personagens permeados por um diagnóstico crítico, de época e de mundo. Assumem discretamente um tom satírico e sua simples existência meio descabida nessas sociedades em que se inserem é espelhada nas personagens ao redor, o que acaba por tipificá-las – tipos quer sociais, quer psicológicos, nas vestes de uma generala ou de uma Diotima. E, se ridicularizados, nessa sociedade que os espelha como numa sonata, quer dizer, retomando e reexpondo seus temas em outros registros, eles, com a irrefutável capacidade de rir-se de si mesmos dão vazão à risibilidade latente das discussões sérias feitas em sociedades que levam a si, e a seus modelos, demasiado a sério – nota: um elegante conde séculos antes já sugerira, a verdade deve passar no teste do ridículo. A crítica refletida é sutil e precisa.

A impressão é a de uma música, sob a qual as personagens se organizam. Os tipos dançam, ao som dos acordes em voga, à maneira de cenas que se sucedem com entradas e saídas do palco, dançarinos com figurinos em meio a cenários requintados e significativos, através dos quais, porém, um idiota ou um homem sem qualidades, cada um a seu jeito, parecem caminhar calmamente, incomodando as coreografias; caminham pela cena, alheios, de calças compridas e olhar reflexivo mesmo que em plena encenação de um pas-des-deux. Figuras quiméricas em meio a retratos do homem moderno.

o homem sem qualidades e o idiota

 

 

 

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Crítica Literária

Witold Gombrowicz: Trá-lá-lá

11 dezembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

Witold Gombrowicz escolheu para si o signo da imaturidade.

“Pois os Maduros sentem profunda aversão pela imaturidade, e nada lhes parece mais odioso do que um ser imaturo. (…) Então, como tudo isso vai terminar? Aonde chegarei seguindo por este caminho? Como se formou em mim (pensava eu) este fascínio pela imaturidade? Seria por eu viver num país repleto de indivíduos rudes, medíocres e efêmeros, que não se sentem bem num colarinho engomado, e onde, em vez da Melancolia e do Destino, são a Inabilidade e a Bisonhice que gemem pelos campos? Ou talvez eu vivesse numa época instável, que a cada instante inventava um novo lema e um novo mote, contorcendo o rosto da melhor forma possível – numa época transitória? …” (Ferdydurke, p. 30).  Continue lendo

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Crítica Literária

CAMPOS DE QUEIRÓS, Vermelho Amargo

11 novembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, 2011)

“Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo” (p. 7).

Há um vazio pungente, preenchido só com as vagas e evanescentes imagens da memória e da imaginação, na solidão em que se enclausuram os que vivem a dor da separação abrupta, forçada, que acompanha a morte de uma criatura querida. O paradoxo inconformado deste sofrimento é que o próprio vazio é cheio, pleno; esse vazio preenche cada uma das horas dos longos dias do “impiedoso tempo”, materializa-se, assim. Continue lendo

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Resenhas

CLASTRES, A sociedade contra o Estado

13 agosto, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, tradução de Theo Santiago)

 1) O que é o poder político? Isto é: o que é a sociedade?

2) Como e por que se passa do poder político não-coercitivo ao poder político coercitivo? Isto é: o que é a história? 

 Os fundamentos filosóficos presentes na antropologia política de Pierre Clastres desvelam-se desde o título do primeiro artigo do livro A sociedade contra o estado: “Copérnico e os selvagens“. Clastres articula filosofia e antropologia políticas, calcado em pesquisas etnográficas realizadas em sociedades amazônicas, de modo a desenvolver um projeto crítico à contaminação etnocêntrica latente na antropologia europeia, sugerindo-lhe uma nova orientação, que pudesse estabelecê-la legitimamente como ciência. Continue lendo

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Crítica Literária

LÍSIAS, O céu dos suicidas

24 maio, 2012 | Por Isabela Gaglianone
[Alfaguara, 2012]

[Alfaguara, 2012]

“Penso em coleções o tempo inteiro, dou cursos, ofereço consultoria e escrevo sobre isso. Mas não tenho sequer um conjunto de cartões-postais” (p. 70).

