Arquivos da categoria: Resenhas

Resenhas literárias.

Crítica Literária

O livro por vir

1 setembro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

blanchot-livro-por-vir

– Meu sonho já durou setenta anos. Afinal, ao recordar, não existe ninguém que não se encontre consigo mesmo. É o que nos está acontecendo agora, só que somos dois. Você não gostaria de saber algo do meu passado, que é o futuro que o espera?
Borges, “O outro”.

Um pensamento sem imagem que não se deixa representar, a revolver o tempo em uma forma circular, ao qual pertence a reminiscência ininterrupta, que, como um bom lance de dados, afirma todo o acaso de uma só vez – a experiência da literatura resguarda a necessidade de que se possa, em cada obra, “reservar o indeciso na decisão, preservar o ilimitado junto ao limite, e nada dizer que não deixe intacto todo o espaço da fala sobre a possibilidade de dizer tudo” (p. 149).

Maurice Blanchot, em O livro por vir, retira do âmago da experiência literária a circularidade do tempo na qual a literatura de maneira geral se desenvolve como problema, pois cada obra é uma experimentação, cada vez renovada, do tempo da transparência da linguagem, através da qual a imaginação transforma a realidade em ideia. Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

Antropologia filosófica

29 agosto, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Imagem do livro “Saudades do Brasil”

“A ideia de que o nome e a essência se correspondem em uma relação intimamente necessária, que o nome não só designa, mas também é esse mesmo ser, e que contém em si a força do ser, são algumas as suposições que a própria pesquisa filosófica e científica também parecia aceitar. Tudo aquilo que no próprio mito é intuição imediata e convicção vívida, ela converte num postulado do pensar reflexivo para a ciência da mitologia; ela eleva, em sua própria esfera, ao nível da exigência metodológica a íntima relação entre o nome e a coisa, sua latente identidade.” – E. Cassirer, Linguagem e mito.

Um trabalho antropológico baseado em pesquisas etnográficas a começar pelo título O pensamento selvagem pode, a princípio, não sugerir a verdadeira intuição que busca desenvolver, cujo cerne é profundamente filosófico. Trata-se não da investigação do pensamento supostamente primitivo dos ditos povos selvagens, mas de uma ampla reflexão sobre o pensamento em si mesmo, tomado em sua essência, em seu estado selvagem, ou primeiro. As conclusões de Lévi-Strauss sobre o pensamento selvagem, especialmente ao serem regidas pela análise, comparativa e metafórica, da linguagem em relação aos modos de pensar ou conhecer as coisas no mundo, mostram que os universos mítico e linguístico entrelaçam-se, como estruturas construídas por uma qualidade arquitetônica da razão. Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

O tempo que paira em sonho

7 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

felisberto-hernandez

“[…] com um pedaço de mim mesmo, formei a sentinela que faz a guarda de minhas recordações e de meus pensamentos; mas ao mesmo tempo devo vigiar a sentinela para que ela não se entretenha com o relato das recordações e adormeça. E ainda tenho que lhe emprestar meus próprios olhos, meus olhos de agora”.

Há uma vida que se vive e uma vida que se sonha. A literatura de Felisberto Hernández, porém, brota de um estranho entroncamento entre ambas: suas histórias são memórias de sonhos. Deixam entreaberta a divisória entre o fantástico e o real e, ao atravessarem-na, a transformam numa mera suposição, difusa e ambígua. Talvez por isso Felisberto seja um escritor tão diferente – segundo Italo Calvino, “um escritor que não se parece com nenhum outro: com nenhum europeu e com nenhum latino-americano; é um franco-atirador que desafia toda classificação ou rótulo, mas que se mostra inconfundível ao abrirmos qualquer uma de suas páginas”. Sua literatura desenrola-se com suavidade onírica e um lirismo singelo. Sua prosa é simples, intelectual e intimista e tem um tom a um só tempo melancólico e humorado. Suas histórias resgatam e resguardam todo o esplendor das reminiscências, o conhecimento da origem e do retorno que provém da memória, dos sonhos e dos ricos encontros entre ambos.

Seus personagens são suas lembranças. Os contos são escritos em primeira pessoa, um personagem que é, ao longo das histórias, Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

Ó: uma palavra quase corpórea

20 outubro, 2013 | Por Isabela Gaglianone
Nuno Ramos

Interjeição, demonstrativo, ó miúdo asma-nome, bocejo, som muito agudo, zumbido de vespa, ó da morte e do esquecimento, também aí há um ó.