 

É um romance da própria consciência o que o jovem escritor paulistano Ricardo Lísias realiza com O céu dos suicidas. Colocando a si mesmo como autor-narrador-protagonista, ele personifica uma consciência desesperada, que tenta sair de si mundo afora em busca de algo que a unifique e realize, um eu que a resguarde, através da memória. Sempre que volta a si, embate-se com seu eterno futuro do pretérito; entre o que foi e o que poderia ter sido, a contingência do passado negada, sobrecarregada pelos efeitos presentes. Porque é justamente uma lembrança retumbante que transforma o sustentáculo da consciência em uma coleção de cacos: o eu, culpado – pela impotência, pela apatia –, fragmenta-se.  Continue lendo

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Crítica Literária

WALSER, Jakob von Gunten

13 março, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(Companhia das letras, tradução de Sérgio Tellaroli)

 

Para pessoas tão pequenas como nós, pupilos, nada é engraçado.

Estudamos em bibliotecas. Como soldados, verdadeiros recrutas, temos de nos deitar no chão e atirar. Vamos às compras em grandes lojas, banhamo-nos em balneários, oramos nas igrejas: “Não nos deixei cair em tentação”.

Com a cortante lucidez de seu lirismo realista, Robert Walser, no romance Jakob Von Gunten, expõe as vísceras do drama do indivíduo impessoalizado dentro do sistema capitalista industrial. O livro foi escrito em 1908, época em que amanhecia o modelo de mundo em que vivemos hoje; e ainda hoje o leitor se reconhece na alegoria do pupilo a lacaio de uma sociedade industrializada, interesseira, fria e calculista. A serialidade da carne humana é exposta, paradoxalmente, porém, com encantadora poesia. Com Walser, o bruto é tomado de tal sinceridade que dele se extrai uma beleza rara, única e incondicional. Cada pequeno detalhe é dotado de importância, pois é o que traz humanidade à amorfa condição das pessoas industrializadas. Um instituto como o Instituto Benjamenta, cenário das narrativas de Jakob Von Gunten, dedicado a criar servos minimamente familiarizados com as maneiras e costumes da alta sociedade, regido por velhas normas e dedicado a tornar seus pupilos úteis a outrem, poderia ser uma caricatura de todo o mecanismo silencioso que mantém até hoje o sistema social intacto, às custas de algumas insignificâncias vitais; a escolarização é encolhedora, pois basta-se a ensinar uma função e assim fornecer mais uma máquina humana barata a juntar-se com inércia à pútedra monumentalidade social, sempre sustentáculo econômico, indiferente se legitimada pela estandartização de uma falsa moral, baseada no enaltecimento de valores reles, a girar sempre em torno de utilidade, funcionalidade, subserviência, quer a Deus, ao Estado, ao dinheiro.

As personagens de Walser todavia perseguem algo elevado. Talvez uma moral diferente, menos cristã e punitiva, menos ameaçadoramente acachapante. Na prática, perseguem uma vida de servilidade para encaixarem-se na sociedade, o que significa tornarem-se economicamente ativas após aprenderem a comportar-se conforme as convenções: por isso, para os pupilos do Intituto Benjamenta, a própria sociedade é algo elevado, buscam adentrar nela através de um posto, uma função que lhes dê uma posição social, um símbolo de poder. A lucidez crítica vem proferida pela voz do irmão de Jakob, Johann Von Gunten – a semelhança entre os nomes dos irmãos não redunda apenas uma usual assonância familiar, Johann parece a consciência de Jakob personificada graças às suas observações categóricas: “Ser de fato um pobre-diabo é o que há de mais belo e vitorioso. Os ricos, Jakob, são muito insatisfeitos e infelizes. A gente rica de hoje em dia não tem mais nada. São os verdadeiros famintos”. Jakob justamente renunciara a uma vida farta, abandonara família e conforto para inscrever-se no Instituto Benjamenta e formar-se criado, “meu pai tem carruagens, cavalos e um criado, o velho Fehlman. Mamãe tem seu próprio camarote no teatro”. Uma espécie de franciscano egoísta, sem a cristandade, um neo-platônico às avessas, um ideal encarnado da autoformação, da autoeducação, não em busca da verdade, nem da justiça, mas baseado no esforço próprio, capitalista por excelência, começando “de baixo, bem de baixo”, em busca do desenvolvimento, em si, de qualidades necessárias à ascensão, econômica e social. O diário é conduzido, pois, por um narrador perspicaz, ocupante de um ponto de vista privilegiado através do qual demonstra o amálgama moral que se estabelece entre indivíduo inerte e sociedade dinheirista num mundo economicamente positivista em que os valores são vãos e as pessoas entediam-se porque são reduzidas a máquinas especializadas, inscritas num sistema rígido e simplório.

No geral, as personagens simbolizam a servilidade e o rigor que a acompanha. Suas vidas extrapolam sua compreensão, sua única verdade é que devem servir ao mundo que os repugna. São – o discreto e obsequioso Kraus em particular – o resultado icônico da sociedade tal como a justificam a benevolência e justiça mentirosas da cristandade. Há neles uma beleza triste, que encerra o peso da punição e penitência, valores herdados e encrustrados da tradição judaico-cristã. Sua servilidade é pueril, todavia, pois que ingênua e conformada, o poder é seu pai severo e insone, inalcançável, uma sombra sempre vigilante. “Nesses dias em que limpamos, lavamos e areamos, lembramos aqueles duendes de Colônia, que conforme conta a lenda, faziam todo o trabalho pesado e cansativo movidos pela mais pura e sobrenatural bondade. O que nós, pupilos, fazemos, nós o fazemos porque temos que fazer, embora nenhum de nós saiba ao certo por que razão precisa fazê-lo”. Talvez seja essa puerilidade que faça ecoar os contos de fadas durante as palavras de Walser. Na verdade foi Walter Benjamin quem escreveu que “as figuras humanas de Robert Walser partilham sua nobreza infantil com as personagens dos contos de fadas”, uma comparação bonita e que traduz todo o universo de Jakob Von Gunten. Mesmo a prosa curta de Walser aumenta essa familiaridade com os contos de fadas, pois confere ao tempo em que a própria prosa se desenrola uma suspensão mágica, uma aparente consciência de infinitude; uma infinitude de breves finitudes. Nessa atmosfera rarefeita, o lúdico funciona como o ponto de parada certo de uma lucidez fugidia, metaforizando relações de poder ou simplesmente abstraindo a rudeza do inevitável destino das histórias dos pupilos tão respeitosos, que não é o de uma vida feliz para sempre, pois fatalmente suas divagações serão substituídas por uma vida de labor, serão enfim trazidas à realidade, onde a sabedoria é vã e a virtude, inútil. “Grandes são a lei, que determina, a coação, que obriga, e as muitas normas
inexoráveis a nos balizar a direção e o gosto. Aí está a grandeza, e não em nós, discípulos. Todos, eu, inclusive, sentimos que somos apenas anões minúsculos, pobres, dependentes, obrigados a constante obediência”.

Walser parece um pintor, ele nos causa impressões sobre as impressões, descreve as cenas e deixa que elas falem por si mesmas no silêncio. Há uma melancolia que resiste neste momento reticente e dela desabrocha a profunda sensibilidade de Walser para a beleza que há em tudo que é genuinamente humano. Sua poesia paira aí, mas é tão plena quanto um depósito de tinta que a transcrevesse. Sua prosa é lírica, dotada de uma poesia discreta e modesta. Um pouco como Kraus, sua poesia esgueira-se e embeleza o texto, imperceptível, sem fazer alarde para si, uma beleza inesperada e portanto natural, espontânea e quase corriqueira. Walser traduz em toda a sua escrita a simplicidade, encarna-a através do magnífico subterfúgio do experimento literário rapsódico do diário, que permite qualquer coisa a seu narrador, que pense em voz alta, exprima juízos ou sensações, que tagarele sem sentido ou somente devaneie, sem jamais abandonar seu posto libertador de singelo observador, a forçosamente desgarrar-se da inocência infantil.

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