O livro de Nuno Ramos ramifica-se em multiplicidades semânticas desde o título. A rapsódia do seu Ó começa com o próprio labirinto desta letra palavra tão ambivalente, por vezes quase material, num dedo que aponta, ou substantivada para expressar desdém, ou como prelúdio a uma resposta inesperada e não convencional. Ó: uma palavra quase corpórea, quase sempre indicial. Encabeçado por ela – que mesmo só é palavra na medida em que compreendida num contexto cultural popular –, o livro de Nuno Ramos é sensorial. Continue lendo

Send to Kindle
Literatura

MARÍAS, Coração tão branco

16 abril, 2013 | Por Isabela Gaglianone

livro Coracao tão branco, de Javier Marias

“Era simplesmente instalar-se na convicção ou
na superstição de que não existe o que se diz.”

O título Coração tão branco do livro do espanhol Javier Marías é uma alusão a um verso de Shakespeare, um diálogo em Macbeth:

My hands are of your colour, but I shame to wear a heart so white
[Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco].

A alusão desenvolve-se em breve comentário num dos decorreres do fluxo de consciência do protagonista narrador, um tradutor. Ele percorre mentalmente este e alguns versos circundantes, reconstruindo a cena e a história, interpretando-os, revirando os sentidos por trás de suas palavras, à maneira de um cacoete profissional, por impulso de pensar suas possíveis traduções. Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

Witold Gombrowicz: Trá-lá-lá

11 dezembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

Witold Gombrowicz escolheu para si o signo da imaturidade.

“Pois os Maduros sentem profunda aversão pela imaturidade, e nada lhes parece mais odioso do que um ser imaturo. (…) Então, como tudo isso vai terminar? Aonde chegarei seguindo por este caminho? Como se formou em mim (pensava eu) este fascínio pela imaturidade? Seria por eu viver num país repleto de indivíduos rudes, medíocres e efêmeros, que não se sentem bem num colarinho engomado, e onde, em vez da Melancolia e do Destino, são a Inabilidade e a Bisonhice que gemem pelos campos? Ou talvez eu vivesse numa época instável, que a cada instante inventava um novo lema e um novo mote, contorcendo o rosto da melhor forma possível – numa época transitória? …” (Ferdydurke, p. 30).  Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

CAMPOS DE QUEIRÓS, Vermelho Amargo

11 novembro, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, 2011)

“Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo” (p. 7).

Há um vazio pungente, preenchido só com as vagas e evanescentes imagens da memória e da imaginação, na solidão em que se enclausuram os que vivem a dor da separação abrupta, forçada, que acompanha a morte de uma criatura querida. O paradoxo inconformado deste sofrimento é que o próprio vazio é cheio, pleno; esse vazio preenche cada uma das horas dos longos dias do “impiedoso tempo”, materializa-se, assim. Continue lendo

Send to Kindle
Resenhas

CLASTRES, A sociedade contra o Estado

13 agosto, 2012 | Por Isabela Gaglianone

(CosacNaify, tradução de Theo Santiago)

 1) O que é o poder político? Isto é: o que é a sociedade?

2) Como e por que se passa do poder político não-coercitivo ao poder político coercitivo? Isto é: o que é a história? 

 Os fundamentos filosóficos presentes na antropologia política de Pierre Clastres desvelam-se desde o título do primeiro artigo do livro A sociedade contra o estado: “Copérnico e os selvagens“. Clastres articula filosofia e antropologia políticas, calcado em pesquisas etnográficas realizadas em sociedades amazônicas, de modo a desenvolver um projeto crítico à contaminação etnocêntrica latente na antropologia europeia, sugerindo-lhe uma nova orientação, que pudesse estabelecê-la legitimamente como ciência. Continue lendo

Send to Kindle
Crítica Literária

LÍSIAS, O céu dos suicidas

24 maio, 2012 | Por Isabela Gaglianone
[Alfaguara, 2012]

[Alfaguara, 2012]

“Penso em coleções o tempo inteiro, dou cursos, ofereço consultoria e escrevo sobre isso. Mas não tenho sequer um conjunto de cartões-postais” (p. 70).

 

É um romance da própria consciência o que o jovem escritor paulistano Ricardo Lísias realiza com O céu dos suicidas. Colocando a si mesmo como autor-narrador-protagonista, ele personifica uma consciência desesperada, que tenta sair de si mundo afora em busca de algo que a unifique e realize, um eu que a resguarde, através da memória. Sempre que volta a si, embate-se com seu eterno futuro do pretérito; entre o que foi e o que poderia ter sido, a contingência do passado negada, sobrecarregada pelos efeitos presentes. Porque é justamente uma lembrança retumbante que transforma o sustentáculo da consciência em uma coleção de cacos: o eu, culpado – pela impotência, pela apatia –, fragmenta-se.  Continue lendo

Send to Kindle